sábado, 27 de junho de 2009

RECUPERAÇÃO EMPRESARIAL E FUNÇÃO SOCIAL DOS BENS DE PRODUÇÃO

Corotto, Susana. Modelos de reorganização empresarial brasileiro e alemão - comparação entre a Lei de Recuperação e Falências de Empresas (LFRE) e a Insolvenzordnung (InsO) sob a ótica da viabilidade prática. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.
-
O texto sob comentário, versão comercial da tese de doutoramento defendida pela autora perante a Universidade Humboldt de Berlim, versa a evolução dos direitos concursais brasileiro e alemão de uma visão voltada muito mais à realização do ativo para a de uma reorganização da empresa, tendo em vista a repercussão que tem a quebra em termos não apenas de frustração da realização dos créditos como também no que tange ao recolhimento de tributos e ao próprio desenvolvimento econômico de um país.
-
Historia o tratamento dado ao juízo concursal brasileiro desde as Ordenações Afonsinas, vigentes quando do descobrimento, passando de uma concepção voltada a excutir o patrimônio do devedor e obter a punição deste para uma outra destinada a preservar, basicamente, a unidade produtiva, a partir da distinção entre a falência sem culpa e com culpa, já adotada em Alvará do Marquês de Pombal posterior ao terremoto de Lisboa, passando pela introdução da concordata suspensiva pelo Código Comercial de 1850, pela substituição do pressuposto de "cessação de pagamentos" pelas noções de impontualidade e atos falimentares bem como pela introdução da concordata preventiva pelo Decreto 917, de 1890, pela instituição da concordata concedida por sentença por obra do Decreto-lei 7.661, de 1945, embora o período de vigência deste fosse marcado pelo desvirtuamento, na prática, dos institutos da falência e da concordata, até se chegar à vigente Lei 11.101, de 2005, que, voltada a dar maior concreção aos princípios constitucionais da função social da propriedade e do pleno emprego, atendendo, outrossim, a reclamos apresentados pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, tem a sua ênfase no processo de recuperação da unidade produtiva. São, a seguir, esmiuçados aspectos do tratamento dado ao devedor, pela recepção da teoria da empresa - a seu ver, caracterizada como atividade e não como sujeito de direito - e pela enumeração dos devedores excluídos do procedimento concursal por estarem sujeitos a regime próprio, o tratamento dado aos credores, indicando os créditos sujeitos e os não sujeitos ao regime concursal, o procedimento de verificação dos créditos para o fim de se elaborar o quadro geral de credores, o procedimento de recuperação de empresas cuja atividade se mostre economicamente viável, justificado pelo interesse público que existiria à volta da manutenção da atividade produtiva, devendo tal viabilidade ser avaliada de acordo com as circunstâncias do caso concreto, até chegar ao regime especial de recuperação das micro e pequenas empresas. Passa a examinar a evolução do direito falimentar tedesco, desde a Lei Concursal de 1877, voltada, predominantemente, ao devedor pessoa natural, seguindo inspiração eminentemente liquidatória, embora, para assegurar a continuidade da exploração da atividade econômica, fosse prevista, também, a alienação, total ou parcial, da empresa a terceiro enquanto se processava a liquidação do titular, passando pela Lei do Acordo, pela qual o devedor poderia evitar as conseqüências do juízo concursal ao propor acordo, fosse para a redução da dívida ou a dilação do pagamento, aos credores, desde que mostrasse honestidade e capacidade financeira para a satisfação de quota mínima estabelecida em 35%, as alterações legislativas decorrentes da frustração dos procedimentos falimentares a partir da crise verificada em 1973, para se chegar à Lei de Insolvências de 1994, que revogou tanto as leis precedentes em vigor na República Federal da Alemanha quanto as adotadas na antiga República Democrática da Alemanha, adotando como filosofia a reorganização patrimonial do devedor, tanto empresário quanto o devedor consumidor, centrando o seu enfoque no devedor empresário, observando a ausência, também no Direito Alemão, de uma definição unitária do conceito de empresa, esmiuçando, outrossim, a responsabilidade tanto do empresário pessoa natural como do empresário pessoa jurídica ou coletividade sem personalidade jurídica, passando a analisar a situação dos credores, bem como as respectivas posições em relação à massa, e o direito de terceiros a obterem a restituição dos respectivos bens quando sejam indevidamente arrecadados.
-
No segundo capítulo, vem a tratar as peculiaridades procedimentais referentes aos planos de recuperação, no Direito brasileiro, e de insolvência, no Direito alemão, enquanto meios de reorganização da atividade da empresa, dando realce para as questões da legitimação para a sua propositura, para os poderes do juiz no exame da admissibilidade do plano, dos meios de recuperação, com destaque, no caso brasileiro, para a eliminação da sucessão obrigacional em se tratando da alienação de estabelecimento, da presença de elementos de autonomia privada e de coação estatal no tratamento do plano em ambos os ordenamentos, conduzindo às dificuldades da doutrina em precisar a respectiva natureza jurídica, a possibilidade de o julgador impor aos credores discordantes, tanto no Direito brasileiro como no alemão, a aceitação do plano aprovado pela maioria dos credores, a fim de evitar que a minoria determine a interrupção da atividade da empresa, inspirada no Bankruptcy Reform Act (EUA), os poderes de apreciação do mérito do plano em face do pronunciamento dos credores e as conseqüências do não cumprimento dos planos. Aponta, ainda, para um dado significativo de diferença entre o Direito Concursal brasileiro atual e o anterior, ao se converter em conteúdo do plano um ato que, antes, era havido como falimentar, qual seja, a convocação de credores pelo devedor para o fim de propor dilação, remissão de créditos ou cessão de bens, e, por outro lado, a visão que se coloca quanto à inspiração político-econômica do plano de insolvência na Alemanha e no Brasil seria a de enfatizar a autonomia privada, reduzindo-se ao máximo a coação, substituindo-se disposições imperativas por normas dispositivas: seria uma das expressões da desregulação da economia.
