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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Controle de constitucionalidade, ativismo e segurança jurídica

TASCHETTO, Fernando Maicon Prado. As sentenças aditivas e as sentenças substitutivas - Direito italiano e brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016.

Um dos temas mais sensíveis nos últimos tempos, em termos de discussão do momento em que o poder de o juiz controlar a constitucionalidade de lei vem a resvalar em exercício de função legislativa, é enfrentado no texto ora resenhado, versão comercial da dissertação de mestrado que o autor defendeu perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Professor Luís Afonso Heck, cujo primoroso prefácio minudencia a estrutura da obra.

Os conceitos de "sentença aditiva", como aquela que reconhece a inconstitucionalidade em função de a disposição infraconstitucional haver concedido menos do que a Constituição pretendeu e, pois, conduz o Tribunal a completar o dado lacunoso, e de "sentença substitutiva", como aquela em que o Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade, vem a substituir a solução normativa infraconstitucional por outra, sem que se trate do denominado "efeito repristinatório" da pronúncia da nulidade da lei, provenientes da jurisprudência constitucional italiana, muitas vezes invocados em votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro, são esclarecidos a partir da respectiva localização do contexto em que surgiram.

A obra principia por esclarecer em que consiste o sistema de controle de constitucionalidade na Itália, tanto a partir da configuração do órgão encarregado de o exercer -- a Corte Constitucional --, quanto pelo exame do procedimento, dos possíveis conteúdos das sentenças e, a seguir, vem a tipificá-las, para identificar mais propriamente o objeto de seu trabalho, que são, dentre as variadas espécies do gênero "sentença de acolhimento", as sentenças aditivas, cujas subespécies são as "aditivas de regras" e as "aditivas de princípios" e as sentenças substitutivas.

Examinados os pressupostos para a adoção das sentenças "aditivas" e "substitutivas", enquanto formas de dar à Constituição a máxima efetividade, no sentido de que são adotadas estas soluções porque outra, em face mesmo do texto abstrato da Constituição, não seria possível, a dissertação examina exemplos, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da transplantação desses conceitos, discutindo até que ponto não se encobriria, em seu emprego, o denominado "ativismo".

Embora se trate de trabalho de profundo interesse para o Direito Constitucional e o Direito Processual, ao juseconomista ele interessa por mais de um motivo: 1) primeiro, porque o próprio conceito de "política econômica" pressupõe um sujeito dotado de poder juridicamente apto a adotar as medidas correspondentes e, em se tratando do Poder Público, em especial, a amplitude da sua possibilidade de atuação e, também, o campo em que o controle pode ou não ser exercitado; 2) segundo, porque muitos dos precedentes que o autor traz ao exame, para verificar até que ponto estariam ou não sendo empregadas adequadamente estas noções têm que ver com a própria eficácia da Constituição Econômica, a exemplo tanto da greve dos servidores públicos quanto do caso Raposa Serra do Sol.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O necessário resgate dos direitos fundamentais

NASCIMENTO, Filippe Augusto dos Santos. Direitos fundamentais e sua dimensão objetiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016.

Nos tempos atuais, em que cada vez mais se procura, em nome de promessas não cumpridas pela democracia, de um lado, promover uma relativização dos direitos fundamentais ou, no máximo, somente reconhecer como tais aqueles que se enquadram como "direitos civis e políticos", o autor, Defensor Público Federal e Mestre pela Universidade Federal do Ceará, traz um aporte digno de reflexão, confrontando, ainda, as proposições abstratas da teoria com as construções realizadas pelos Tribunais na resolução dos embates concretos de interesses. Num primeiro momento, causa uma certa estranheza para quantos, como é o caso do próprio resenhista, estão acostumados com a terminologia dos manuais de teoria geral do Direito a expressão "dimensão objetiva dos direitos fundamentais", tendo em vista a famosa distinção entre o "direito subjetivo" enquanto posição jurídica ativa, ou enquanto interesse juridicamente protegido, e o "direito objetivo", enquanto a disciplina em abstrato das relações jurídicas, a que se referem, inclusive, expressões como "fontes do Direito", "ramos do Direito", "Direito Positivo". Entretanto, a estranheza se supera, tendo em vista que se trata de identificar o papel dos direitos fundamentais para além do caráter de atendimento a pretensões dos respectivos titulares, sejam eles um sujeito individual, um sujeito coletivo ou um sujeito difuso. O texto trabalha a noção de “dimensão objetiva dos direitos fundamentais” enquanto concretização dos valores objetivamente consagrados e, a partir da ideia de “dimensão objetiva”, realiza a construção no sentido de reduzir a margem de indeterminação da atuação dos Poderes Públicos, tornando, antes, como parâmetro de validade para qualquer das manifestações destes, a aptidão para não frustrar ou para melhor realizar os “direitos fundamentais”. Aponta como derivações da “dimensão objetiva” a eficácia vinculante, a eficácia irradiante e a eficácia processual participativa. Temas como a necessidade de parâmetros objetivos na compatibilização de valores aparentemente antagônicos, como é o caso da valorização do trabalho em face da liberdade de iniciativa (p. 79-80), do exercício de competências como o fomento da produção agrícola compatibilizando-o com a valorização do trabalho e com a proteção do meio ambiente (p. 116), do reconhecimento da presença do poder mesmo em relações que se travam entre particulares, de tal sorte que se irradia a questão dos direitos fundamentais para elas, o papel do processo de caráter objetivo como apto a ofertar parâmetros para a efetividade da Constituição como um todo, e da abertura à participação de quantos se sintam aptos a contribuírem para que o processo objetivo alcance a decisão mais justa em termos de realização de tais valores. A presença destes temas, hoje, em que a Racionalidade passa a precisar de defesa, em um trabalho como o ora resenhado, independentemente de se não o subscrever "in totum" - o resenhista, por exemplo, não se encontra dentre os que consideram os princípios e regras como espécies do gênero "norma", e sim dentre os que os tratam, tradicionalmente, como instrumentos hermenêuticos em relação aos textos normativos -, vem a apresentar-se como de leitura obrigatória, ante a excelência da argumentação, a profundidade da pesquisa jurisprudencial e a qualidade da bibliografia utilizada.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Verdade, direito, autoridade - as grandes tensões constitucionais

HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado constitucional. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.


Nos tempos atuais, quando se fala dos debates em torno de "Comissões da Verdade", esquecimentos, memórias, terrorismos, resistências, justificativas e não justificativas, pertinência ou impertinência do juízo moral comum à política, é de intuitiva oportunidade a obra do Professor da Universidade de Bayreuth questionando o papel da "Verdade" enquanto valor no campo político-constitucional, diante de uma tradição que, pelo menos desde Platão, tomava a "mentira" como um dos meios úteis para manter a tranquilidade na polis. A diferença entre a produção científica, que tem compromisso com a verdade, sempre e sempre, e o exercício do poder - seja no âmbito de um Estado, seja no âmbito de uma grande companhia -, que tem compromisso com a conveniência, ao ponto de a mentira poder ser tida como útil, não é recente: Nicolau Maquiavel, quando o Papa era Alexandre VI, embora tivesse sido mais explícito n' O príncipe, mais não fez que aprofundar uma passagem do Livro III da República, de Platão.
 
