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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O planejamento econômico para além do emocionalismo

SCOTT, Paulo Henrique da Rocha. Direito Constitucional Econômico - Estado e normalização da economia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000.


Poucos segmentos constitucionais são examinados com tão pouca serenidade, com tanto sectarismo, opondo "populistas" a "elitistas", "estatizantes" a "privatizadores", quanto a Constituição Econômica. Por esta razão, quando vêm a lume obras como esta, do Prof. Paulo Henrique Rocha Scott - versão comercial da dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul -, fugindo à militância e buscando, antes, compreender a opção feita pelo constituinte, ao definir as funções do Estado na economia e, especificamente, o planejamento, quantos sejam preocupados com a produção científica no Direito têm todos os motivos para receberem uma lufada de esperança.
O texto principia indicando o campo do ser - os dados da economia - que será tomado como conteúdo da norma jurídica, ao discutir os conceitos de "atividade econômica", "ordem econômica" e "política econômica", para ingressar, então, nas cosmovisões que inspiram a elaboração dos Textos Constitucionais - a ideologia constitucionalmente adotada -, identificando o modo como o econômico vem a comparecer nas Constituições brasileiras, até chegar à vigente Constituição de 1988, centrando suas atenções no artigo 174, no qual são enumeradas as funções econômicas do Estado, destacando dentre elas o planejamento enquanto procedimento de racionalização da economia, no sentido de promover a redução - sem eliminar, porquanto tal desiderato se lhe afigura utópico, com base nas experiências planificadoras em contextos estranhos ao capitalismo embasado fundamentalmente na iniciativa privada - da álea no âmbito econômico, aclarando, ainda, o aspecto janiforme que assume o plano, determinante para o Poder Publico, indicativo para o setor privado. Segue indicando a articulação entre o planejamento e as demais funções do Estado, quer balizando a normatização e a regulação da economia, quer ofertando critérios para a fiscalização tanto da atividade do particular quanto a atuação do Poder Público, quer pela presença do incentivo enquanto meio de engajar o particular na execução de políticas definidas no plano. Vem, afinal, a enfatizar a racionalidade como elemento nuclear da função planejadora, transcendendo a racionalidade econômica do liberalismo, tendo como critérios para sua aferição tanto os princípios e fundamentos da ordem econômica quanto os princípios e objetivos fundamentais da República, e versa o problema da legitimidade do plano enquanto expressão desta mesma racionalidade, no sentido de que, ao mesmo tempo que tem de inspirar a confiança dos agentes que na sua execução se vão engajar, não pode vir a ser convertido em meio de privatização do espaço público, em que toda a coletividade se venha a submeter à pura conveniência dos titulares do poder econômico.
A simples descrição, pois, do conteúdo é suficiente para atestar o valor da obra, elaborada fora do compromisso com teses defendidas em juízo ou com a militância político-partidária, buscando, antes e acima de tudo, o aclaramento dos conceitos mediante os quais oferece o constituinte os elementos para a solução dos conflitos de interesses que se manifestam na sociedade a que se dirige. Faço uma forte ressalva ao título, pois não se me afigura correto falar em um Direito Constitucional Econômico: o que se tem, mesmo, é o tratamento do Direito Econômico em uma das suas fontes, a mais importante no âmbito do Direito interno, que é a Constituição. Mas, independente disto, é uma obra de grandes méritos, que enaltece tanto o autor como a Universidade que lhe veio a outorgar o título.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Políticas públicas, reserva do possível e Constituição

COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e controle de juridicidade - vinculação às normas constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010.




A obra que ora se resenha tem origem na dissertação de mestrado defendida pela autora, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e vem a trazer uma contribuição ao debate de vários temas polêmicos que se vão descortinando na paisagem que circunda o caminho por ela trilhado, em relação a esta preocupação dos limites e possibilidades da concreção do Estado de Direito, tal como desenhado pelos Textos Constitucionais contemporâneos. O tema escolhido me é dos mais caros, tendo em vista que foi exatamente sobre ele que elaborei minha tese de doutoramento.




O texto principia por inserir a preocupação com o controle das políticas públicas no contexto do denominado "neoconstitucionalismo", que, a partir de "elementos metodológico-formais" - normatividade, superioridade e centralidade da Constituição no ordenamento jurídico como um todo - e materiais - "incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais" e o acolhimento nestes de proposições aparentemente conflitivas -, buscaria ofertar uma resposta às experiências totalitárias e autoritárias do século XX, refletindo sobre o papel da Constituição no sistema do direito positivo - sobre o qual se digladiam as vertentes substancialista e procedimentalista -, manifestando a preocupação com a sua efetividade. Destaca a contribuição de Konrad Hesse, comparando com o pensamento de Hermann Heller, no esforço de aproximação da Constituição jurídica da "Constituição real"; a ampliação da jurisdição constitucional como conseqüência da imunização dos direitos fundamentais às contingências das maiorias nos Parlamentos; o desenvolvimento de novos métodos de hermenêutica voltando-se sobretudo às disposições concernentes a prestações positivas e aos conflitos aparentes entre princípios ou entre regras. É a partir de tais premissas que se balizarão a formulação e a execução de políticas públicas.




Tomando os direitos fundamentais como fim último das políticas públicas, refere a presença, ao lado dos direitos civis e políticos, dos direitos sociais (englobando neste conceito tanto os direitos sociais stricto sensu, como os direitos econômicos e culturais), expondo, em relação a estes últimos, o problema da respectiva eficácia muitas vezes depender de uma ação estatal que demande toda a criação de uma estrutura burocrática e de recursos financeiros, de tal sorte que se relativizaria, embora não ao ponto de se conduzir, necessariamente, tal situação à sua inexigibilidade.