-
No capítulo subseqüente, é examinado o procedimento de recuperação da empresa tal como disciplinado no Direito brasileiro, desde a legitimação para o instaurar - restrita ao devedor ou, extraordinariamente, no caso de morte do devedor empresário individual, ao cônjuge supérstite, aos herdeiros e ao inventariante, e, no caso de a sociedade empresária ficar reduzida a um sócio apenas, a este -, passando pelas condições que deve ostentar, elencadas no artigo 48 da Lei 11.101, de 2005, e pelo pressuposto objetivo da crise econômico-financeira da empresa, embora tal conceito tenha os seus termos "abertos" pela impossibilidade de o legislador elencar minuciosamente todas as hipóteses em que se poderia configurar, sem que se confunda com a mera inadimplência de obrigação líquida e certa, tendo como finalidade, mais do que evitar a falência, preservar a empresa, garantir o cumprimento de sua função social e o estímulo à atividade econômica. Recorda competir o processamento do pedido ao juízo estadual, diante do que dispõe o inciso I do artigo 109 da Constituição de 1988, do local onde se situe o estabelecimento principal ou a sede da filial de empresa estrangeira que atue no país. Observa que, em pleno contexto de globalização e integração econômica, o juízo concursal ainda seguiria o princípio da territorialidade, não abrangendo o restante dos países onde a empresa atue. Passa ao exame dos efeitos do ajuizamento do pedido de recuperação em relação às obrigações firmadas anteriormente a ele e à distinção entre créditos concursais e extraconcursais, tratando a classificação dentre estes últimos da obrigação contraída após o ajuizamento do pedido como apta a incentivar a continuidade da atividade empresarial, viabilizando não somente o acesso do devedor a financiamentos como também a própria mantença dos negócios dele com fornecedores e clientes, indicando, outrossim, a disciplina dos créditos quirografários anteriores ao ajuizamento do pedido, conversíveis em créditos com privilégio geral no caso de ser decretada a falência quando o respectivo credor, no período da recuperação, continue a prover o devedor de bens e serviços, e a interdição ao devedor da alienação ou oneração de bens do ativo empresarial, salvo se o juiz, ouvido o comtê de credores, reconhecer evidente utilidade na operação, ou quando esta aparecer como um dos meios recuperatórios previstos no plano. A seguir, examina o pedido de recuperação após a instauraçao, por qualquer credor, do processo de falência, sendo que somente quando se fundar no pressuposto objetivo da impontualidade e estiverem presentes os requisitos e condições postos para o processamento de tal pedido em caráter principal, poderá ele ser formulado no prazo para defesa. Prossegue distinguindo entre os atos judiciais que determinam o processamento do pedido de recuperação - despacho de mero expediente, não recorrível, de acordo com o entendimento firme do C. Superior Tribunal de Justiça -, a sua extinção - sentença, atacável via apelação - e a sua concessão - decisão interlocutória, atacável via agravo de instrumento -. Seguem-se considerações a respeito dos efeitos jurídicos do deferimento do pedido recuperatório, que são a nomeação de administrador judicial - normalmente, recaindo na pessoa do devedor ou, quando este seja sociedade empresária, nas pessoas que estejam encarregadas de tal mister, salvo quando presente alguma das hipóteses da lei que determinem o respectivo afastamento ou tal permanência venha a obstar ou dificultar a continuidade da atividade empresarial, com o que deverá recair tal encargo em outra pessoa idônea, a critério do juiz -, a abertura de prazo para a apresentação do plano de recuperação, o início da suspensão do curso da prescrição e das ações em face do devedor, a preservação das obrigações anteriores salvo definição em sentido diverso no plano de recuperação, o dever de apresentação mensal, por parte do devedor, de demonstrativos de receitas e despesas no período que durar o estado de recuperação. Discute, ainda, a permanência da necessidade da presença do Ministério Público nos procedimentos concursais diante do veto aposto pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República ao dispositivo que a previa, concluindo pela inoperância de tal veto, tendo em vista a presença, em tais procedimentos, de interesses transcendentes à economia interna das obrigações travadas pelo devedor. Por fim, debate a questão da exigência das certidões negativas de débitos tributários para a concessão do pedido recuperatório, considerando-a incompatível com a finalidade deste.