Para o enfrentamento do tema, o Prof. Häberle rastreia a presença da palavra "verdade" nos textos legislativos, notadamente a Lei Fundamental de Bonn e as Constituições dos Länder, ligando-a a questões como a educação, a livre pesquisa científica, ao registro imparcial das sessões parlamentares, passando, logo em seguida, ao tema - que será recorrente ao longo da obra, mediante comparações com as comissões congêneres na Europa do Leste, na África do Sul, na Guatemala e no Haiti - do estabelecimento, por ato do Secretário-Geral da ONU, em 1992, de comissão da verdade em El Salvador, composta por membros de diferentes nações, para apurar a prática de crimes contra a humanidade durante a guerra civil e assegurar o processo de transição para a democracia (p. 41-2), discutindo a questão do papel das comissões parlamentares de inquérito enquanto meios de apuração da verdade ou armas de luta política, salientando a importância que o dado de haver em maio de 1993 o candidato a Primeiro-Ministro do Partido Social-Democrata sido pilhado em falta com a verdade perante um órgão desta natureza teve na renúncia respectiva, comparando este último fato com o escândalo Watergate, ocorrido nos EUA (p. 44-5). Refere, em termos de Direito Comparado, as Constituições do Reino da Suécia de 1809, da Turquia de 1982 e da Grécia de 1975 (p. 45). No âmbito dos textos legislativos ordinários, trabalha-se basicamente a legislação processual, em matéria de prova (p. 46-8), bem como o direito canônico (p. 49-50), e as questões que se colocam no Direito Internacional Público, sobretudo quando se trate das condutas que se têm como permitidas ou não em guerra, especialmente na obra de Grotius (p. 51-2), e as influências dos debates da verdade no âmbito interno constitucional dos Estados na disciplina do Direito dos Tratados, na Convenção das Nações Unidas sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, no Preâmbulo da Convenção da UNESCO e também no da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (p. 54-5). Segue referindo a descrição do papel que o engodo desempenha no contexto do totalitarismo feita por Vaclav Havel, pondo o compromisso de cada qual com a verdade como a expressão da co-responsabilidade com o destino do todo e com a própria integridade do espaço público (p. 56), passando pela indicação dos momentos em que a verdade comparece como um valor, a partir do Antigo Testamento, e no âmbito da teologia cristã (p. 59), para indicar as aproximações e os afastamentos entre as noções filosóficas - a distinção entre as verdades da fé e da filosofia, cara aos discípulos de Averróis (p. 63) e que, modo certo, resolveu o problema de os Doutores da Igreja reportarem-se a autoridades não cristãs, embora tenha preparado o terreno para a cisão entre a religião e a filosofia (p. 67) - ou científicas - o processo de Galileu Galilei é mencionado, bem como a sua reabilitação pelo Papa João Paulo II (p. 62) -, o compromisso kantiano com a verdade como um dever absoluto e a discussão posta tanto por Hegel quanto por Popper (pensador que mais influiu no pensamento do autor ora resenhado - nota do resenhista) e Habermas (p. 64-6). Toma a questão da inacessibilidade à verdade "em si mesma", substituindo-se-a pela "busca da verdade" a partir da visão de um Wilhelm von Humboldt, bem como do niilismo de um Paul Feyerabend e do ceticismo de um Friedrich Nietzsche (p. 66-7), para, logo em seguida, versar o papel da verdade nas artes, sobretudo na poesia, na música e na pintura, evocando Schiller, Uhland, Theodor Storm, Goethe e Shakespeare (p. 71-92), em relação à primeira, Wolfgang Amadeus Mozart, especificamente em razão da famosa fala de Pamina ("A verdade, ainda que dizê-la seja um crime!") em A flauta mágica, o pianista Alfred Brendel, Ludwig van Beethoven e Richard Strauss (70-1), em relação à segunda, e a alegoria de Friedrich Holder (p. 70), em relação à terceira. São trazidas, logo depois, reflexões sobre a instalação das comissões da verdade para a apuração dos fatos ocorridos na Alemanha Oriental, os problemas relacionados à concorrência de pretensões de grupos distintos em face das propriedades privadas a serem restituídas (p. 94), a superação do próprio problema do "recalque coletivo" ocorrido a partir de 1945, as manifestações de nostalgia do regime da Alemanha Oriental nos anos 1993-1994 (p. 97), que tornaram, no ver do autor, imperiosa a instalação de tais comissões e a edição de leis de transparência. Aponta, outrossim, como caminhos percorridos no constitucionalismo da Europa do Leste, após a queda do Muro de Berlim (p. 99), o estabelecimento de cláusulas protetoras do pluralismo, como a interdição de que se punam, em nome de uma cosmovisão oficial, as livres convicções de cada qual (p. 100), como a adoção do pluralismo partidário (p. 100-1), como o dever fundamental dos ocupantes de cargos públicos com a verdade, como a circunscrição da palavra final sobre as verdades científicas aos eruditos - presente na Constituição da Hungria, e que não deixa de provocar no autor resenhado uma estranheza, qualificando tal providência como "W. von Humboldt em 'salsa húngara pós-comunista'" - (p. 101), como a proibição da monopolização das fontes de informação e dos meios de comunicação de massa, seja pelos particulares, seja pelo Estado, como a interdição a prejulgamento nos processos e a garantia do direito à prova (p. 102), como a interdição a que se confundam o Estado e o partido (p. 102-3). Toma-se o protótipo do Estado constitucional aquele que arreda os modelos totalitários de quaisquer cores, as "pretensões fundamentalistas de verdade", os monopólios de informação e as visões de mundo imutáveis, não se estabelecendo sobre verdades preordenadas, mas na eterna busca da verdade (p. 105). Mesmo tendo a falseabilidade das proposições como critério da verdade, mesmo tendo-se a verdade como um dado poliédrico, um diamante com brilho por todos os lados, isto não significa a adoção de um relativismo à plena, pois o Estado constitucional se autonegaria, por exemplo, ao admitir a instauração do totalitarismo, ou se não existissem as denominadas cláusulas pétreas, ou "garantias de eternidade" (p. 106-7), e dá o investimento na educação como meio eficaz para dar concreção a esses limites, e isto somente pode estar vinculado ao desiderato da busca da verdade, meio de conexão das três liberdades intelectuais fundamentais, quais sejam, a liberdade de religião, a liberdade das artes e a liberdade das ciências (p. 108-9). Tal desiderato somente se pode executar com a criação de um ambiente propício para tanto, e isto somente se pode dar no seio de uma sociedade pluralista, embora a própria investigação da verdade possa, por motivos éticos, comportar limites, como é o caso da proibição da obtenção de informações mediante o uso de tortura ou de meios voltados ao embotamento da consciência do interrogando (p. 112). Colocam-se, a seguir, as questões da verdade no seio da democracia pluralista, pelas tensões que se estabelecem na formação da opinião pública, seja pela questão da oposição entre a formação da maioria e a "verdade em si mesma" (quantidade/qualidade), a origem da lei na autoridade e não na verdade, a questão da concorrência das versões no que tange à atuação dos meios de comunicação, que se caracterizaria por uma luta pública das ideias, somente factível à plena em existindo certa igualdade no acesso a eles (p. 113-4), ressaltando a ênfase do debate na Alemanha no zelo jornalístico na apuração dos fatos e na efetividade do direito de resposta (p. 115), bem como na delimitação do excessivo poder de mercado das televisões privadas (p. 117). A questão da proibição constitucional da mentira e, ao mesmo tempo, da possibilidade de se incidir no erro até que seja demonstrado e da mentira em estado de necessidade, seja pelo silêncio, seja pela expressão inverídica em si mesma, quando se esteja no contexto ditatorial ou totalitário (118-120). Também entra em discussão o papel das "ficções jurídicas" enquanto meios de operacionalizar determinados valores jurídicos (p. 121-2). Ainda assim, a busca da verdade se coloca como um "valor cultural" em contraposição ao totalitarismo e vem a, cada vez mais, conectar-se à temática dos direitos humanos (p. 123-4). A partir daí, encaminha-se para a questão do que importe, para o jurista, em relação à temática da verdade, trabalhando as regiões "cultural", ligada às interpretações e projetos de mundo de cada qual, e a "política", que estaria ligada à presença do "outro" e o respeito por sua liberdade, propostas por Rüdiger Safranski, com mitigações que se colocariam em termos de uma política de direitos fundamentais que conduziria ao estabelecimento das condições para que a verdade vicejasse (p. 125-6). Destarte, o jurista, mesmo de posse do conhecimento da discussão filosófica acerca da verdade, valeria tomar em consideração o dado de que o problema da verdade se colocaria a partir das premissas postas no interior de cada uma das ciências. Para o Direito, ao lado da proibição da mentira em relação à dignidade da pessoa humana, por decorrência desta mesma dignidade, cada qual teria o direito à busca da verdade, e isto pressuporia tanto a não-violência (o que seria assegurado pelo monopólio estatal da força) "quanto a tolerância, cultura, proteção à natureza e também às gerações futuras", sem que o Estado pretenda "curar" a possibilidade do fracasso e do erro (p. 128).  A seguir, anexa-se o balanço realizado pelo autor cinco anos após as reflexões anteriores terem sido publicadas na Alemanha, referindo especialmente o trabalho das comissões da verdade constituídas na África do Sul em relação ao apartheid, na República Federal da Alemanha, no que tange à atuação da Stasi, na Polônia, com sua Lei de Transparência, na Republica Tcheca e na Itália, bem como na América Latina, as questões do emprego das mentiras como estratégia governamental, evocando os casos de Gorbatchov, de François Mitterrand e de Clinton, o tema relacionado com o papel da mídia, distinguindo-se entre a verdade jornalística e a verdade judiciária. Coloca-se, também, a questão das falsificações no âmbito da produção científica para o fim de obtenção de recursos financeiros, o crescimento das discussões filosóficas e jurídico-filosóficas acerca da verdade entre 1995 e 2001, o estabelecimento de quatro caminhos para se chegar ao conhecimento da verdade em relação aos antigos regimes comunistas.