Em seguida, versa o despertar do interesse do pensamento jurídico pela temática das políticas públicas a partir do momento em que o ideal da "Constituição sintética" típico do século XIX vem a ser substituído pela inserção, no Texto Máximo, da previsão de fins a serem atingidos pelos Poderes constituídos, de tal sorte que amplos setores que antes só poderiam ter contato com a ordem jurídica na condição de infratores venham a ser alcançados na condição de sujeitos de direito. Tendo presente a inexistência de direitos sem custos - ainda que se trate dos clássicos "direitos de liberdade" -, aponta para o dado de que, a despeito da ampla liberdade assegurada ao poder constituído para a alocação dos recursos, escassos para o atendimento de todas as demandas que se fazem ao Poder Público, existiria um limitador para além do qual não poderia ir a amplitude decisória, que seria justamente a realização da dignidade da pessoa humana, entendida esta na acepção kantiana.




A vinculação das políticas públicas à realização do projeto posto no Texto Constitucional parte do pressuposto da adoção, em maior ou menor grau, da tese do caráter dirigente que tal Texto assume nos tempos atuais, com a redução, no seio do constitucionalismo contemporâneo, da margem de discricionariedade dos Poderes constituídos na definição de objetivos políticos, postos os fins e, muitas vezes, os próprios meios, em caráter permanente, na Constituição. Embora ainda presente uma certa liberdade de conformação, para que as instâncias democráticas, ao se alternarem no poder, implementem os programas pelos quais foram investidos, e não se invista o Judiciário na condição de substituto das instâncias eletivas, a verificação da ultrapassagem dos balizamentos postos constitucionalmente, o descumprimento efetivo da Constituição pelas omissões, o atendimento das escolhas já feitas pelo Legislativo e pelo Executivo passa a ser objeto do controle jurisdicional, de tal sorte que são fixados os seguintes objetos sobre os quais este vem a incidir: (a) controle do estabelecimento de metas pelo Poder Executivo e Legislativo (não se confundindo com o estabelecimento de metas por parte do Judiciário como substituto dos outros dois); (b) o resultado final das politicas em determinado setor; (c) o atendimento aos percentuais constitucionalmente vinculados para a implementação de determinadas políticas, como as de educação, saúde e desenvolvimento da ciência e tecnologia; (d) a concretização das metas fixadas pelo próprio Governo; (e) a aferição da eficiência mínima na utilização dos recursos destinados à implementação das políticas públicas. O uso de tais parâmetros é exemplificado por julgado da Corte Constitucional da África do Sul sobre o direito de moradia, no qual o Governo daquele país foi condenado pela ausência de um programa de moradias apto a concretizar tal direito, assegurado na Constituição respectiva, sem que isto implicasse condenar o Poder Público a ofertar casa de moradia a cada habitante.




A simples descrição dos temas versados em cada capítulo revela, por si só, a indispensabilidade desta obra, sobretudo diante de discursos voltados à deslegitimação do Welfare State. Particularmente importante a passagem em que escande a obra de Sunstein & Holmes a respeito dos custos dos direitos, demonstrando, empiricamente, que um Estado liberal não seria, necessariamente, mais "barato" que um Estado intervencionista (p. 99), desmontando, assim, uma das falácias que tiveram largo curso durante a última década do século XX e a primeira década do século XXI. O exemplo invocado, da Corte Constitucional Sul-Americana, traz um dos mais ricos temas do Direito Econômico, que é justamente a política relativa ao setor habitacional, que no Brasil, no século XX, oscilou sensivelmente entre o assegurar moradia e o estimular a construção civil, e lança luzes sobre a concreção do direito à moradia enquanto direito social acrescido ao rol posto no artigo 6º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 26. Claro que existem pontos de divergência: não me parece, por exemplo, superado o positivismo, propriamente dito, quando se toma a Constituição enquanto parâmetro para solucionar os conflitos de interesse, mesmo em relação a políticas públicas, tendo em vista que a Constituição, seja no que tange a disposições expressas, seja no que tange ao que nela está implícito, e que se infere mediante os princípios, integra o direito positivo: o que, para mim, está superado é o prisma exclusivamente legalista, que no Brasil muitas vezes fez com que o Texto Constitucional fosse desprezado em nome da normatividade de inferior hierarquia. Também não identifico a eficiência com a economicidade, dado que compreendo esta, na mesma linha que o Prof. Washington Peluso Albino de Souza, a partir de Max Weber, enquanto linha de maior vantagem. Mas, de qualquer sorte, a importância do tema e os méritos do trabalho aí estão, para que sejam debatidas as questões nele postas, sem que se possa ficar indiferente a qualquer das passagens nele contidas.

sábado, 29 de agosto de 2009

A EFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO NO JUDICIÁRIO PARA ALÉM DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

RÊGO, Bruno Noura de Moraes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.

A grave lacuna deixada, muitas vezes, pela impossibilidade de se examinar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, a violação de determinadas normas constitucionais, conduzindo, em razão disto mesmo, aos caminhos mais lentos e tortuosos do controle difuso, conduziu à criação da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Com efeito, surgem situações em relação às quais a ausência de um remédio mais pronto fizeram com que explodissem conflitos judiciais da mais variada natureza: o atentado ao plano plurianual, à lei de diretrizes orçamentárias e ao orçamento, por exemplo, constituem crimes de responsabilidade. Entretanto, e na hipótese de haver neles alguma inconstitucionalidade, considerando que não são tidos como diplomas aptos a autorizarem o controle em sede de ação direta, de acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal? A discussão acerca do que constituiria ou deixaria de ser preceito fundamental, e a própria compatibilização de tal discussão com o entendimento remansoso do Supremo Tribunal Federal acerca da inexistência de hierarquia entre as disposições constitucionais, ainda que aparentemente contraditórias entre si, vem, de outra parte, a atrair diretamente o interesse do juseconomista, além do constitucionalista, tendo em vista que o fenômeno das aparentes antinomias nos Textos Constitucionais emerge com freqüência no que tange ao tratamento dos temas econômicos. Por outro lado, inúmeros atos legislativos de vigência transitória, mas cujos efeitos se protraíram no tempo, como é o exemplo clássico da retenção de ativos financeiros que se verificou de 1990 a 1992, ficaram sem um pronunciamento definitivo acerca da sua validade em face do Texto Constitucional. Para situações desta natureza, em que a própria vontade do povo manifestada nas urnas correria o risco de ser desautorizada, com o comprometimento do equilíbrio entre os Poderes da República, em que se sopesam os limites entre o atendimento a interesse transindividual juridicamente relevante e a preservação dos direitos individuais, como sói acontecer em todas as questões envolvendo políticas públicas, que se constituiu o remédio da argüição de descumprimento fundamental. O autor, mestre pela Universidade de Brasília e Professor no Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB, registrando as incertezas geradas na doutrina acerca do alcance do instituto previsto no § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, regulamentado pela Lei 9.882, de 1999, procura situá-lo dentro do quadro das ações constitucionais, bem como a própria caracterização por ela assumida no sistema de controle de constitucionalidade, apontando as dificuldades encontradas quanto à constitucionalidade mesma do remédio, na medida em que reforça, mediante atuação do legislador ordinário, o sistema concentrado em detrimento do sistema misto de fiscalização da constitucionalidade. As dificuldades teóricas resultantes, sobretudo, de ainda não haver sido precisado o caráter da argüição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal são enfrentadas com brilho pelo autor, embora, evidentemente, haja alguns pontos de franca divergência, como, por exemplo, a questão de ter o legislador ordinário, sem manifestação do poder constituinte derivado, criado nova modalidade de controle concentrado, quando, a juízo deste resenhista, a lei disciplinadora da ADPF apenas veio a conferir eficácia ao § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, bem como a questão do alegado per saltum, quando o que se tem na ADPF é apenas a solução da questão de direito, ficando ao juiz de primeiro grau a plena possibilidade de apreciação dos fatos a serem reconstituídos.