-
No capítulo quarto, examina-se, à luz do Direito germânico, a reorganização enquanto alternativa prevista para a satisfação dos credores no processo de insolvência. O pedido de reorganização tem lugar com a confissão do devedor, embasada em prognósticos demonstráveis, do risco de se tornar incapaz de honrar seus compromissos acaso não deferido o pedido de reorganização, dependendo a sua permanência na administração de requerimento formulado por ele ou, no curso do processo de insolvência, de postulação dos credores. Em regra, no Direito tedesco é competente o juiz de primeira instância, especializado em Direito da Insolvência, na sede do Tribunal de Justiça do Estado (Land) em que se ache o centro da atividade econômica do devedor - regra aplicável inclusive aos grupos de empresas, em que a insolvência de cada uma não afeta as demais integrantes do grupo -, restando a solução das questões conexas sujeita ao Direito Processual geral. A competência do juízo especializado, à ausência de tratado internacional em sentido contrário, vem a estender-se também no plano internacional em relação ao processamento das causas concursais que extrapassem o âmbito da União Européia, e, no âmbito desta, a competência territorial será no país onde a empresa possuir o principal centro de interesses, que, até prova em contrário, será aquele declarado nos estatutos respectivos. Derrogada a regra geral da indelegabilidade de competência jurisdicional, o juiz de direito pode transferi-la ao Rechtspfleger, salvo no que diz respeito à condução do processo até a abertura da insolvência, à nomeação do respectivo administrador e à "condução do plano de pagamento do devedor consumidor" (p. 159). De acordo com o Bundesgerichtshof (Tribunal de Cassação Federal, equivalente ao Superior Tribunal de Justiça, no Brasil), não é somente o pedido de insolvência pelo credor que merece o controle de admissibilidade, como também a confissão, para se obviarem os riscos para a satisfação pontual dos créditos, com o que se deve verificar, primeiro, se o devedor tem a capacidade para a insolvência, se na peça em que requer estão indicados, objetivamente, fatos que a venham caracterizar ou a caracterizar o risco de ela se verificar, se o patrimônio do devedor seria suficiente para o pagamento de custas e se o pedido se mostraria compatível com o procedimento de insolvência para empresas. Admitido que seja o pedido, investe-se o juiz dos poderes para tomar todas as providências de interesse para o processo, conferindo-se-lhe ampla iniciativa probatória, ouvindo testemunhas e peritos. Escande, a seguir, as providências judiciais para a continuidade da atividade empresarial no período de pré-insolvência, como a nomeação de administradores - preferencialmente recaindo sobre pessoas não integrantes da administração ordinária da empresa devedora, somente se admitindo que os administradores desta permaneçam em caso de deferimento de pedido expresso dela ou do comitê de credores -, a proibição a que o devedor exerça sobre os bens integrantes do ativo da empresa o poder de disposição ou o condicionamento da eficácia dos atos que o materializem à anuência do administrador provisório, a proibição ou suspensão provisória de medidas executivas sobre o patrimônio do devedor, a determinação de intervenção na correspondência deste e de que bens objeto de garantia que se mostrem essenciais à continuidade empresarial não sejam expropriados ao devedor em prol do credor. Aponta para o papel da fase de pré-insolvência, entre o ajuizamento do pedido de confissão de tal estado e a abertura da insolvência, ocmo apto a propiciar a obtenção de liquidez por parte do devedor, exemplificando com a transferência do encargo do pagamento dos salários atrasados até três meses antes da abertura ao Departamento Federal do Trabalho, permitindo-lhe poupar este dinheiro para se poder reequilibrar. Investiga, a seguir, os efeitos jurídicos da abertura da insolvência, principiando pela sanção de ineficácia a todos os atos de disposição praticados pelo devedor, nomeando o juízo administrador - em regra, pessoa estranha à administração ordinária da empresa, a partir de rol constituído por todos os profissionais que se coloquem à disposição do juízo e não de lista previamente elaborada por este (tema que foi objeto, inclusive, de pronunciamento do Tribunal Constitucional Federal à luz do princípio da igualdade de todos perante a lei), podendo, entretatnto, recair sobre a pessoa do devedor o encargo, desde que seja formulado pedido expresso por este ou pelo comitê de credores, sob a fiscalização de um supervisor -. Passa a examinar os efeitos da apresentação do plano de insolvência pelo devedor, com a suspensão das medidas voltadas à realização do ativo até a respectiva aprovação e homologação, salvo quando implicar tal suspensão prejuízo para a massa, o regime dos contratos vigentes quando da abertura da insolvência - com especial referência ao direito de opção do administrador entre o cumprimento do contrato e a exigência à outra parte de que atenda a respectiva obrigação e o não cumprimento respectivo, convertendo a 0utra parte em credora da insolvência, bem como à extinção dos contratos de mandato e da relação decorrente da gestão de negócios -, a situação dos credores com garantia, o papel do juízo da insolvência como fiscal da lei e como responsável pela viabilização da solução negociada entre o devedor e os credores. Expõe, ainda, as incumbências do administrador da insolvência, sobretudo no que diz respeito à continuidade da atividade empresarial, cuja última palavra, a bem de ver, caberá ao comitê dos credores. Salienta, por fim, a ausência de intervenção do plano de insolvência nas relações que se estabelecem com os sócios ou acionistas.