Nem todas as proposições contidas nesta obra contam com a minha adesão: o conceito de "ideologia" que nela se contém é empregado no sentido que a tradição mannheimiana denomina "forte", o de uma distorção da realidade voltada a fundamentar as relações de poder, quando me parece, justamente pela falibilidade humana, mais adequado o sentido "fraco", o de uma cosmovisão dominante - independentemente de suas virtudes e defeitos - em determinado meio social, a que se opõe a "utopia", que é a cosmovisão que aspira a tornar-se dominante. Por sinal, o sentido "forte" de "ideologia" traduz um dos traços de aproximação entre visões de mundo que se pretendem francamente antagônicas, a saber, a dos tributários do "materialismo histórico" e a dos herdeiros do Colóquio de Mont Pélérin. Também não conta com minha adesão o viés popperiano do autor, vez que o referencial weberiano me parece mais adequado à materialização do escopo iluminista de busca da verdade. Estes e outros pequenos senões não lhe comprometem o mérito, entretanto. Os cultores de todos os ramos do Direito têm muito a se abeberar nesta obra.  Para o juseconomista, a sua importância não se coloca somente em termos do papel que a informação tem como matéria prima da decisão em geral, e da decisão econômica em particular, seja de investir, seja de consumir, necessitando, pois, de dados verdadeiros para que os resultados sejam os mais próximos daquilo que se pretende ou do papel da ciência enquanto responsável pelo aperfeiçoamento da técnica e, portanto, pela necessidade de seus resultados se mostrarem confiáveis na solução dos problemas que se propõe a resolver, e tampouco no que tange às questões concernentes à disciplina da atuação da mídia enquanto setor da atividade empresarial. Com efeito, basta recordar que o artigo 174 da Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como característica do plano econômico o ser "indicativo" para o setor privado e "vinculante" para o setor público, traduzindo a indicação o rumo a ser imprimido pelo Poder Público à política econômica que adotar, dando os referenciais, pois, ao particular para orientar a respectiva atividade econômica. Por outro lado, tem-se discutido, em relação ao próprio funcionamento do mercado, a assimetria de informações enquanto elemento perturbador do equilíbrio entre os agentes econômicos a ser devidamente enfrentado pelo Poder Público. A própria reflexão em torno da revolta dos fatos econômicos contra a lei - recordando, aqui, o clássico publicado por Gaston Morin em 1920 -, impondo solução que, mesmo aparentemente antagônica à literalidade do comando isolado, confira efetividade ao ordenamento jurídico como um todo, qual ocorreu logo após a I Guerra, levando Justus Wilhelm Hedemann a identificar os limites do Direito Civil clássico e a proclamar o nascimento de um Direito Econômico, e a urdidura, pelo pioneiro deste no Brasil, Professor Washington Peluso Albino de Souza, da regra da primazia da realidade social, aponta, em si mesma, para os limites da operacionalidade das ficções. Embora estes temas não tenham sido tratados na obra ora resenhada, pode ela perfeitamente servir como ponto de partida para uma discussão racional deles e de quaisquer outros que, por vezes, têm a respectiva compreensão desviada pelo partidarismo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Políticas públicas, reserva do possível e Constituição

COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e controle de juridicidade - vinculação às normas constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010.




A obra que ora se resenha tem origem na dissertação de mestrado defendida pela autora, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e vem a trazer uma contribuição ao debate de vários temas polêmicos que se vão descortinando na paisagem que circunda o caminho por ela trilhado, em relação a esta preocupação dos limites e possibilidades da concreção do Estado de Direito, tal como desenhado pelos Textos Constitucionais contemporâneos. O tema escolhido me é dos mais caros, tendo em vista que foi exatamente sobre ele que elaborei minha tese de doutoramento.




O texto principia por inserir a preocupação com o controle das políticas públicas no contexto do denominado "neoconstitucionalismo", que, a partir de "elementos metodológico-formais" - normatividade, superioridade e centralidade da Constituição no ordenamento jurídico como um todo - e materiais - "incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais" e o acolhimento nestes de proposições aparentemente conflitivas -, buscaria ofertar uma resposta às experiências totalitárias e autoritárias do século XX, refletindo sobre o papel da Constituição no sistema do direito positivo - sobre o qual se digladiam as vertentes substancialista e procedimentalista -, manifestando a preocupação com a sua efetividade. Destaca a contribuição de Konrad Hesse, comparando com o pensamento de Hermann Heller, no esforço de aproximação da Constituição jurídica da "Constituição real"; a ampliação da jurisdição constitucional como conseqüência da imunização dos direitos fundamentais às contingências das maiorias nos Parlamentos; o desenvolvimento de novos métodos de hermenêutica voltando-se sobretudo às disposições concernentes a prestações positivas e aos conflitos aparentes entre princípios ou entre regras. É a partir de tais premissas que se balizarão a formulação e a execução de políticas públicas.




Tomando os direitos fundamentais como fim último das políticas públicas, refere a presença, ao lado dos direitos civis e políticos, dos direitos sociais (englobando neste conceito tanto os direitos sociais stricto sensu, como os direitos econômicos e culturais), expondo, em relação a estes últimos, o problema da respectiva eficácia muitas vezes depender de uma ação estatal que demande toda a criação de uma estrutura burocrática e de recursos financeiros, de tal sorte que se relativizaria, embora não ao ponto de se conduzir, necessariamente, tal situação à sua inexigibilidade.




Em seguida, versa o despertar do interesse do pensamento jurídico pela temática das políticas públicas a partir do momento em que o ideal da "Constituição sintética" típico do século XIX vem a ser substituído pela inserção, no Texto Máximo, da previsão de fins a serem atingidos pelos Poderes constituídos, de tal sorte que amplos setores que antes só poderiam ter contato com a ordem jurídica na condição de infratores venham a ser alcançados na condição de sujeitos de direito. Tendo presente a inexistência de direitos sem custos - ainda que se trate dos clássicos "direitos de liberdade" -, aponta para o dado de que, a despeito da ampla liberdade assegurada ao poder constituído para a alocação dos recursos, escassos para o atendimento de todas as demandas que se fazem ao Poder Público, existiria um limitador para além do qual não poderia ir a amplitude decisória, que seria justamente a realização da dignidade da pessoa humana, entendida esta na acepção kantiana.




A vinculação das políticas públicas à realização do projeto posto no Texto Constitucional parte do pressuposto da adoção, em maior ou menor grau, da tese do caráter dirigente que tal Texto assume nos tempos atuais, com a redução, no seio do constitucionalismo contemporâneo, da margem de discricionariedade dos Poderes constituídos na definição de objetivos políticos, postos os fins e, muitas vezes, os próprios meios, em caráter permanente, na Constituição. Embora ainda presente uma certa liberdade de conformação, para que as instâncias democráticas, ao se alternarem no poder, implementem os programas pelos quais foram investidos, e não se invista o Judiciário na condição de substituto das instâncias eletivas, a verificação da ultrapassagem dos balizamentos postos constitucionalmente, o descumprimento efetivo da Constituição pelas omissões, o atendimento das escolhas já feitas pelo Legislativo e pelo Executivo passa a ser objeto do controle jurisdicional, de tal sorte que são fixados os seguintes objetos sobre os quais este vem a incidir: (a) controle do estabelecimento de metas pelo Poder Executivo e Legislativo (não se confundindo com o estabelecimento de metas por parte do Judiciário como substituto dos outros dois); (b) o resultado final das politicas em determinado setor; (c) o atendimento aos percentuais constitucionalmente vinculados para a implementação de determinadas políticas, como as de educação, saúde e desenvolvimento da ciência e tecnologia; (d) a concretização das metas fixadas pelo próprio Governo; (e) a aferição da eficiência mínima na utilização dos recursos destinados à implementação das políticas públicas. O uso de tais parâmetros é exemplificado por julgado da Corte Constitucional da África do Sul sobre o direito de moradia, no qual o Governo daquele país foi condenado pela ausência de um programa de moradias apto a concretizar tal direito, assegurado na Constituição respectiva, sem que isto implicasse condenar o Poder Público a ofertar casa de moradia a cada habitante.