domingo, 9 de agosto de 2009

POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERESSE TRANSINDIVIDUAL

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas - parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, 238 p.

Muitos dentre os dogmas do constitucionalismo clássico, fortemente influenciados pela doutrina do Direito Administrativo, no sentido da caracterização das questões políticas, por vezes, têm levado os estudiosos a verdadeiro estado de perplexidade, considerando os próprios pressupostos teóricos do Estado de Direito, voltado a reduzir ao máximo o espaço da vontade puramente subjetiva de quem exerce o poder público. Por outro lado, o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais rendeu ensejo a que se viesse a falar na necessidade de uma atuação positiva do Estado, inclusive mediante a formulação de políticas, para o fim de sua implementação. Por esta razão, procurando enfrentar as objeções habituais, o autor, Promotor de Justiça na Comarca de Natal/RN, traz a sua experiência pessoal para o debate acadêmico e centra o debate nos modos como as políticas publicas podem ser controladas, quer no que tange à formulação, quer no que tange à execução, quer no que tange, mesmo, à respectiva transparência. Sem deixar de referir os mecanismos de controle político e social, máxime tendo em vista os progressos da idéia da democracia participativa, aponta para os limites e possibilidades do controle jurisdicional, com especial destaque para a ação civil pública. Refutando o surrado argumento de que os direitos individuais não ultrapassam a noção de direitos de defesa, que apenas exigem a conduta negativa do Estado, bem como o próprio argumento falaz dos custos como obstáculos para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, e delimitando adequadamente os pontos que, efetivamente, traduziriam o domínio reservado dos Poderes providos em caráter eletivo, reforçando sua argumentação com exemplos da própria legislação recente, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus artigos 48 e 49, enfatizando o caráter normativo da Constituição como base de seu raciocínio, trata-se de obra cuja leitura se torna obrigatória, a despeito, evidentemente, de alguns pontos passíveis de debate que não empanam o mérito da obra, como, por exemplo, ao considerar que a possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas seria decorrência da superação do positivismo e não, tão-somente, do legalismo privatista típico da Escola de Exegese, uma vez que em asserções como esta vem revelado um inconsciente compromisso com a tese de que a Constituição não integraria o direito positivo. Mas, como dito, não se tem empanado o mérito da obra e, mais do que isto, vem ela como um auxílio ao bacharel formado para o praxismo burocrático e que, por vezes, ao se deparar com um problema que escapa aos velhos formulários, vem a cair num estado de perplexidade e não consegue descobrir sequer a formulação da questão jurídica pertinente, quanto mais a solução mais adequada. Todos os motivos, pois, para se receber alvissareiramente esta obra e quantas se dediquem a este tema, na constante busca da redução do espaço do arbítrio.
O tema, em relação ao Direito Econômico, mostra-se de grande relevância, considerando tratar este precisamente das medidas de política econômica, tanto no que tange à forma pela qual vêm elas a ser implementadas - medidas provisórias, leis, decretos-leis, decretos - como no que tange aos parâmetros constitucionais para sua implementação e, ainda, os efeitos sobre as situações jurídicas já definidas. Embora se entenda tradicionalmente que se trata de domínio reservado aos Poderes "Políticos", o fato é que tais medidas, para serem implementadas, têm, necessariamente, de vir à luz mediante algum ato jurídico, e, se ao Judiciário é vedado ingressar no mérito das medidas, no sentido de se dizer se elas são "boas" ou "más", o controle da respectiva juridicidade não está a ele interditado. Por outro lado, dentro da linha que adotei em minha tese de doutoramento (Direito Econômico - aplicação e eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001), a partir da doutrina de Washington Peluso Albino de Souza e Ronaldo Cunha Campos, não existe somente a política econômica pública, porquanto o particular também formula e põe em prática medidas como as fusões, incorporações, as joint ventures e tantos outros expedientes para a conquista de mercados e enfrentamentos - e, mesmo, eliminação - da concorrência -, sem contar com o dado de que, no seio da política econômica pública, não são somente o Executivo e o Legislativo que as formulam e executam, porquanto o Judiciário, ao firmar jurisprudência em torno do meio mais adequado para conferir maior celeridade à cobrança de determinados créditos ou mesmo quando adota a política de auto-restrição não deixa de o fazer.
Bem se vê, pois, o quanto se vai reduzindo a aparente estranheza das relações entre o Direito Processual e o Direito Econômico, ainda que não se marche para um Direito Processual Econômico, quando se verifica a recorrência do enfrentamento deste tema.

terça-feira, 9 de junho de 2009

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E RESPONSABILIDADE FISCAL

ASSONI FILHO, Sérgio. Transparência fiscal e democracia. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009.