-
A comparação entre os ordenamentos brasileiro e tedesco, propriamente dita, vem a ser feita no capítulo quinto. Principia-se a investigação da legislação concursal enquanto concretizadora dos princípios constitucionais da isonomia e da função social da propriedade, albergados tanto na Constituição brasileira (artigos 5º, caput e XXIII, e 170, III) como na Lei Fundamental de Bonn (§ 1º, 3, e § 14, 2), referindo, em relação à brasileira, o papel por ela desempenhado no despertar a consciência jurídica para o papel da Constituição enquanto integrante do Direito positivo. Desenvolve, por outra parte, digressão sobre o surgimento e a evolução da análise funcional dos institutos básicos da economia de mercado, quais sejam, a propriedade e a liberdade contratual, desde a obra de Enrico Cimbali, publicada em 1884, passando por Karl Renner, Rudolf von Jhering e Otto von Gierke, enquanto verificação da necessidade de se buscar um título de legitimação, perante quantos sejam afetados por seu exercício, dos poderes inerentes aos que se coloquem em posição de vantagem, de tal sorte que se chegou à formulação, no § 153 da Constituição de Weimar, repetida no nº 2 do § 14 da Lei Fundamental de Bonn, à idéia de decorrer, da propriedade individual, obrigação para o proprietário. No âmbito do Direito brasileiro, estuda a evolução do tratamento de propriedade, com a recepção da idéia de função social nos textos constitucionais, olhos postos sobretudo no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição de 1988, apontando, ainda, para a distinção entre bens de consumo e bens de produção como um dos fatores aptos a permitirem o reconhecimento de uma dimensão positiva para a funcionalização da propriedade individual, ao lado da óbvia dimensão negativa. Quanto à função social do contrato, refere a contribuição de Luís Renato Ferreira da Silva no sentido de a considerar como decorrência do princípio solidarista posto no inciso I do artigo 3º da Constituição de 1988, indicando, assim, que a linha de interpretação mais adequada para a legislação concursal brasileira haveria de ser muito mais aquela que garantisse a preservação da função social da atividade empresarial do que aquela que priorizasse a satisfação de créditos em caráter privilegiado, com o que considera, mesmo, inconstitucional a exclusão de credores com garantia da sujeição ao processo recuperatório. Quanto à legislação concursal alemã, o enfoque se coloca principalmente na garantia do direito de propriedade, de tal sorte que se reduzam os pedidos de insolvência e, assim, a noção de função social se coloca no sentido de se garantir a higidez do crédito enquanto responsável pela circulação de riquezas – a recuperação do devedor se coloca, antes, no sentido de se evitar que, com a sua eliminação, os créditos percam a sua efetividade – e, com isto, explicar-se-ia o porquê de se incluírem na fase de saneamento da empresa os credores com garantia, bem como o afastamento de tradicionais privilégios, como o do Fisco. Indica estar voltada a reorganização empresarial, naquele país, voltada especialmente ao setor de prestação de serviços, ali predominante, e cuja maior riqueza está nos bens imateriais, como o know how. Salienta a escassa utilização do plano de reorganização na Alemanha, atribuindo-a tanto à resistência do devedor em ajuizar o pedido de confissão antes que a crise econômica da empresa tenha alcançado o estado de efetiva insolvabilidade quanto ao regime de extremo rigor a que sujeita a responsabilidade do administrador judicial, questionando, ao final, a adequação da concepção da reorganização como meio de realização do ativo, indicando a necessidade de mudança do enfoque para o escopo de manutenção da atividade empresarial. Após referir como ponto de convergência entre os direitos brasileiro e germânico a oferta de meios judiciais para que o devedor venha a atalhar a configuração da total insolvabilidade, indica, a partir da experiência de duas grandes empresas que entraram em crise e postularam a reorganização logo após ter entrado em vigor a Lei brasileira, a necessidade de aperfeiçoamento desta legislação, postas a preservação da função social da empresa e a par conditio creditorum - argumento principal erguido pela autora tanto contra a ausência, no Direito brasileiro, da vinculação de todo o universo de credores (p. 222) quanto contra a preeminência concedida aos créditos com garantia (p. 224) - como balizadores para a verificação da seriedade dos pedidos, para a escolha do administrador, bem como para se investigar a viabilidade econômica da atividade empresarial. Quanto ao Direito germânico, refere a maior vantagem representada pela elevação do pedido de reorganização à categoria de processo autônomo para o fim de dar maior efetividade ao instituto, baseando-se no dado objetivo da ameaça de impossibilidade de honrar os pagamentos aliado à viabilidade econômica da recuperação da empresa, pondo-se a manutenção desta como conditio sine qua non "para a melhor satisfação dos credores e também para a manutenção de empregos" (p. 245). Assim, o enfoque passa a ser, antes, o da função social da empresa do que o da realização dos créditos, impondo a adequação das regras procedimentais à nova finalidade da legislação concursal, inclusive no que tange à intervenção no direito societário, de sorte que os feitos que envolvam a reorganização de empresas de um mesmo grupo sejam tratados como uma unidade. Como desafios comuns a ambos os ordenamentos jurídicos, aponta as dificuldades na definição da viabilidade econômica da empresa, a escolha do administrador de acordo com as peculiaridades do caso concreto, recaindo, quando for o caso, em pessoa jurídica especializada e, ao cabo, a definição da forma de remuneração.
-
Nota-se que a obra tem como um dos principais méritos o reconhecimento da presença de um interesse que refoge ao aspecto estritamente privatista. Nem todas as proposições contam com a adesão do resenhista: a crítica a respeito da incompatibilidade da sistemática da definição dos efeitos da recuperação da empresa e da falência no âmbito internacional toma como exemplo o dado de que sentença proferida no Brasil não teria produzido efeitos no exterior (p. 130, nota 388), quando, neste particular, não seria merecedor de quaisquer censuras o legislador brasileiro, porquanto não poderia legislar para produzir efeitos em outro país. De outra parte, a insistência da autora, explicável por conta da formação na área do Direito Comercial, em tratar a empresa como objeto e não como sujeito de direito, quando, a bem de ver, salvo pronunciamento em sentido contrário do legislador, a gama de interesses nela individualizáveis, não se confundindo com os do empresário, já foi pelo resenhista afirmada, com lastro na autoridade de Washington Peluso Albino de Souza em mais de uma ocasião. Mas, de qualquer sorte, o brilho da obra não se encontra empanado por estas observações.

terça-feira, 9 de junho de 2009

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E RESPONSABILIDADE FISCAL

ASSONI FILHO, Sérgio. Transparência fiscal e democracia. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009.

Com a queda do Muro de Berlim em 1989, a questão do déficit público passou a ser o centro das preocupações da política econômica, uma vez que o desmoronamento de tais regimes, que, ao lado dos cerceamentos às liberdades políticas, eram baseados numa direção estatal da economia, veio a ser considerado fator de legitimação suficiente para o movimento de retração da presença estatal, apontando-se, demais disto, para o peso excessivo de tal presença, traduzindo-se em tributação sobre os agentes privados. De outra parte, considerando-se o problema da malversação dos recursos públicos invocado como meio de racionalização para a conduta da recusa de atendimento ao dever de pagar tributos e da própria questão ainda não resolvida acerca da amplitude da participação no exercício do poder a ser assegurada, observa-se que a questão do tratamento das finanças públicas viria a assumir uma dimensão muito além do meramente técnico-contábil.