A simples descrição dos temas versados em cada capítulo revela, por si só, a indispensabilidade desta obra, sobretudo diante de discursos voltados à deslegitimação do Welfare State. Particularmente importante a passagem em que escande a obra de Sunstein & Holmes a respeito dos custos dos direitos, demonstrando, empiricamente, que um Estado liberal não seria, necessariamente, mais "barato" que um Estado intervencionista (p. 99), desmontando, assim, uma das falácias que tiveram largo curso durante a última década do século XX e a primeira década do século XXI. O exemplo invocado, da Corte Constitucional Sul-Americana, traz um dos mais ricos temas do Direito Econômico, que é justamente a política relativa ao setor habitacional, que no Brasil, no século XX, oscilou sensivelmente entre o assegurar moradia e o estimular a construção civil, e lança luzes sobre a concreção do direito à moradia enquanto direito social acrescido ao rol posto no artigo 6º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 26. Claro que existem pontos de divergência: não me parece, por exemplo, superado o positivismo, propriamente dito, quando se toma a Constituição enquanto parâmetro para solucionar os conflitos de interesse, mesmo em relação a políticas públicas, tendo em vista que a Constituição, seja no que tange a disposições expressas, seja no que tange ao que nela está implícito, e que se infere mediante os princípios, integra o direito positivo: o que, para mim, está superado é o prisma exclusivamente legalista, que no Brasil muitas vezes fez com que o Texto Constitucional fosse desprezado em nome da normatividade de inferior hierarquia. Também não identifico a eficiência com a economicidade, dado que compreendo esta, na mesma linha que o Prof. Washington Peluso Albino de Souza, a partir de Max Weber, enquanto linha de maior vantagem. Mas, de qualquer sorte, a importância do tema e os méritos do trabalho aí estão, para que sejam debatidas as questões nele postas, sem que se possa ficar indiferente a qualquer das passagens nele contidas.

sábado, 29 de agosto de 2009

A EFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO NO JUDICIÁRIO PARA ALÉM DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

RÊGO, Bruno Noura de Moraes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.

A grave lacuna deixada, muitas vezes, pela impossibilidade de se examinar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, a violação de determinadas normas constitucionais, conduzindo, em razão disto mesmo, aos caminhos mais lentos e tortuosos do controle difuso, conduziu à criação da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Com efeito, surgem situações em relação às quais a ausência de um remédio mais pronto fizeram com que explodissem conflitos judiciais da mais variada natureza: o atentado ao plano plurianual, à lei de diretrizes orçamentárias e ao orçamento, por exemplo, constituem crimes de responsabilidade. Entretanto, e na hipótese de haver neles alguma inconstitucionalidade, considerando que não são tidos como diplomas aptos a autorizarem o controle em sede de ação direta, de acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal? A discussão acerca do que constituiria ou deixaria de ser preceito fundamental, e a própria compatibilização de tal discussão com o entendimento remansoso do Supremo Tribunal Federal acerca da inexistência de hierarquia entre as disposições constitucionais, ainda que aparentemente contraditórias entre si, vem, de outra parte, a atrair diretamente o interesse do juseconomista, além do constitucionalista, tendo em vista que o fenômeno das aparentes antinomias nos Textos Constitucionais emerge com freqüência no que tange ao tratamento dos temas econômicos. Por outro lado, inúmeros atos legislativos de vigência transitória, mas cujos efeitos se protraíram no tempo, como é o exemplo clássico da retenção de ativos financeiros que se verificou de 1990 a 1992, ficaram sem um pronunciamento definitivo acerca da sua validade em face do Texto Constitucional. Para situações desta natureza, em que a própria vontade do povo manifestada nas urnas correria o risco de ser desautorizada, com o comprometimento do equilíbrio entre os Poderes da República, em que se sopesam os limites entre o atendimento a interesse transindividual juridicamente relevante e a preservação dos direitos individuais, como sói acontecer em todas as questões envolvendo políticas públicas, que se constituiu o remédio da argüição de descumprimento fundamental. O autor, mestre pela Universidade de Brasília e Professor no Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB, registrando as incertezas geradas na doutrina acerca do alcance do instituto previsto no § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, regulamentado pela Lei 9.882, de 1999, procura situá-lo dentro do quadro das ações constitucionais, bem como a própria caracterização por ela assumida no sistema de controle de constitucionalidade, apontando as dificuldades encontradas quanto à constitucionalidade mesma do remédio, na medida em que reforça, mediante atuação do legislador ordinário, o sistema concentrado em detrimento do sistema misto de fiscalização da constitucionalidade. As dificuldades teóricas resultantes, sobretudo, de ainda não haver sido precisado o caráter da argüição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal são enfrentadas com brilho pelo autor, embora, evidentemente, haja alguns pontos de franca divergência, como, por exemplo, a questão de ter o legislador ordinário, sem manifestação do poder constituinte derivado, criado nova modalidade de controle concentrado, quando, a juízo deste resenhista, a lei disciplinadora da ADPF apenas veio a conferir eficácia ao § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, bem como a questão do alegado per saltum, quando o que se tem na ADPF é apenas a solução da questão de direito, ficando ao juiz de primeiro grau a plena possibilidade de apreciação dos fatos a serem reconstituídos.

domingo, 16 de agosto de 2009

O CONSTITUCIONALISMO ENTRE A RACIONALIDADE E A BARBÁRIE

KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado – os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.

Um dos mais referidos constitucionalistas da atualidade, o Prof. Martin Kriele, finalmente vem a se tornar acessível a um maior público de língua portuguesa, graças à primorosa tradução que se vem a resenhar.

Pela investigação das origens de conceitos como os de legitimidade, soberania, absolutismo, das raízes do Estado Constitucional, especialmente no que tange à divisão de poderes, aos direitos humanos, às vicissitudes da liberdade individual – tanto política quanto econômica – enquanto valor, à dignidade enquanto mediador das aparentes contradições entre liberdade e igualdade, das origens do parlamentarismo, da revalorização do ideal democrático no século XX, o autor concretiza a premissa anunciada nas páginas 58-9: “o conteúdo normativo das instituições reconhecidamente legítimas é melhor perceptível a partir de sua história, para ser exato, a partir da história da luta ideológica conduzida em torno da fundação e da implementação dessas instituições”. Pleno de atualidade o aviso que formula, outrossim, em relação às críticas às instituições constitucionais: “se o crítico não compreende as razões para essas instituições, então existe o perigo de que ele destrua uma instituição para a qual existam boas razões e que, dessa forma, não proporciona o desenvolvimento mas sim o retrocesso. Este é o destino fatal dos movimentos, os quais avançam com grande convicção, mas diminutos conhecimentos sobre a alteração ou a dissolução das instituições constitucionais, as quais são resultado de lutas seculares e comportam boas razões despercebidas pelos críticos. Essas críticas progressivas simuladas, as quais não se encontram no ápice do problema, residem, normalmente, no âmbito dos sabichões independentes ou dos sabichões sectários. No entanto, ao conseguir desencadear um movimento de massas, elas também podem produzir efeitos políticos” (p. 60). Na discussão dos conceitos em sua formação, verifica a respectiva consistência a partir do estado do conhecimento da época em que formulados, bem como as condições que levaram aos seus questionamentos, especialmente na primeira metade do século XX - o que faz desta obra muito mais do que um simples ensaio de história do constitucionalismo europeu, para permitir, mesmo, a apreensão dos conceitos por este urdidos -. As limitações da compreensão racionalista do Estado são expostas com clareza, compreensão esta que, se não é destruída, vem, contudo, a ser mitigada pela força dos interesses polarizados num dado momento e, por isto mesmo, a preservação da idéia de Estado de Direito tem reforçado o seu papel de preservação da paz e da liberdade humana: “bons e maus argumentos convencem da mesma forma àqueles cujos preconceitos e interesses lhes são proveitosos. [...] Se opiniões políticas remetem, amplamente, de forma ideológica a interesses, essa situação turva o ideal puro da razão, as não o destrói. A natureza intelectual da pessoa, como a natureza em si, é débil, mas não sem força para a renovação e reavivamento. Em razão disso, a verdade possui uma certa capacidade mágica de ‘ser evidente’, o que torna sua força de convencimento independente do interesse. Com isso sua força de convencimento vai além do círculo das pessoas diretamente interessadas na exatidão do argumento. Quando o interesse é muito forte contra o poder de convencimento do argumento, quando, por exemplo, em uma situação político-partidária polarizada não se quer fazer concessões ao opositor, isso produz uma estupidez que bloqueia o efeito convincente da verdade. Através do apelo aos efeitos estúpidos, pode-se enganar todas as pessoas durante um tempo e alguns a longo prazo, mas não todos o tempo todo” (p. 354).