Com a queda do Muro de Berlim em 1989, a questão do déficit público passou a ser o centro das preocupações da política econômica, uma vez que o desmoronamento de tais regimes, que, ao lado dos cerceamentos às liberdades políticas, eram baseados numa direção estatal da economia, veio a ser considerado fator de legitimação suficiente para o movimento de retração da presença estatal, apontando-se, demais disto, para o peso excessivo de tal presença, traduzindo-se em tributação sobre os agentes privados. De outra parte, considerando-se o problema da malversação dos recursos públicos invocado como meio de racionalização para a conduta da recusa de atendimento ao dever de pagar tributos e da própria questão ainda não resolvida acerca da amplitude da participação no exercício do poder a ser assegurada, observa-se que a questão do tratamento das finanças públicas viria a assumir uma dimensão muito além do meramente técnico-contábil.

Foi neste contexto, resumido apertadamente no parágrafo anterior, que às normas gerais de Direito Financeiro vigentes no País desde 1964, assomou a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”. Este mesmo diploma, outrossim, é o que rende ensejo à obra que ora é resenhada, versão comercial da tese de doutoramento do autor, defendida na Universidade de São Paulo em 2008, que inicia suas reflexões a partir de uma premissa posta por Teilhard de Chardin, no sentido de que a ordem democrática seria a única apta a garantir a realização dos ideais de “personalização” – assim compreendidas as possibilidades de cada qual perseguir livremente as suas aspirações e ideais – e de “organização” – assim compreendida a oferta de estruturas aptas a permitirem o acesso de cada qual, na medida de sua capacidade, à possibilidade de contribuir na conformação das relações da sociedade em que vive -, centrando o seu foco na democracia enquanto processo de formação das decisões governamentais, em que há mister a presença de moderada tensão entre as forças políticas contendoras para que possa, efetivamente, funcionar, embora a própria noção de autoridade não seja derruída. Considera que o sistema de valores, para que se pretenda democrático, haveria que se fundar no binômio liberdade/igualdade, desenvolvendo suas reflexões a partir de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Jean-Jacques Rousseau, Raymond Aron, Georges Burdeau e Isaiah Berlin, para demonstrar a distinção entre a liberdade natural do indivíduo e a liberdade exercida no meio da sociedade, que se vem a manifestar pelo princípio da maioria, em que a autonomia individual se coloca em convívio com a possibilidade igual de participação no exercício do poder, a fim de se evitar que medidas arbitrárias sejam impostas a qualquer pessoa submetida à autoridade estatal. Passa a examinar as instituições criadas para a viabilização do processo democrático, iniciando pela Ágora ateniense, onde os cidadãos a exerciam em caráter direto, sob as críticas de filo-aristocratas como o historiador Tucídides, o comediógrafo Aristófanes e o filósofo Platão, passando, após séculos de compreensão de poderes “absolutos” nas mãos dos governantes, pela atribuição a órgãos a serem preenchidos por indivíduos escolhidos pelo povo como os mais aptos a falarem em seu nome, exprimindo a vontade geral, com a criação, ainda, de entidades intermediárias que representariam as visões de mundo que se pretenderia ver convertidas em inspiradoras de políticas públicas – os partidos políticos -. A inviabilidade da colheita direta da vontade geral, tendo em vista o crescimento populacional, a complexidade das relações sociais e a grande extensão territorial de alguns dos Estados teria sido a responsável pela criação das instituições que viabilizaram a democracia representativa ou indireta, embora esta, também, não se veja isenta de problemas que o autor aponta com lastro em Anthony Downs, Joseph Schumpeter, Charles Lindblom, Carl Becker, Norberto Bobbio, Karl Loewenstein, John Randolph Lucas, Anthony Arblaster, Maurice Duverger, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Pontes de Miranda, que consistiriam no caráter basicamente individualístico da disputa dos partidos pelo poder, no controle recíproco a partir das trocas de favores, o atendimento, pelos políticos eleitos, dos pequenos grupos sociais que constituem a sua base, que podem não corresponder ao de toda a coletividade, a tendência ao estabelecimento de situações de privilégio para determinadas lideranças partidárias, o esvaziamento dos compromissos ideológicos dos programas dos partidos, de tal sorte que todos, praticamente, vêm a se converter em meras pontes para a conquista do poder para pessoas integrantes de determinados grupos e não em nome de determinados valores, na influência dos meios de comunicação no processo eleitoral e, mesmo, na conformação da opinião pública acerca do modo de gerir a res publica mediante o emprego das técnicas propagandísticas, a ascenção da tecnocracia e da burocracia, reduzindo não só a celeridade no atendimento, por parte do Poder Público, às demandas do cidadão como também o próprio espaço franqueado ao debate, ante a exigência de conhecimentos técnicos para a solução de problemas cada vez mais complexos. Com lastro em Raymond Aron e Giovanni Sartori, observa que mesmo estes problemas não invalidariam as instituições próprias da democracia representativa, porquanto permitiriam a organização da competição entre as facções que pretendam a conquista do poder, arredando os meios arbitrários e violentos que caracterizam as revoluções e golpes de Estado, apresentando-se como uma solução para o impasse a combinação de elementos da democracia representativa com elementos da democracia direta, caminhando-se para a democracia participativa, mercê da qual canais de participação direta e voluntária convivam com as instituições políticas inerentes ao modelo representativo, invocando como teóricos defensores desta modalidade de síntese Tarso Genro, Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato, Adam Przeworski, Susan Stokes, Bernard Manin, Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer. Passa a investigar a base sócio-econômica do Governo democrático, observando a necessidade da difusão dos valores em que este se fundamenta mediante o processo educacional e a efetivação da cidadania a partir do momento em que a nenhum indivíduo submetido à autoridade do Estado seja sonegada a garantia do mínimo vital e das condições para que cada um possa desenvolver plenamente a sua personalidade, de tal sorte que se possam reduzir as tensões que, fora de um patamar máximo de controlabilidade, poderiam colocar em risco as instituições que asseguram, inclusive, o funcionamento do mercado. Aponta, ainda, para o esmaecimento da distinção entre o poder econômico e o poder político, em virtude da formação de estruturas empresariais nascidas do processo de concentração, que vêm a, em nome dos respectivos interesses comerciais, a comprometer inclusive a soberania dos Estados, e cujo dique estaria, justamente, na efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, buscando a redução das desigualdades sócio-econômicas. Alerta, com base em Pareto, para a impossibilidade prática de uma ordem social estável, trabalhando, antes, com uma perpétua mutação que se estabelece em ritmos diferenciados, destacando o processo democrático enquanto o mais apto a assegurar o ritmo mais célere na eliminação dos obstáculos ao desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo que vive em determinada sociedade, de tal sorte que – consoante C. B. MacPherson – estes mesmos indivíduos não mais se vejam como meros consumidores de produtos prontos para se converterem em atores das histórias respectivas.