Foi neste contexto, resumido apertadamente no parágrafo anterior, que às normas gerais de Direito Financeiro vigentes no País desde 1964, assomou a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”. Este mesmo diploma, outrossim, é o que rende ensejo à obra que ora é resenhada, versão comercial da tese de doutoramento do autor, defendida na Universidade de São Paulo em 2008, que inicia suas reflexões a partir de uma premissa posta por Teilhard de Chardin, no sentido de que a ordem democrática seria a única apta a garantir a realização dos ideais de “personalização” – assim compreendidas as possibilidades de cada qual perseguir livremente as suas aspirações e ideais – e de “organização” – assim compreendida a oferta de estruturas aptas a permitirem o acesso de cada qual, na medida de sua capacidade, à possibilidade de contribuir na conformação das relações da sociedade em que vive -, centrando o seu foco na democracia enquanto processo de formação das decisões governamentais, em que há mister a presença de moderada tensão entre as forças políticas contendoras para que possa, efetivamente, funcionar, embora a própria noção de autoridade não seja derruída. Considera que o sistema de valores, para que se pretenda democrático, haveria que se fundar no binômio liberdade/igualdade, desenvolvendo suas reflexões a partir de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Jean-Jacques Rousseau, Raymond Aron, Georges Burdeau e Isaiah Berlin, para demonstrar a distinção entre a liberdade natural do indivíduo e a liberdade exercida no meio da sociedade, que se vem a manifestar pelo princípio da maioria, em que a autonomia individual se coloca em convívio com a possibilidade igual de participação no exercício do poder, a fim de se evitar que medidas arbitrárias sejam impostas a qualquer pessoa submetida à autoridade estatal. Passa a examinar as instituições criadas para a viabilização do processo democrático, iniciando pela Ágora ateniense, onde os cidadãos a exerciam em caráter direto, sob as críticas de filo-aristocratas como o historiador Tucídides, o comediógrafo Aristófanes e o filósofo Platão, passando, após séculos de compreensão de poderes “absolutos” nas mãos dos governantes, pela atribuição a órgãos a serem preenchidos por indivíduos escolhidos pelo povo como os mais aptos a falarem em seu nome, exprimindo a vontade geral, com a criação, ainda, de entidades intermediárias que representariam as visões de mundo que se pretenderia ver convertidas em inspiradoras de políticas públicas – os partidos políticos -. A inviabilidade da colheita direta da vontade geral, tendo em vista o crescimento populacional, a complexidade das relações sociais e a grande extensão territorial de alguns dos Estados teria sido a responsável pela criação das instituições que viabilizaram a democracia representativa ou indireta, embora esta, também, não se veja isenta de problemas que o autor aponta com lastro em Anthony Downs, Joseph Schumpeter, Charles Lindblom, Carl Becker, Norberto Bobbio, Karl Loewenstein, John Randolph Lucas, Anthony Arblaster, Maurice Duverger, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Pontes de Miranda, que consistiriam no caráter basicamente individualístico da disputa dos partidos pelo poder, no controle recíproco a partir das trocas de favores, o atendimento, pelos políticos eleitos, dos pequenos grupos sociais que constituem a sua base, que podem não corresponder ao de toda a coletividade, a tendência ao estabelecimento de situações de privilégio para determinadas lideranças partidárias, o esvaziamento dos compromissos ideológicos dos programas dos partidos, de tal sorte que todos, praticamente, vêm a se converter em meras pontes para a conquista do poder para pessoas integrantes de determinados grupos e não em nome de determinados valores, na influência dos meios de comunicação no processo eleitoral e, mesmo, na conformação da opinião pública acerca do modo de gerir a res publica mediante o emprego das técnicas propagandísticas, a ascenção da tecnocracia e da burocracia, reduzindo não só a celeridade no atendimento, por parte do Poder Público, às demandas do cidadão como também o próprio espaço franqueado ao debate, ante a exigência de conhecimentos técnicos para a solução de problemas cada vez mais complexos. Com lastro em Raymond Aron e Giovanni Sartori, observa que mesmo estes problemas não invalidariam as instituições próprias da democracia representativa, porquanto permitiriam a organização da competição entre as facções que pretendam a conquista do poder, arredando os meios arbitrários e violentos que caracterizam as revoluções e golpes de Estado, apresentando-se como uma solução para o impasse a combinação de elementos da democracia representativa com elementos da democracia direta, caminhando-se para a democracia participativa, mercê da qual canais de participação direta e voluntária convivam com as instituições políticas inerentes ao modelo representativo, invocando como teóricos defensores desta modalidade de síntese Tarso Genro, Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato, Adam Przeworski, Susan Stokes, Bernard Manin, Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer. Passa a investigar a base sócio-econômica do Governo democrático, observando a necessidade da difusão dos valores em que este se fundamenta mediante o processo educacional e a efetivação da cidadania a partir do momento em que a nenhum indivíduo submetido à autoridade do Estado seja sonegada a garantia do mínimo vital e das condições para que cada um possa desenvolver plenamente a sua personalidade, de tal sorte que se possam reduzir as tensões que, fora de um patamar máximo de controlabilidade, poderiam colocar em risco as instituições que asseguram, inclusive, o funcionamento do mercado. Aponta, ainda, para o esmaecimento da distinção entre o poder econômico e o poder político, em virtude da formação de estruturas empresariais nascidas do processo de concentração, que vêm a, em nome dos respectivos interesses comerciais, a comprometer inclusive a soberania dos Estados, e cujo dique estaria, justamente, na efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, buscando a redução das desigualdades sócio-econômicas. Alerta, com base em Pareto, para a impossibilidade prática de uma ordem social estável, trabalhando, antes, com uma perpétua mutação que se estabelece em ritmos diferenciados, destacando o processo democrático enquanto o mais apto a assegurar o ritmo mais célere na eliminação dos obstáculos ao desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo que vive em determinada sociedade, de tal sorte que – consoante C. B. MacPherson – estes mesmos indivíduos não mais se vejam como meros consumidores de produtos prontos para se converterem em atores das histórias respectivas.