Nunca como nos tempos que ora correm – e não é por menos que o autor ainda elaborou um posfácio tomando em consideração o terrorismo pós-Guerra Fria enquanto desafio a ser enfrentado pelo constitucionalismo, para se evitarem retrocessos – se mostrou tão plena de operacionalidade a distinção platônica entre o conhecimento e a opinião a que, em última análise, se reporta esta obra em todo tempo. A preocupação com a perda de espaço da racionalidade é um dos principais dados que unem o resenhista - confira-se Advocacia Pública e Direito Econômico - o encontro das águas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 206-208 - ao autor ora resenhado.

domingo, 9 de agosto de 2009

POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERESSE TRANSINDIVIDUAL

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas - parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, 238 p.

Muitos dentre os dogmas do constitucionalismo clássico, fortemente influenciados pela doutrina do Direito Administrativo, no sentido da caracterização das questões políticas, por vezes, têm levado os estudiosos a verdadeiro estado de perplexidade, considerando os próprios pressupostos teóricos do Estado de Direito, voltado a reduzir ao máximo o espaço da vontade puramente subjetiva de quem exerce o poder público. Por outro lado, o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais rendeu ensejo a que se viesse a falar na necessidade de uma atuação positiva do Estado, inclusive mediante a formulação de políticas, para o fim de sua implementação. Por esta razão, procurando enfrentar as objeções habituais, o autor, Promotor de Justiça na Comarca de Natal/RN, traz a sua experiência pessoal para o debate acadêmico e centra o debate nos modos como as políticas publicas podem ser controladas, quer no que tange à formulação, quer no que tange à execução, quer no que tange, mesmo, à respectiva transparência. Sem deixar de referir os mecanismos de controle político e social, máxime tendo em vista os progressos da idéia da democracia participativa, aponta para os limites e possibilidades do controle jurisdicional, com especial destaque para a ação civil pública. Refutando o surrado argumento de que os direitos individuais não ultrapassam a noção de direitos de defesa, que apenas exigem a conduta negativa do Estado, bem como o próprio argumento falaz dos custos como obstáculos para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, e delimitando adequadamente os pontos que, efetivamente, traduziriam o domínio reservado dos Poderes providos em caráter eletivo, reforçando sua argumentação com exemplos da própria legislação recente, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus artigos 48 e 49, enfatizando o caráter normativo da Constituição como base de seu raciocínio, trata-se de obra cuja leitura se torna obrigatória, a despeito, evidentemente, de alguns pontos passíveis de debate que não empanam o mérito da obra, como, por exemplo, ao considerar que a possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas seria decorrência da superação do positivismo e não, tão-somente, do legalismo privatista típico da Escola de Exegese, uma vez que em asserções como esta vem revelado um inconsciente compromisso com a tese de que a Constituição não integraria o direito positivo. Mas, como dito, não se tem empanado o mérito da obra e, mais do que isto, vem ela como um auxílio ao bacharel formado para o praxismo burocrático e que, por vezes, ao se deparar com um problema que escapa aos velhos formulários, vem a cair num estado de perplexidade e não consegue descobrir sequer a formulação da questão jurídica pertinente, quanto mais a solução mais adequada. Todos os motivos, pois, para se receber alvissareiramente esta obra e quantas se dediquem a este tema, na constante busca da redução do espaço do arbítrio.
O tema, em relação ao Direito Econômico, mostra-se de grande relevância, considerando tratar este precisamente das medidas de política econômica, tanto no que tange à forma pela qual vêm elas a ser implementadas - medidas provisórias, leis, decretos-leis, decretos - como no que tange aos parâmetros constitucionais para sua implementação e, ainda, os efeitos sobre as situações jurídicas já definidas. Embora se entenda tradicionalmente que se trata de domínio reservado aos Poderes "Políticos", o fato é que tais medidas, para serem implementadas, têm, necessariamente, de vir à luz mediante algum ato jurídico, e, se ao Judiciário é vedado ingressar no mérito das medidas, no sentido de se dizer se elas são "boas" ou "más", o controle da respectiva juridicidade não está a ele interditado. Por outro lado, dentro da linha que adotei em minha tese de doutoramento (Direito Econômico - aplicação e eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001), a partir da doutrina de Washington Peluso Albino de Souza e Ronaldo Cunha Campos, não existe somente a política econômica pública, porquanto o particular também formula e põe em prática medidas como as fusões, incorporações, as joint ventures e tantos outros expedientes para a conquista de mercados e enfrentamentos - e, mesmo, eliminação - da concorrência -, sem contar com o dado de que, no seio da política econômica pública, não são somente o Executivo e o Legislativo que as formulam e executam, porquanto o Judiciário, ao firmar jurisprudência em torno do meio mais adequado para conferir maior celeridade à cobrança de determinados créditos ou mesmo quando adota a política de auto-restrição não deixa de o fazer.
Bem se vê, pois, o quanto se vai reduzindo a aparente estranheza das relações entre o Direito Processual e o Direito Econômico, ainda que não se marche para um Direito Processual Econômico, quando se verifica a recorrência do enfrentamento deste tema.

domingo, 12 de julho de 2009

EM BUSCA DE UMA NOÇÃO RACIONAL DE JUSTIÇA À LUZ DAS TEORIAS DA EVOLUÇÃO

FERNANDEZ, Atahualpa. Direito, evolução, racionalidade e discurso jurídico – a "realização do Direito" sob a perspectiva das dinâmicas evolucionárias. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.

Um dos problemas que mais vêm atormentando os juristas é justamente o problema da possibilidade de uma concepção racional de justiça. Com efeito, um parâmetro de justiça que seja uniforme para todos, que tenha a previsibilidade necessária à convivência social é o desiderato de todos os grupos sociais.
Um esforço bastante positivo deve ser visto na obra de fôlego ora resenhada. A partir das teorias evolucionistas, principalmente de Darwin, o autor, membro do Ministério Público do Trabalho, procura reconstituir o conceito de "natureza humana", abandonado desde o século XIX, para o fim de, excluindo todo relativismo e toda metafísica, tratar o direito como técnica adaptativa,decorrente de uma característica básica do ser humano, que seria um mecanismo cerebral que seria responsável pela formação de um instinto de reciprocidade. Tal instinto, que o levaria a ser norteado, em cada uma das situações que vivencia, pela idéia de contrato, fez com que se tornasse possível a vida em sociedade, segundo o autor, pela possibilidade de se preverem e interpretarem, reciprocamente, as ações praticadas por cada um dos integrantes desta mesma sociedade, o que é indispensável à própria sobrevivência do homem na Terra. É assim que se criam e estabelecem relações, de sorte a informarem cada decisão a ser tomada pelos indivíduos. É com base nestes pressupostos que o autor sustentará a excelência do sistema jurídico republicano-democrático enquanto o mais necessário à manutenção da sobrevivência do ser humano enquanto tal, bem como o papel da construção do discurso jurídico, na tentativa de se impedir a interferência arbitrária de um indivíduo na esfera de outros, conferindo, assim, racionalidade a cada decisão que se tome, quando ela tenha efeitos jurídicos.

A obra ora resenhada é de incomensurável valor. E quem o diz é justamente um dos que se alinham entre os relativistas que o autor combate com tanto zelo. Com efeito, ainda não me consegui convencer de que ao Direito se possam aplicar os mesmos pressupostos metodológicos das Ciências Naturais, notadamente a biologia, e que tais pressupostos não sejam suficientes a justificar, inclusive, a tese da superioridade de uns povos em relação a outros, de umas culturas em relação a outras, de umas tábuas de valores em face de outras - postura que, a bem de ver, Jhering esposou nas primeiras páginas do seu Espírito do Direito Romano -.
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Entretanto, polemizar cada uma das proposições do autor exigiria a elaboração não de um, mas vários livros, o que, desde logo, mostra a riqueza do material trabalhado. De outra parte, isto não me impede de manifestar minha concordância com o autor em alguns aspectos essenciais e outros pontuais de seu pensamento. Dentre os aspectos essenciais, chamo a atenção para a crítica que se faz ao isolacionismo em que o jurista resolveu se encastelar, desconhecendo que não há sentido em um enunciado normativo que não incida sobre um fato passível de verificação empírica e que, por vezes, esta verificação exige o concurso dos conhecimentos vinculados a outras ciências. Um aspecto pontual com que concordo é o da situação-limite enquanto algo que nos coloca, freqüentemente, na impossibilidade de se tomar a melhor decisão: "seria igualmente estúpido que nosso ancestral hominídeo, perseguido por um predador, se pusesse a pensar qual era a melhor árvore a subir: mais vale equivocar-se que ser devorado" (p. 206). Mas, como dito, dentro do meu relativismo, hei que relativizar, inclusive, a minha postura pessoal, com o que admito que posso não estar objetivamente a adotar a melhor posição, mas é a posição que me parece a melhor. E, de qualquer sorte, dentro dos pressupostos de que o autor partiu, o trabalho traz grandes contribuições tanto para o pensamento jurídico quanto para a própria epistemologia.

terça-feira, 9 de junho de 2009

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E RESPONSABILIDADE FISCAL

ASSONI FILHO, Sérgio. Transparência fiscal e democracia. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009.