No capítulo seguinte, cuida da participação do cidadão na Administração Pública enquanto atividade exercitada uti universi, isto é, do cidadão buscando levar a sua contribuição ao todo social a partir de um interesse que transcende a sua utilidade individual e exclusiva, pela possibilidade de fruição dos resultados do atendimento ao interesse de toda a coletividade, invocando como referência a lição de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón Fernandez. A presença do cidadão no contribuir para as decisões estatais, que, no entanto, continuam com as instituições construídas para o funcionamento da democracia representativa, teria como efeito pedagógico, no ver do autor, a possibilidade de o cidadão comum discernir entre as medidas que realmente viriam em benefício do público daquelas que teriam como objetivo unicamente comprar simpatias, entre o que seria necessário para que a sociedade se desenvolvesse harmonicamente e as medidas de caráter meramente clientelista, que pressuporiam uma postura de passividade do cidadão diante do Estado. Caracteriza o novo paradigma do Estado Democrático como poliárquico, em que os centros de poder se encontrariam difusos pela sociedade e a oposição, enquanto voz das minorias, enquanto dissenso necessário para se evitar que a própria maioria se convertesse em tirania, trabalhando a idéia de participação cidadã enquanto direito humano previsto no artigo 25 da Resolução 2.200-A XXI da ONU, de 1966, traduzida na busca de um “consenso decisório quanto aos rumos a serem seguidos pelo Estado-Administração a bem da coletividade” (p. 55). Por implicar a idéia de participação a aproximação entre os que se submetem ao poder estatal e os que estão investidos neste, tem-na o autor como inseparável do princípio da publicidade, que impõe sejam ofertadas à população informações suficientes acerca dos grandes problemas que ocorrem no território onde o poder é exercido e da adequação das soluções que lhes serão ofertadas. A publicidade vem, pois, a converter-se em “transparência administrativa”, pela qual a população vem a obter as informações que lhe possibilitem as discussões acerca do que se entenderia como o legítimo interesse público. Visualiza, em função disto mesmo, na efetivação do princípio da transparência administrativa a constituição da denominada “esfera pública não estatal”, em que movimentos, associações e organizações das mais diversas orientações, mesmo sem vinculação com as estruturas do poder político, vêm a ter aptidão para verem suas aspirações convertidas em políticas públicas. Tal participação, outrossim, vem a ser trabalhada a partir de espaços assegurados pela ordem jurídica a que os próprios súditos venham a colaborar na conformação desta. Numa palavra, a ordem jurídica, enquanto expressão da vontade geral, vem a ser tratada como resultado da autodeterminação dos indivíduos que vêm participar na elaboração dos diplomas normativos. Identifica como matrizes no âmbito constitucional, em caráter mais geral, no Brasil, a consagração do direito de qualquer cidadão ter acesso a informações de caráter individual ou geral, a consagração dos princípios da publicidade e da moralidade administrativa, a previsão do direito de reclamar acerca do funcionamento dos serviços públicos, do direito de acesso aos registros administrativos e informações concernentes aos atos governamentais e do direito de representação contra o exercício negligente ou abusivo de funções públicas por parte dos respectivos agentes, e como disposições específicas, além da clássica formulação concernente ao poder emanar do povo e ser exercido por este direta ou indiretamente, traz à balha as concernentes à participação no processo legislativo, mediante o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular - destacando projeto de lei elaborado por Fábio Konder Comparato em relação à regulamentação de tais institutos -, a previsão constitucional de colegiados públicos no que tange à gestão do Sistema Único de Saúde, da seguridade social e da educação, as audiências públicas, adotadas em primeiro lugar pelo Legislativo e estendidas aos demais Poderes.

No capítulo subseqüente, fixando como premissa a atuação do Estado-Administração como norteada ao atendimento das necessidades públicas, forte na autoridade de Regis Fernandes de Oliveira, refere o próprio fundamento para o exercício da atividade financeira pública, na qual o orçamento, ao contrário do que ocorre no âmbito particular, onde tem o caráter de um negócio jurídico declarativo, vem a ser conteúdo de diploma legislativo enquanto personificação de um programa de ação governamental. A participação popular direta na elaboração do orçamento público é vista como instrumento de combate à corrupção e ao clientelismo, com a mais efetiva verificação da gestão dos recursos obtidos coativamente aos contribuintes. Tal participação, outrossim, vem a se mostrar mais efetiva quanto mais próximo o centro do poder da população, com o que a autonomia municipal e a forma federativa de Estado lhe forneceriam o ambiente mais propício para frutificar e põe na ordem do dia a responsabilidade do gestor perante esta mesma população. A partir daí, inicia as reflexões em torno do conceito de sociedade civil enquanto parcela da sociedade que se vem a organizar com o propósito de influir nas decisões que se materializarão como políticas públicas, centrando sua análise na definição da própria gestão dos recursos aptos a materializarem tais decisões, recordando, sempre, que os gastos públicos têm como principal fonte de financiamento os próprios usuários efetivos ou potenciais do serviço público, e que esta realidade se torna mais patente em se tratando do financiamento de políticas locais, em que a maior palpabilidade dos resultados teria como efeito o estímulo maior à participação popular. A descentralização dos recursos públicos, portanto, é posta pelo autor como meio mais eficiente de permitir a conscientização da importância da participação direta da população na gestão desses mesmos recursos. Indica, ainda, o papel desempenhado pelo associativismo na formação de uma cultura de participação, evoluindo desde a reclamação pelo reconhecimento de direitos para assumir um caráter propositivo em relação às políticas públicas e fiscalizatório em relação à atuação dos agentes públicos. Observa o papel desempenhado pelos espaços associativos enquanto canais que se abrem diante de lacunas nos espaços oferecidos pelo próprio Estado, distinguindo entre grupos de promoção e grupos de interesse, com base em classificação de Ferrando Badía, e verificando os limites entre as estratégias “legítimas” de convencimento dos agentes políticos estatais e as estratégias “ilegítimas”, próprias do lobbyismo. Considera que a eficiência da participação popular exige a presença de uma rede associativa apta a se contrapor a práticas de natureza clientelista. Nota, ainda, o papel da participação da coletividade no controle das possibilidades de desvios no exercício do dever-poder de gestão do erário público, relacionando, assim, a responsabilidade na gestão fiscal com o controle social. Refere a presença de uma enorme gama de controles no âmbito financeiro, examinando o papel do Tribunal de Contas e do Ministério Público, bem como as respectivas limitações, confrontando-os ao controle exercido diretamente pelo povo, trazendo, por fim, as previsões abstratas de sanções para assegurarem a efetividade do desiderato da responsabilidade na gestão fiscal.