No capítulo seguinte, cuida da participação do cidadão na Administração Pública enquanto atividade exercitada uti universi, isto é, do cidadão buscando levar a sua contribuição ao todo social a partir de um interesse que transcende a sua utilidade individual e exclusiva, pela possibilidade de fruição dos resultados do atendimento ao interesse de toda a coletividade, invocando como referência a lição de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón Fernandez. A presença do cidadão no contribuir para as decisões estatais, que, no entanto, continuam com as instituições construídas para o funcionamento da democracia representativa, teria como efeito pedagógico, no ver do autor, a possibilidade de o cidadão comum discernir entre as medidas que realmente viriam em benefício do público daquelas que teriam como objetivo unicamente comprar simpatias, entre o que seria necessário para que a sociedade se desenvolvesse harmonicamente e as medidas de caráter meramente clientelista, que pressuporiam uma postura de passividade do cidadão diante do Estado. Caracteriza o novo paradigma do Estado Democrático como poliárquico, em que os centros de poder se encontrariam difusos pela sociedade e a oposição, enquanto voz das minorias, enquanto dissenso necessário para se evitar que a própria maioria se convertesse em tirania, trabalhando a idéia de participação cidadã enquanto direito humano previsto no artigo 25 da Resolução 2.200-A XXI da ONU, de 1966, traduzida na busca de um “consenso decisório quanto aos rumos a serem seguidos pelo Estado-Administração a bem da coletividade” (p. 55). Por implicar a idéia de participação a aproximação entre os que se submetem ao poder estatal e os que estão investidos neste, tem-na o autor como inseparável do princípio da publicidade, que impõe sejam ofertadas à população informações suficientes acerca dos grandes problemas que ocorrem no território onde o poder é exercido e da adequação das soluções que lhes serão ofertadas. A publicidade vem, pois, a converter-se em “transparência administrativa”, pela qual a população vem a obter as informações que lhe possibilitem as discussões acerca do que se entenderia como o legítimo interesse público. Visualiza, em função disto mesmo, na efetivação do princípio da transparência administrativa a constituição da denominada “esfera pública não estatal”, em que movimentos, associações e organizações das mais diversas orientações, mesmo sem vinculação com as estruturas do poder político, vêm a ter aptidão para verem suas aspirações convertidas em políticas públicas. Tal participação, outrossim, vem a ser trabalhada a partir de espaços assegurados pela ordem jurídica a que os próprios súditos venham a colaborar na conformação desta. Numa palavra, a ordem jurídica, enquanto expressão da vontade geral, vem a ser tratada como resultado da autodeterminação dos indivíduos que vêm participar na elaboração dos diplomas normativos. Identifica como matrizes no âmbito constitucional, em caráter mais geral, no Brasil, a consagração do direito de qualquer cidadão ter acesso a informações de caráter individual ou geral, a consagração dos princípios da publicidade e da moralidade administrativa, a previsão do direito de reclamar acerca do funcionamento dos serviços públicos, do direito de acesso aos registros administrativos e informações concernentes aos atos governamentais e do direito de representação contra o exercício negligente ou abusivo de funções públicas por parte dos respectivos agentes, e como disposições específicas, além da clássica formulação concernente ao poder emanar do povo e ser exercido por este direta ou indiretamente, traz à balha as concernentes à participação no processo legislativo, mediante o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular - destacando projeto de lei elaborado por Fábio Konder Comparato em relação à regulamentação de tais institutos -, a previsão constitucional de colegiados públicos no que tange à gestão do Sistema Único de Saúde, da seguridade social e da educação, as audiências públicas, adotadas em primeiro lugar pelo Legislativo e estendidas aos demais Poderes.