Com a queda do Muro de Berlim em 1989, a questão do déficit público passou a ser o centro das preocupações da política econômica, uma vez que o desmoronamento de tais regimes, que, ao lado dos cerceamentos às liberdades políticas, eram baseados numa direção estatal da economia, veio a ser considerado fator de legitimação suficiente para o movimento de retração da presença estatal, apontando-se, demais disto, para o peso excessivo de tal presença, traduzindo-se em tributação sobre os agentes privados. De outra parte, considerando-se o problema da malversação dos recursos públicos invocado como meio de racionalização para a conduta da recusa de atendimento ao dever de pagar tributos e da própria questão ainda não resolvida acerca da amplitude da participação no exercício do poder a ser assegurada, observa-se que a questão do tratamento das finanças públicas viria a assumir uma dimensão muito além do meramente técnico-contábil.

Foi neste contexto, resumido apertadamente no parágrafo anterior, que às normas gerais de Direito Financeiro vigentes no País desde 1964, assomou a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”. Este mesmo diploma, outrossim, é o que rende ensejo à obra que ora é resenhada, versão comercial da tese de doutoramento do autor, defendida na Universidade de São Paulo em 2008, que inicia suas reflexões a partir de uma premissa posta por Teilhard de Chardin, no sentido de que a ordem democrática seria a única apta a garantir a realização dos ideais de “personalização” – assim compreendidas as possibilidades de cada qual perseguir livremente as suas aspirações e ideais – e de “organização” – assim compreendida a oferta de estruturas aptas a permitirem o acesso de cada qual, na medida de sua capacidade, à possibilidade de contribuir na conformação das relações da sociedade em que vive -, centrando o seu foco na democracia enquanto processo de formação das decisões governamentais, em que há mister a presença de moderada tensão entre as forças políticas contendoras para que possa, efetivamente, funcionar, embora a própria noção de autoridade não seja derruída. Considera que o sistema de valores, para que se pretenda democrático, haveria que se fundar no binômio liberdade/igualdade, desenvolvendo suas reflexões a partir de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Jean-Jacques Rousseau, Raymond Aron, Georges Burdeau e Isaiah Berlin, para demonstrar a distinção entre a liberdade natural do indivíduo e a liberdade exercida no meio da sociedade, que se vem a manifestar pelo princípio da maioria, em que a autonomia individual se coloca em convívio com a possibilidade igual de participação no exercício do poder, a fim de se evitar que medidas arbitrárias sejam impostas a qualquer pessoa submetida à autoridade estatal. Passa a examinar as instituições criadas para a viabilização do processo democrático, iniciando pela Ágora ateniense, onde os cidadãos a exerciam em caráter direto, sob as críticas de filo-aristocratas como o historiador Tucídides, o comediógrafo Aristófanes e o filósofo Platão, passando, após séculos de compreensão de poderes “absolutos” nas mãos dos governantes, pela atribuição a órgãos a serem preenchidos por indivíduos escolhidos pelo povo como os mais aptos a falarem em seu nome, exprimindo a vontade geral, com a criação, ainda, de entidades intermediárias que representariam as visões de mundo que se pretenderia ver convertidas em inspiradoras de políticas públicas – os partidos políticos -. A inviabilidade da colheita direta da vontade geral, tendo em vista o crescimento populacional, a complexidade das relações sociais e a grande extensão territorial de alguns dos Estados teria sido a responsável pela criação das instituições que viabilizaram a democracia representativa ou indireta, embora esta, também, não se veja isenta de problemas que o autor aponta com lastro em Anthony Downs, Joseph Schumpeter, Charles Lindblom, Carl Becker, Norberto Bobbio, Karl Loewenstein, John Randolph Lucas, Anthony Arblaster, Maurice Duverger, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Pontes de Miranda, que consistiriam no caráter basicamente individualístico da disputa dos partidos pelo poder, no controle recíproco a partir das trocas de favores, o atendimento, pelos políticos eleitos, dos pequenos grupos sociais que constituem a sua base, que podem não corresponder ao de toda a coletividade, a tendência ao estabelecimento de situações de privilégio para determinadas lideranças partidárias, o esvaziamento dos compromissos ideológicos dos programas dos partidos, de tal sorte que todos, praticamente, vêm a se converter em meras pontes para a conquista do poder para pessoas integrantes de determinados grupos e não em nome de determinados valores, na influência dos meios de comunicação no processo eleitoral e, mesmo, na conformação da opinião pública acerca do modo de gerir a res publica mediante o emprego das técnicas propagandísticas, a ascenção da tecnocracia e da burocracia, reduzindo não só a celeridade no atendimento, por parte do Poder Público, às demandas do cidadão como também o próprio espaço franqueado ao debate, ante a exigência de conhecimentos técnicos para a solução de problemas cada vez mais complexos. Com lastro em Raymond Aron e Giovanni Sartori, observa que mesmo estes problemas não invalidariam as instituições próprias da democracia representativa, porquanto permitiriam a organização da competição entre as facções que pretendam a conquista do poder, arredando os meios arbitrários e violentos que caracterizam as revoluções e golpes de Estado, apresentando-se como uma solução para o impasse a combinação de elementos da democracia representativa com elementos da democracia direta, caminhando-se para a democracia participativa, mercê da qual canais de participação direta e voluntária convivam com as instituições políticas inerentes ao modelo representativo, invocando como teóricos defensores desta modalidade de síntese Tarso Genro, Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato, Adam Przeworski, Susan Stokes, Bernard Manin, Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer. Passa a investigar a base sócio-econômica do Governo democrático, observando a necessidade da difusão dos valores em que este se fundamenta mediante o processo educacional e a efetivação da cidadania a partir do momento em que a nenhum indivíduo submetido à autoridade do Estado seja sonegada a garantia do mínimo vital e das condições para que cada um possa desenvolver plenamente a sua personalidade, de tal sorte que se possam reduzir as tensões que, fora de um patamar máximo de controlabilidade, poderiam colocar em risco as instituições que asseguram, inclusive, o funcionamento do mercado. Aponta, ainda, para o esmaecimento da distinção entre o poder econômico e o poder político, em virtude da formação de estruturas empresariais nascidas do processo de concentração, que vêm a, em nome dos respectivos interesses comerciais, a comprometer inclusive a soberania dos Estados, e cujo dique estaria, justamente, na efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, buscando a redução das desigualdades sócio-econômicas. Alerta, com base em Pareto, para a impossibilidade prática de uma ordem social estável, trabalhando, antes, com uma perpétua mutação que se estabelece em ritmos diferenciados, destacando o processo democrático enquanto o mais apto a assegurar o ritmo mais célere na eliminação dos obstáculos ao desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo que vive em determinada sociedade, de tal sorte que – consoante C. B. MacPherson – estes mesmos indivíduos não mais se vejam como meros consumidores de produtos prontos para se converterem em atores das histórias respectivas.