Retomando a idéia da maior efetividade da democratização das decisões em um contexto federativo, lançando como premissa básica observação de Aléxis de Tocqueville, comparando a forma de Estado dos EUA com os Estados unitários da Europa, desenvolve também teses em torno da mais pronta resposta para os problemas pela instância de poder mais próxima e, mesmo neste caso, que esta dê preferência pela oferta de condições para que a sociedade resolva por si os problemas: numa palavra, também a participação possibilitaria a concreção do princípio da subsidiariedade. Considera a descentralização das finanças como meio indispensável a dotar de uma real autonomia os entes federados locais, discutindo as características do federalismo brasileiro, trabalhando, sob o aspecto fiscal, tanto a sistemática da repartição das competências tributárias como da participação das entidades menores no produto da arrecadação das maiores. Observa, também, o papel da disciplina da distribuição das receitas pelas entidades federativas tanto no estabelecimento do equilíbrio entre estas – que não estão em relação de hierarquia umas com as outras, diversamente do que ocorre em Estados unitários descentralizados - como no conferir maior visibilidade ao Poder estatal para os cidadãos, principalmente no que tange aos Municípios. Enfatizando o controle social das finanças públicas como poderoso instrumento de aproximação entre governantes e governados, trabalha a presença destes na escolha de prioridades a serem satisfeitas mediante os recursos disponíveis, normalmente, escassos para o atendimento de todas as necessidades públicas. Menciona, ainda, dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro que permitiriam à população a supervisão direta da sociedade em relação à atividade financeira dos entes locais e debate a experiência do orçamento participativo. Discute as vicissitudes do processo de emancipação de Municípios, que, a princípio, seria a própria manifestação de um grito de independência de coletividades que manifestariam pontos aptos a constituírem uma identidade comum, distinta daquela do Município-mãe, e que ao cabo vieram a ser motivadas, antes, pela possibilidade de obtenção de transferências de recursos das entidades federadas maiores – a União e os Estados em que se localizam – e com as finanças voltadas, basicamente, à manutenção do aparato burocrático das novéis entidades muito mais do que ao benefício das populações respectivas, com o que seria necessário evitar o paradoxo em que se converteram as emancipações antes da Emenda Constitucional n. 15, que de afirmação de autonomia vinham, antes, a confirmar e reforçar a dependência em relação às autoridades maiores.

Debatida a relação entre o federalismo fiscal e a democracia participativa, procura-se desenvolver o conceito de controle social orçamentário, no sentido de render ele ensejo à formação de uma esfera pública não-estatal, paralela ao poder constituído, não no sentido de desestabilizar a este, mas de dar aos governados a possibilidade de um monitoramento constante da atuação dos políticos, de tal sorte que estes assumam a responsabilidade pelo atendimento a reivindicações que, a despeito de corresponderem a necessidades sentidas pela coletividade, não ingressam na agenda política tradicional. O compromisso político passa a ser, assim, com os reais anseios dos cidadãos que tragam as suas pretensões aos poderes constituídos e dele vêm a realizar a cobrança. Ainda que não haja disposição constitucional expressa acerca do controle social orçamentário, sua consagração mediante diplomas como a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto da Cidade não se mostraria, entretanto, incompatível com a consagração da democracia representativa enquanto princípio constitucional sensível, com o que a capacidade de avaliação das prioridades, no momento da decisão, ainda permanece com os Poderes Públicos: o que não pode deixar de ocorrer é a oportunidade para que as pretensões sejam apresentadas para o fim de que possam ser avaliadas e, se for o caso, incorporadas, prestando contas pelo não acatamento, dentro da linha da impossibilidade do exercício da atividade pública que não tenha como ser, pelo menos, explicado. A metodologia de trabalho, outrossim, nesta modalidade de controle, há de observar as peculiaridades de cada uma das localidades em que serão realizados os investimentos públicos. De outra parte, com o reconhecimento da essencialidade da partilha do Governo entre governantes e governados à plena realização dos direitos fundamentais e da lição de Regis Fernandes de Oliveira no sentido de que tal realização pressupõe a tomada de decisões acerca dos instrumentos e dos recursos financeiros aptos a viabilizá-los, sustenta que a participação da comunidade na eleição das prioridades vem a ser meio apto a conferir-lhes concreção, colocando-se o próprio soerguimento da “reserva do possível” no âmbito da efetiva demonstração do fato impeditivo (a ausência de recursos suficientes) ao atendimento da pretensão. A prática do controle social orçamentário vem a permitir a elevação à condição de princípio a transparência na gestão fiscal, embora já estivesse ela, de certo modo, presente em metáfora do Conde de Cavour referida em passagem de Francesco Nitti que o autor transcreve e subscreve. Recorda, outrossim, algumas dificuldades para que se mostre efetiva a participação enquanto manifestação do controle social decorrentes não só do dado de as três leis referentes à programação financeira do Estado serem de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo como também da possibilidade de abertura de créditos adicionais, de contingenciamento de verbas, da edição de leis autorizativas do remanejamento de recursos, o poder de veto a alterações operadas no seio do Legislativo, da concentração, no seio dos Ministérios e Secretarias da Fazenda, das informações concernentes às possibilidades concretas do erário, da ausência de garantia de implementação concreta das emendas, e que geram, na relação entre o Executivo e o Legislativo, uma verdadeira marca de clientelismo. E é exatamente em função destas dificuldades que se aponta para a necessidade de se consolidarem canais associativos para o fim de aumentar a capacidade de fiscalização exercitável pela sociedade, sugerindo-se, ainda, a adoção de procedimentos que permitam a utilização de índices objetivos para se poder mensurar a intensidade com que tais ou quais pretensões merecerão ser atendidas prioritariamente a outras, bem como a abertura da possibilidade de apresentação de emendas populares aos projetos de leis orçamentárias.