No capítulo subseqüente, fixando como premissa a atuação do Estado-Administração como norteada ao atendimento das necessidades públicas, forte na autoridade de Regis Fernandes de Oliveira, refere o próprio fundamento para o exercício da atividade financeira pública, na qual o orçamento, ao contrário do que ocorre no âmbito particular, onde tem o caráter de um negócio jurídico declarativo, vem a ser conteúdo de diploma legislativo enquanto personificação de um programa de ação governamental. A participação popular direta na elaboração do orçamento público é vista como instrumento de combate à corrupção e ao clientelismo, com a mais efetiva verificação da gestão dos recursos obtidos coativamente aos contribuintes. Tal participação, outrossim, vem a se mostrar mais efetiva quanto mais próximo o centro do poder da população, com o que a autonomia municipal e a forma federativa de Estado lhe forneceriam o ambiente mais propício para frutificar e põe na ordem do dia a responsabilidade do gestor perante esta mesma população. A partir daí, inicia as reflexões em torno do conceito de sociedade civil enquanto parcela da sociedade que se vem a organizar com o propósito de influir nas decisões que se materializarão como políticas públicas, centrando sua análise na definição da própria gestão dos recursos aptos a materializarem tais decisões, recordando, sempre, que os gastos públicos têm como principal fonte de financiamento os próprios usuários efetivos ou potenciais do serviço público, e que esta realidade se torna mais patente em se tratando do financiamento de políticas locais, em que a maior palpabilidade dos resultados teria como efeito o estímulo maior à participação popular. A descentralização dos recursos públicos, portanto, é posta pelo autor como meio mais eficiente de permitir a conscientização da importância da participação direta da população na gestão desses mesmos recursos. Indica, ainda, o papel desempenhado pelo associativismo na formação de uma cultura de participação, evoluindo desde a reclamação pelo reconhecimento de direitos para assumir um caráter propositivo em relação às políticas públicas e fiscalizatório em relação à atuação dos agentes públicos. Observa o papel desempenhado pelos espaços associativos enquanto canais que se abrem diante de lacunas nos espaços oferecidos pelo próprio Estado, distinguindo entre grupos de promoção e grupos de interesse, com base em classificação de Ferrando Badía, e verificando os limites entre as estratégias “legítimas” de convencimento dos agentes políticos estatais e as estratégias “ilegítimas”, próprias do lobbyismo. Considera que a eficiência da participação popular exige a presença de uma rede associativa apta a se contrapor a práticas de natureza clientelista. Nota, ainda, o papel da participação da coletividade no controle das possibilidades de desvios no exercício do dever-poder de gestão do erário público, relacionando, assim, a responsabilidade na gestão fiscal com o controle social. Refere a presença de uma enorme gama de controles no âmbito financeiro, examinando o papel do Tribunal de Contas e do Ministério Público, bem como as respectivas limitações, confrontando-os ao controle exercido diretamente pelo povo, trazendo, por fim, as previsões abstratas de sanções para assegurarem a efetividade do desiderato da responsabilidade na gestão fiscal.

Retomando a idéia da maior efetividade da democratização das decisões em um contexto federativo, lançando como premissa básica observação de Aléxis de Tocqueville, comparando a forma de Estado dos EUA com os Estados unitários da Europa, desenvolve também teses em torno da mais pronta resposta para os problemas pela instância de poder mais próxima e, mesmo neste caso, que esta dê preferência pela oferta de condições para que a sociedade resolva por si os problemas: numa palavra, também a participação possibilitaria a concreção do princípio da subsidiariedade. Considera a descentralização das finanças como meio indispensável a dotar de uma real autonomia os entes federados locais, discutindo as características do federalismo brasileiro, trabalhando, sob o aspecto fiscal, tanto a sistemática da repartição das competências tributárias como da participação das entidades menores no produto da arrecadação das maiores. Observa, também, o papel da disciplina da distribuição das receitas pelas entidades federativas tanto no estabelecimento do equilíbrio entre estas – que não estão em relação de hierarquia umas com as outras, diversamente do que ocorre em Estados unitários descentralizados - como no conferir maior visibilidade ao Poder estatal para os cidadãos, principalmente no que tange aos Municípios. Enfatizando o controle social das finanças públicas como poderoso instrumento de aproximação entre governantes e governados, trabalha a presença destes na escolha de prioridades a serem satisfeitas mediante os recursos disponíveis, normalmente, escassos para o atendimento de todas as necessidades públicas. Menciona, ainda, dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro que permitiriam à população a supervisão direta da sociedade em relação à atividade financeira dos entes locais e debate a experiência do orçamento participativo. Discute as vicissitudes do processo de emancipação de Municípios, que, a princípio, seria a própria manifestação de um grito de independência de coletividades que manifestariam pontos aptos a constituírem uma identidade comum, distinta daquela do Município-mãe, e que ao cabo vieram a ser motivadas, antes, pela possibilidade de obtenção de transferências de recursos das entidades federadas maiores – a União e os Estados em que se localizam – e com as finanças voltadas, basicamente, à manutenção do aparato burocrático das novéis entidades muito mais do que ao benefício das populações respectivas, com o que seria necessário evitar o paradoxo em que se converteram as emancipações antes da Emenda Constitucional n. 15, que de afirmação de autonomia vinham, antes, a confirmar e reforçar a dependência em relação às autoridades maiores.