No capítulo seguinte, cuida da participação do cidadão na Administração Pública enquanto atividade exercitada uti universi, isto é, do cidadão buscando levar a sua contribuição ao todo social a partir de um interesse que transcende a sua utilidade individual e exclusiva, pela possibilidade de fruição dos resultados do atendimento ao interesse de toda a coletividade, invocando como referência a lição de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón Fernandez. A presença do cidadão no contribuir para as decisões estatais, que, no entanto, continuam com as instituições construídas para o funcionamento da democracia representativa, teria como efeito pedagógico, no ver do autor, a possibilidade de o cidadão comum discernir entre as medidas que realmente viriam em benefício do público daquelas que teriam como objetivo unicamente comprar simpatias, entre o que seria necessário para que a sociedade se desenvolvesse harmonicamente e as medidas de caráter meramente clientelista, que pressuporiam uma postura de passividade do cidadão diante do Estado. Caracteriza o novo paradigma do Estado Democrático como poliárquico, em que os centros de poder se encontrariam difusos pela sociedade e a oposição, enquanto voz das minorias, enquanto dissenso necessário para se evitar que a própria maioria se convertesse em tirania, trabalhando a idéia de participação cidadã enquanto direito humano previsto no artigo 25 da Resolução 2.200-A XXI da ONU, de 1966, traduzida na busca de um “consenso decisório quanto aos rumos a serem seguidos pelo Estado-Administração a bem da coletividade” (p. 55). Por implicar a idéia de participação a aproximação entre os que se submetem ao poder estatal e os que estão investidos neste, tem-na o autor como inseparável do princípio da publicidade, que impõe sejam ofertadas à população informações suficientes acerca dos grandes problemas que ocorrem no território onde o poder é exercido e da adequação das soluções que lhes serão ofertadas. A publicidade vem, pois, a converter-se em “transparência administrativa”, pela qual a população vem a obter as informações que lhe possibilitem as discussões acerca do que se entenderia como o legítimo interesse público. Visualiza, em função disto mesmo, na efetivação do princípio da transparência administrativa a constituição da denominada “esfera pública não estatal”, em que movimentos, associações e organizações das mais diversas orientações, mesmo sem vinculação com as estruturas do poder político, vêm a ter aptidão para verem suas aspirações convertidas em políticas públicas. Tal participação, outrossim, vem a ser trabalhada a partir de espaços assegurados pela ordem jurídica a que os próprios súditos venham a colaborar na conformação desta. Numa palavra, a ordem jurídica, enquanto expressão da vontade geral, vem a ser tratada como resultado da autodeterminação dos indivíduos que vêm participar na elaboração dos diplomas normativos. Identifica como matrizes no âmbito constitucional, em caráter mais geral, no Brasil, a consagração do direito de qualquer cidadão ter acesso a informações de caráter individual ou geral, a consagração dos princípios da publicidade e da moralidade administrativa, a previsão do direito de reclamar acerca do funcionamento dos serviços públicos, do direito de acesso aos registros administrativos e informações concernentes aos atos governamentais e do direito de representação contra o exercício negligente ou abusivo de funções públicas por parte dos respectivos agentes, e como disposições específicas, além da clássica formulação concernente ao poder emanar do povo e ser exercido por este direta ou indiretamente, traz à balha as concernentes à participação no processo legislativo, mediante o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular - destacando projeto de lei elaborado por Fábio Konder Comparato em relação à regulamentação de tais institutos -, a previsão constitucional de colegiados públicos no que tange à gestão do Sistema Único de Saúde, da seguridade social e da educação, as audiências públicas, adotadas em primeiro lugar pelo Legislativo e estendidas aos demais Poderes.

No capítulo subseqüente, fixando como premissa a atuação do Estado-Administração como norteada ao atendimento das necessidades públicas, forte na autoridade de Regis Fernandes de Oliveira, refere o próprio fundamento para o exercício da atividade financeira pública, na qual o orçamento, ao contrário do que ocorre no âmbito particular, onde tem o caráter de um negócio jurídico declarativo, vem a ser conteúdo de diploma legislativo enquanto personificação de um programa de ação governamental. A participação popular direta na elaboração do orçamento público é vista como instrumento de combate à corrupção e ao clientelismo, com a mais efetiva verificação da gestão dos recursos obtidos coativamente aos contribuintes. Tal participação, outrossim, vem a se mostrar mais efetiva quanto mais próximo o centro do poder da população, com o que a autonomia municipal e a forma federativa de Estado lhe forneceriam o ambiente mais propício para frutificar e põe na ordem do dia a responsabilidade do gestor perante esta mesma população. A partir daí, inicia as reflexões em torno do conceito de sociedade civil enquanto parcela da sociedade que se vem a organizar com o propósito de influir nas decisões que se materializarão como políticas públicas, centrando sua análise na definição da própria gestão dos recursos aptos a materializarem tais decisões, recordando, sempre, que os gastos públicos têm como principal fonte de financiamento os próprios usuários efetivos ou potenciais do serviço público, e que esta realidade se torna mais patente em se tratando do financiamento de políticas locais, em que a maior palpabilidade dos resultados teria como efeito o estímulo maior à participação popular. A descentralização dos recursos públicos, portanto, é posta pelo autor como meio mais eficiente de permitir a conscientização da importância da participação direta da população na gestão desses mesmos recursos. Indica, ainda, o papel desempenhado pelo associativismo na formação de uma cultura de participação, evoluindo desde a reclamação pelo reconhecimento de direitos para assumir um caráter propositivo em relação às políticas públicas e fiscalizatório em relação à atuação dos agentes públicos. Observa o papel desempenhado pelos espaços associativos enquanto canais que se abrem diante de lacunas nos espaços oferecidos pelo próprio Estado, distinguindo entre grupos de promoção e grupos de interesse, com base em classificação de Ferrando Badía, e verificando os limites entre as estratégias “legítimas” de convencimento dos agentes políticos estatais e as estratégias “ilegítimas”, próprias do lobbyismo. Considera que a eficiência da participação popular exige a presença de uma rede associativa apta a se contrapor a práticas de natureza clientelista. Nota, ainda, o papel da participação da coletividade no controle das possibilidades de desvios no exercício do dever-poder de gestão do erário público, relacionando, assim, a responsabilidade na gestão fiscal com o controle social. Refere a presença de uma enorme gama de controles no âmbito financeiro, examinando o papel do Tribunal de Contas e do Ministério Público, bem como as respectivas limitações, confrontando-os ao controle exercido diretamente pelo povo, trazendo, por fim, as previsões abstratas de sanções para assegurarem a efetividade do desiderato da responsabilidade na gestão fiscal.

Retomando a idéia da maior efetividade da democratização das decisões em um contexto federativo, lançando como premissa básica observação de Aléxis de Tocqueville, comparando a forma de Estado dos EUA com os Estados unitários da Europa, desenvolve também teses em torno da mais pronta resposta para os problemas pela instância de poder mais próxima e, mesmo neste caso, que esta dê preferência pela oferta de condições para que a sociedade resolva por si os problemas: numa palavra, também a participação possibilitaria a concreção do princípio da subsidiariedade. Considera a descentralização das finanças como meio indispensável a dotar de uma real autonomia os entes federados locais, discutindo as características do federalismo brasileiro, trabalhando, sob o aspecto fiscal, tanto a sistemática da repartição das competências tributárias como da participação das entidades menores no produto da arrecadação das maiores. Observa, também, o papel da disciplina da distribuição das receitas pelas entidades federativas tanto no estabelecimento do equilíbrio entre estas – que não estão em relação de hierarquia umas com as outras, diversamente do que ocorre em Estados unitários descentralizados - como no conferir maior visibilidade ao Poder estatal para os cidadãos, principalmente no que tange aos Municípios. Enfatizando o controle social das finanças públicas como poderoso instrumento de aproximação entre governantes e governados, trabalha a presença destes na escolha de prioridades a serem satisfeitas mediante os recursos disponíveis, normalmente, escassos para o atendimento de todas as necessidades públicas. Menciona, ainda, dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro que permitiriam à população a supervisão direta da sociedade em relação à atividade financeira dos entes locais e debate a experiência do orçamento participativo. Discute as vicissitudes do processo de emancipação de Municípios, que, a princípio, seria a própria manifestação de um grito de independência de coletividades que manifestariam pontos aptos a constituírem uma identidade comum, distinta daquela do Município-mãe, e que ao cabo vieram a ser motivadas, antes, pela possibilidade de obtenção de transferências de recursos das entidades federadas maiores – a União e os Estados em que se localizam – e com as finanças voltadas, basicamente, à manutenção do aparato burocrático das novéis entidades muito mais do que ao benefício das populações respectivas, com o que seria necessário evitar o paradoxo em que se converteram as emancipações antes da Emenda Constitucional n. 15, que de afirmação de autonomia vinham, antes, a confirmar e reforçar a dependência em relação às autoridades maiores.