A seguir, vem a trabalhar a concepção da responsabilidade fiscal a partir da necessidade de superação de uma visão estritamente formalística do monitoramento das contas públicas, para se chegar, mesmo, à responsabilização caso as demandas sociais não tenham sido, efetivamente, atendidas pela destinação de recursos públicos. Esta concepção que torna a participação popular na formulação das leis financeiras básicas e na busca da responsabilização dos agentes públicos elemento essencial do conceito de “transparência fiscal” teria sido adotada por todos os países que empreenderam a implementação dos programas de ajuste fiscal e mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, a partir de meados da década de 90 do século XX. São esmiuçados os instrumentos fiscais de participação cidadã, desde as audiências públicas e a divulgação das informações acerca das despesas realizadas pelo Poder Público e das disponibilidades por todos os meios – inclusive eletrônicos – em linguagem acessível a não-iniciados, passando pelo estabelecimento de prazo mínimo para que as prestações públicas de contas fiquem à disposição dos cidadãos, a indicação das medidas tomadas para assegurar a busca de receitas suficientes para a prestação de serviços públicos e concecução de políticas por parte do Poder Público, enfatizando-se, mais, o problema das renúncias fiscais inconseqüentes. São debatidas as questões concernentes à responsabilidade dos ordenadores de despesas, enfocando as sanções previstas tanto no plano estritamente financeiro, na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, como no âmbito da probidade administrativa e dos crimes de responsabilidade, especialmente no âmbito municipal.

Por fim, um capítulo sobre a disciplina da transparência fiscal no direito comparado, enfocando os diplomas da Nova Zelândia, da Austrália e do Reino Unido, enquanto inspiradores da filosofia da legislação voltada à tutela da responsabilidade na gestão fiscal adotada na maior parte do mundo, e da Argentina, enquanto país em desenvolvimento, em situação similar à brasileira.

A participação direta da população no exercício do Poder, vista, no início de sua discussão no Brasil, como reprodução do estado de natureza, em que o povo ia às ruas e tudo, para as paixões desenfreadas, vinha a ser permitido, passa a ser considerada, antes, como algo necessário e essencial, deixando ao largo, assim, a rotulação partidária que tantos prejuízos provocou nas reflexões sobre o tema. E esta obra é o feliz exemplo de superação de tal preconceito. Não que esteja ela isenta de observações que, longe de traduzirem indicação de defeito, vêm a indicar, apenas, abrir espaço para o debate. É de se salientar que a obra poderia ver-se enriquecida se tivesse sido objeto de suas reflexões não só a contribuição de Paulo Bonavides (cuja Teoria da democracia participativa, de 2003, é referencial obrigatório) e de Washington Peluso Albino de Souza (com suas reflexões sobre a economia concertada, datadas já do início da década de 70, no seu artigo Direito Econômico do planejamento e retomada tanto no seu Direito Econômico, de 1980, como nas sucessivas edições de suas Primeiras linhas de Direito Econômico), como também a jurisprudência, inclusive, dos Tribunais Superiores a respeito do tema da participação no exercício do Poder Público – limitado que está apenas a dois julgados do Excelso Pretório do início da década de 90 (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 854/RS e medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 821/RS), quando não só ele (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.217/RS; medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.381/RS) como mesmo o Superior Tribunal de Justiça trouxeram uma riquíssima contribuição neste particular, quanto à compreensão da democracia participativa à luz do ordenamento constitucional brasileiro -. Talvez se explique a omissão pela matriz doutrinária seguida pelo autor, que tem os seus marcos fixados pelas reflexões apresentadas por Manoel Gonçalves Ferreira Filho em seu A democracia possível, no âmbito do Direito Constitucional, por Juarez Freitas, no âmbito da Filosofia do Direito, e por Régis Fernandes de Oliveira, no âmbito do Direito Financeiro. De qualquer sorte, não há espaço para a indiferença em relação a esta obra.

sábado, 9 de maio de 2009

LEGISLAÇÃO, INFORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da legislação – formação e conhecimento da lei na idade tecnológica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.