Debatida a relação entre o federalismo fiscal e a democracia participativa, procura-se desenvolver o conceito de controle social orçamentário, no sentido de render ele ensejo à formação de uma esfera pública não-estatal, paralela ao poder constituído, não no sentido de desestabilizar a este, mas de dar aos governados a possibilidade de um monitoramento constante da atuação dos políticos, de tal sorte que estes assumam a responsabilidade pelo atendimento a reivindicações que, a despeito de corresponderem a necessidades sentidas pela coletividade, não ingressam na agenda política tradicional. O compromisso político passa a ser, assim, com os reais anseios dos cidadãos que tragam as suas pretensões aos poderes constituídos e dele vêm a realizar a cobrança. Ainda que não haja disposição constitucional expressa acerca do controle social orçamentário, sua consagração mediante diplomas como a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto da Cidade não se mostraria, entretanto, incompatível com a consagração da democracia representativa enquanto princípio constitucional sensível, com o que a capacidade de avaliação das prioridades, no momento da decisão, ainda permanece com os Poderes Públicos: o que não pode deixar de ocorrer é a oportunidade para que as pretensões sejam apresentadas para o fim de que possam ser avaliadas e, se for o caso, incorporadas, prestando contas pelo não acatamento, dentro da linha da impossibilidade do exercício da atividade pública que não tenha como ser, pelo menos, explicado. A metodologia de trabalho, outrossim, nesta modalidade de controle, há de observar as peculiaridades de cada uma das localidades em que serão realizados os investimentos públicos. De outra parte, com o reconhecimento da essencialidade da partilha do Governo entre governantes e governados à plena realização dos direitos fundamentais e da lição de Regis Fernandes de Oliveira no sentido de que tal realização pressupõe a tomada de decisões acerca dos instrumentos e dos recursos financeiros aptos a viabilizá-los, sustenta que a participação da comunidade na eleição das prioridades vem a ser meio apto a conferir-lhes concreção, colocando-se o próprio soerguimento da “reserva do possível” no âmbito da efetiva demonstração do fato impeditivo (a ausência de recursos suficientes) ao atendimento da pretensão. A prática do controle social orçamentário vem a permitir a elevação à condição de princípio a transparência na gestão fiscal, embora já estivesse ela, de certo modo, presente em metáfora do Conde de Cavour referida em passagem de Francesco Nitti que o autor transcreve e subscreve. Recorda, outrossim, algumas dificuldades para que se mostre efetiva a participação enquanto manifestação do controle social decorrentes não só do dado de as três leis referentes à programação financeira do Estado serem de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo como também da possibilidade de abertura de créditos adicionais, de contingenciamento de verbas, da edição de leis autorizativas do remanejamento de recursos, o poder de veto a alterações operadas no seio do Legislativo, da concentração, no seio dos Ministérios e Secretarias da Fazenda, das informações concernentes às possibilidades concretas do erário, da ausência de garantia de implementação concreta das emendas, e que geram, na relação entre o Executivo e o Legislativo, uma verdadeira marca de clientelismo. E é exatamente em função destas dificuldades que se aponta para a necessidade de se consolidarem canais associativos para o fim de aumentar a capacidade de fiscalização exercitável pela sociedade, sugerindo-se, ainda, a adoção de procedimentos que permitam a utilização de índices objetivos para se poder mensurar a intensidade com que tais ou quais pretensões merecerão ser atendidas prioritariamente a outras, bem como a abertura da possibilidade de apresentação de emendas populares aos projetos de leis orçamentárias.

A seguir, vem a trabalhar a concepção da responsabilidade fiscal a partir da necessidade de superação de uma visão estritamente formalística do monitoramento das contas públicas, para se chegar, mesmo, à responsabilização caso as demandas sociais não tenham sido, efetivamente, atendidas pela destinação de recursos públicos. Esta concepção que torna a participação popular na formulação das leis financeiras básicas e na busca da responsabilização dos agentes públicos elemento essencial do conceito de “transparência fiscal” teria sido adotada por todos os países que empreenderam a implementação dos programas de ajuste fiscal e mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, a partir de meados da década de 90 do século XX. São esmiuçados os instrumentos fiscais de participação cidadã, desde as audiências públicas e a divulgação das informações acerca das despesas realizadas pelo Poder Público e das disponibilidades por todos os meios – inclusive eletrônicos – em linguagem acessível a não-iniciados, passando pelo estabelecimento de prazo mínimo para que as prestações públicas de contas fiquem à disposição dos cidadãos, a indicação das medidas tomadas para assegurar a busca de receitas suficientes para a prestação de serviços públicos e concecução de políticas por parte do Poder Público, enfatizando-se, mais, o problema das renúncias fiscais inconseqüentes. São debatidas as questões concernentes à responsabilidade dos ordenadores de despesas, enfocando as sanções previstas tanto no plano estritamente financeiro, na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, como no âmbito da probidade administrativa e dos crimes de responsabilidade, especialmente no âmbito municipal.

Por fim, um capítulo sobre a disciplina da transparência fiscal no direito comparado, enfocando os diplomas da Nova Zelândia, da Austrália e do Reino Unido, enquanto inspiradores da filosofia da legislação voltada à tutela da responsabilidade na gestão fiscal adotada na maior parte do mundo, e da Argentina, enquanto país em desenvolvimento, em situação similar à brasileira.

A participação direta da população no exercício do Poder, vista, no início de sua discussão no Brasil, como reprodução do estado de natureza, em que o povo ia às ruas e tudo, para as paixões desenfreadas, vinha a ser permitido, passa a ser considerada, antes, como algo necessário e essencial, deixando ao largo, assim, a rotulação partidária que tantos prejuízos provocou nas reflexões sobre o tema. E esta obra é o feliz exemplo de superação de tal preconceito. Não que esteja ela isenta de observações que, longe de traduzirem indicação de defeito, vêm a indicar, apenas, abrir espaço para o debate. É de se salientar que a obra poderia ver-se enriquecida se tivesse sido objeto de suas reflexões não só a contribuição de Paulo Bonavides (cuja Teoria da democracia participativa, de 2003, é referencial obrigatório) e de Washington Peluso Albino de Souza (com suas reflexões sobre a economia concertada, datadas já do início da década de 70, no seu artigo Direito Econômico do planejamento e retomada tanto no seu Direito Econômico, de 1980, como nas sucessivas edições de suas Primeiras linhas de Direito Econômico), como também a jurisprudência, inclusive, dos Tribunais Superiores a respeito do tema da participação no exercício do Poder Público – limitado que está apenas a dois julgados do Excelso Pretório do início da década de 90 (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 854/RS e medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 821/RS), quando não só ele (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.217/RS; medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.381/RS) como mesmo o Superior Tribunal de Justiça trouxeram uma riquíssima contribuição neste particular, quanto à compreensão da democracia participativa à luz do ordenamento constitucional brasileiro -. Talvez se explique a omissão pela matriz doutrinária seguida pelo autor, que tem os seus marcos fixados pelas reflexões apresentadas por Manoel Gonçalves Ferreira Filho em seu A democracia possível, no âmbito do Direito Constitucional, por Juarez Freitas, no âmbito da Filosofia do Direito, e por Régis Fernandes de Oliveira, no âmbito do Direito Financeiro. De qualquer sorte, não há espaço para a indiferença em relação a esta obra.