Hoje em dia, parece não haver controvérsia quanto a traduzir uma ficção jurídica destinada a assegurar o cumprimento da lei o disposto no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, quanto a ser ela de conhecimento obrigatório. Entretanto, a sua caracterização como expressão da vontade geral tem-se buscado, conforme a célebre sentença de Rousseau, o mais possível, aproximar da realidade, com a participação popular direta na sua formação. Com o aumento da eficiência dos meios de comunicação, nos últimos tempos, particularmente pela INTERNET, a possibilidade de se dar conhecimento da legislação em tempo mais curto, e também de uma participação mais efetiva, com a superação das barreiras de comunicação, com a troca de informações, torna-se maior, mas, paradoxalmente, em face de um grande contingente de excluídos, que não teriam acesso sequer à energia elétrica, indispensável para o funcionamento dos computadores, torna-se um real desafio a própria universalização destas oportunidades. Estes temas traduzem a preocupação central da obra que a Profa. Fabiana de Menezes Soares apresentou a exame, para a obtenção do título de Doutora, perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, e que hão de chamar a atenção de todo jurista que esteja voltado àquela atitude de verificar a constante adequação dos conceitos aos fatos observados, ao invés de forçar o enquadramento dos fatos em conceitos que, muitas vezes, sobrevivem apenas por força da tradição. Conheço-a desde o início do seu curso na Casa de Afonso Pena, em 1987, e vejo nesta obra a realização do potencial que já então mostrava a característica do verdadeiro jurista, que, ao invés de sair a inventar teses por mero deleite intelectual, desprezando todo um patrimônio cultural construído ao longo de séculos ou a construir altares reverenciando fanaticamente a alguns monstros sagrados, procurava testar a solidez de cada proposição, até que chegasse ao ponto que a satisfizesse – Fabiana gostava de fazer perguntas difíceis, e gosta de se lançar a resolver problemas difíceis -. Claro que não há total convergência de posicionamentos entre o resenhante e a autora da obra resenhada, a começar pelos referenciais teóricos – a influência hegeliana que marca várias das passagens é um ponto em que não estamos de acordo -, mas isto não impede o reconhecimento do valor da obra em questão, da excelência da fundamentação, do estilo leve e agradável – o que é raro no jurista do século XX – e, por outro lado, do pleno acordo que temos em relação à participação como um valor, superando a concepção puramente coativista do Direito.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

POLÍTICAS PÚBLICAS NO JUDICIÁRIO

SANTOS, Marília Lourido dos. Interpretação constitucional no controle judicial de políticas públicas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.

Quando elaborei minha tese de doutoramento a respeito dos mecanismos de efetivação jurídica das medidas de politica econômica, defendida em 1996, mostrava-se a busca de bibliografia um verdadeiro desafio, diante do preconceito arraigado no sentido de constituírem políticas de governo, reservadas, pois, ao domínio do Poder Executivo, a despeito dos próprios pressupostos do Estado de Direito, com todas as suas variantes. Daí por que a vinda a lume desta dissertação de mestrado tem todos os motivos para ser saudada. A questão enfrentada pela autora, Mestra pela Universidade Federal do Pará, é a do dilema que se coloca em relação à exigência de uma postura ativa do Estado na realização de políticas públicas que atendam às necessidades coletivas e, mesmo, na implementação de direitos, ao mesmo tempo em que se preserva a própria construção do Estado de Direito enquanto principal conquista do liberalismo. Trabalhando com a característica de indeterminação das soluções jurídicas para os problemas sociais, identificando como seus fatores a ambigüidade dos termos dos conceitos, que pode ser tanto semântica (polissemia de um vocábulo independentemente do contexto em que se insira - p. 29-32), como sintática (quando um vocábulo, no mesmo contexto, pode assumir diversos significados - p. 32-33), vagueza, que diz respeito às duvidas acerca das situações a que o enunciado seria aplicável, distinguindo entre a vagueza por gradação (p. 35-38), a vagueza combinatória (p.38-45) e a vagueza pela textura aberta (p. 45-48). Aponta, ainda, para o efeito de explicar a presença da "ambigüidade" e da "vagueza" nos textos normativos, especialmene constitucionais, a partir do emprego de conceitos essencialmente controvertidos (p. 49-51), colisões entre princípios e valores fundamentais (p. 51-61), o problema da incomensurabilidade dos valores entre si, que se vem a manifestar na necessidade de proteger uma pluralidade de valores (p. 62-63) e na existência de diferentes grupos sociais com interesses contrapostos (p. 63). Passa pela hermenêutica constitucional como instrumento de eliminação, a cada caso, destas incertezas, para enfrentar especificamente o problema engendrado pela consideração das políticas públicas, definindo-as como "conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um fim público" (p. 80), para versar o seu papel de viabilizadoras principalmente dos direitos econômicos, sociais e culturais, e as dificuldades decorrentes de doutrinas ligadas especificamente ao modelo de tripartição de poderes, como a insindicabilidade do mérito dos atos administrativos e das questões políticas (p. 89-91), por um lado, e a necessidade de se ofertar a máxima efetividade à Constituição, por outro. Entre estes dois pólos, situa a atuação do Poder Judiciário, resenhando julgados sobre temas como o direito à educação, o direito à saúde, o poder de concessão de isenções tributárias, e procura rastrear os pressupostos teóricos de tais julgados. Claro que não podem deixar de ser opostas algumas ressalvas ao texto: primeiro, ao considerar que o tema aponta para a insuficiência dos pressupostos teóricos da Teoria Pura do Direito (p. 24), supondo ser esta preconizadora de um método puramente silogístico, quando, em realidade, nela está posta a questão da impossibilidade de o cientista do Direito estabelecer qual, dentre os sentidos possíveis a serem atribuídos a determinada norma, seria o correto, reservada tal tarefa para quem ostentasse o papel de intérprete autêntico, dotado de poderes de individualizar a norma, tese que não contradiz o enunciado que a própria autora estampa na página 29, quanto à presença de dúvidas constantes acerca da correta interpretação dos textos normativos. Após adotar seu conceito de política pública, transcreve acriticamente conceito adotado por Fábio Konder Comparato, que se coloca em franco antagonismo com o seu, ao considerar que não se trata nem de atos nem de normas, mas sim de atividades (p. 94). Também não concordo com a tese segundo a qual os direitos individuais se caracterizariam pela exigência de uma posição omissiva do Estado, diversamente dos direitos econômicos, sociais e culturais (p. 73-74), porquanto a atuação da polícia para a proteção da propriedade traduz uma atuação positiva, ao passo que direitos como o de greve implicam uma abstenção estatal, consoante os recorrentes exemplos de Ingo Wolfgang Sarlet. Mas, de qualquer sorte, estes pontos não chegam a desvalorizar a obra, que traduz um esforço notável no sentido da superação de vestígios do absolutismo que ainda assombram o pensamento jurídico pátrio.