Debatida a relação entre o federalismo fiscal e a democracia participativa, procura-se desenvolver o conceito de controle social orçamentário, no sentido de render ele ensejo à formação de uma esfera pública não-estatal, paralela ao poder constituído, não no sentido de desestabilizar a este, mas de dar aos governados a possibilidade de um monitoramento constante da atuação dos políticos, de tal sorte que estes assumam a responsabilidade pelo atendimento a reivindicações que, a despeito de corresponderem a necessidades sentidas pela coletividade, não ingressam na agenda política tradicional. O compromisso político passa a ser, assim, com os reais anseios dos cidadãos que tragam as suas pretensões aos poderes constituídos e dele vêm a realizar a cobrança. Ainda que não haja disposição constitucional expressa acerca do controle social orçamentário, sua consagração mediante diplomas como a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto da Cidade não se mostraria, entretanto, incompatível com a consagração da democracia representativa enquanto princípio constitucional sensível, com o que a capacidade de avaliação das prioridades, no momento da decisão, ainda permanece com os Poderes Públicos: o que não pode deixar de ocorrer é a oportunidade para que as pretensões sejam apresentadas para o fim de que possam ser avaliadas e, se for o caso, incorporadas, prestando contas pelo não acatamento, dentro da linha da impossibilidade do exercício da atividade pública que não tenha como ser, pelo menos, explicado. A metodologia de trabalho, outrossim, nesta modalidade de controle, há de observar as peculiaridades de cada uma das localidades em que serão realizados os investimentos públicos. De outra parte, com o reconhecimento da essencialidade da partilha do Governo entre governantes e governados à plena realização dos direitos fundamentais e da lição de Regis Fernandes de Oliveira no sentido de que tal realização pressupõe a tomada de decisões acerca dos instrumentos e dos recursos financeiros aptos a viabilizá-los, sustenta que a participação da comunidade na eleição das prioridades vem a ser meio apto a conferir-lhes concreção, colocando-se o próprio soerguimento da “reserva do possível” no âmbito da efetiva demonstração do fato impeditivo (a ausência de recursos suficientes) ao atendimento da pretensão. A prática do controle social orçamentário vem a permitir a elevação à condição de princípio a transparência na gestão fiscal, embora já estivesse ela, de certo modo, presente em metáfora do Conde de Cavour referida em passagem de Francesco Nitti que o autor transcreve e subscreve. Recorda, outrossim, algumas dificuldades para que se mostre efetiva a participação enquanto manifestação do controle social decorrentes não só do dado de as três leis referentes à programação financeira do Estado serem de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo como também da possibilidade de abertura de créditos adicionais, de contingenciamento de verbas, da edição de leis autorizativas do remanejamento de recursos, o poder de veto a alterações operadas no seio do Legislativo, da concentração, no seio dos Ministérios e Secretarias da Fazenda, das informações concernentes às possibilidades concretas do erário, da ausência de garantia de implementação concreta das emendas, e que geram, na relação entre o Executivo e o Legislativo, uma verdadeira marca de clientelismo. E é exatamente em função destas dificuldades que se aponta para a necessidade de se consolidarem canais associativos para o fim de aumentar a capacidade de fiscalização exercitável pela sociedade, sugerindo-se, ainda, a adoção de procedimentos que permitam a utilização de índices objetivos para se poder mensurar a intensidade com que tais ou quais pretensões merecerão ser atendidas prioritariamente a outras, bem como a abertura da possibilidade de apresentação de emendas populares aos projetos de leis orçamentárias.

A seguir, vem a trabalhar a concepção da responsabilidade fiscal a partir da necessidade de superação de uma visão estritamente formalística do monitoramento das contas públicas, para se chegar, mesmo, à responsabilização caso as demandas sociais não tenham sido, efetivamente, atendidas pela destinação de recursos públicos. Esta concepção que torna a participação popular na formulação das leis financeiras básicas e na busca da responsabilização dos agentes públicos elemento essencial do conceito de “transparência fiscal” teria sido adotada por todos os países que empreenderam a implementação dos programas de ajuste fiscal e mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, a partir de meados da década de 90 do século XX. São esmiuçados os instrumentos fiscais de participação cidadã, desde as audiências públicas e a divulgação das informações acerca das despesas realizadas pelo Poder Público e das disponibilidades por todos os meios – inclusive eletrônicos – em linguagem acessível a não-iniciados, passando pelo estabelecimento de prazo mínimo para que as prestações públicas de contas fiquem à disposição dos cidadãos, a indicação das medidas tomadas para assegurar a busca de receitas suficientes para a prestação de serviços públicos e concecução de políticas por parte do Poder Público, enfatizando-se, mais, o problema das renúncias fiscais inconseqüentes. São debatidas as questões concernentes à responsabilidade dos ordenadores de despesas, enfocando as sanções previstas tanto no plano estritamente financeiro, na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, como no âmbito da probidade administrativa e dos crimes de responsabilidade, especialmente no âmbito municipal.

Por fim, um capítulo sobre a disciplina da transparência fiscal no direito comparado, enfocando os diplomas da Nova Zelândia, da Austrália e do Reino Unido, enquanto inspiradores da filosofia da legislação voltada à tutela da responsabilidade na gestão fiscal adotada na maior parte do mundo, e da Argentina, enquanto país em desenvolvimento, em situação similar à brasileira.

A participação direta da população no exercício do Poder, vista, no início de sua discussão no Brasil, como reprodução do estado de natureza, em que o povo ia às ruas e tudo, para as paixões desenfreadas, vinha a ser permitido, passa a ser considerada, antes, como algo necessário e essencial, deixando ao largo, assim, a rotulação partidária que tantos prejuízos provocou nas reflexões sobre o tema. E esta obra é o feliz exemplo de superação de tal preconceito. Não que esteja ela isenta de observações que, longe de traduzirem indicação de defeito, vêm a indicar, apenas, abrir espaço para o debate. É de se salientar que a obra poderia ver-se enriquecida se tivesse sido objeto de suas reflexões não só a contribuição de Paulo Bonavides (cuja Teoria da democracia participativa, de 2003, é referencial obrigatório) e de Washington Peluso Albino de Souza (com suas reflexões sobre a economia concertada, datadas já do início da década de 70, no seu artigo Direito Econômico do planejamento e retomada tanto no seu Direito Econômico, de 1980, como nas sucessivas edições de suas Primeiras linhas de Direito Econômico), como também a jurisprudência, inclusive, dos Tribunais Superiores a respeito do tema da participação no exercício do Poder Público – limitado que está apenas a dois julgados do Excelso Pretório do início da década de 90 (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 854/RS e medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 821/RS), quando não só ele (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.217/RS; medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.381/RS) como mesmo o Superior Tribunal de Justiça trouxeram uma riquíssima contribuição neste particular, quanto à compreensão da democracia participativa à luz do ordenamento constitucional brasileiro -. Talvez se explique a omissão pela matriz doutrinária seguida pelo autor, que tem os seus marcos fixados pelas reflexões apresentadas por Manoel Gonçalves Ferreira Filho em seu A democracia possível, no âmbito do Direito Constitucional, por Juarez Freitas, no âmbito da Filosofia do Direito, e por Régis Fernandes de Oliveira, no âmbito do Direito Financeiro. De qualquer sorte, não há espaço para a indiferença em relação a esta obra.

sábado, 9 de maio de 2009

CONSTITUCIONALISMO E RESQUÍCIOS DO SAGRADO

CUNHA, Paulo Ferreira da. Anti-Leviatã – Direito, política e Sagrado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2005.

A riqueza da obra sob comentário torna uma tarefa de Sísifo a elaboração de uma síntese cabível no curto espaço de uma resenha. A laicização do Estado não impede que o autor, Professor da Universidade do Porto, funde sua obra na presença do Sagrado no Direito, desde o culto às formas pelas quais ele se manifesta passando pela caracterização do Direito como técnica, ciência e arte, a sacralização dos direitos, com especial destaque para as polêmicas em torno da propriedade e da igualdade, os desafios das ideologias, do sacrário do constitucionalismo europeu, o problema das bandeiras como expressão pictórica da soberania, a ambigüidade do etnocentrismo no exame da formação da nação. O título replica ao pensamento hobbesiano, que visara banir a sacralidade buscando um fundamento racional para a obediência universal à autoridade estatal. A obra explora dados em relação aos quais reina um temeroso tollitur quaestio – os elementos do Sagrado no pensamento jurídico-político, o esgotamento dos modelos ideológicos puros, nos quais se enquadra o “politicamente correto”, o tratamento das cores e formas como expressão da Soberania nas bandeiras - e, só por isto, mostra-se de consulta indispensável. Note-se que reconhecer o mérito não implica adesão do resenhista, cujo juspositivismo é novamente proclamado, a todos os pontos, especialmente os essencialmente comprometidos com o jusnaturalismo de cunho tomista, abertamente professado pelo autor. Mas isto é questão de mera divergência de posições que não compromete, em absoluto, a importância e o mérito da obra.

LEGISLAÇÃO, INFORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da legislação – formação e conhecimento da lei na idade tecnológica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.

Hoje em dia, parece não haver controvérsia quanto a traduzir uma ficção jurídica destinada a assegurar o cumprimento da lei o disposto no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, quanto a ser ela de conhecimento obrigatório. Entretanto, a sua caracterização como expressão da vontade geral tem-se buscado, conforme a célebre sentença de Rousseau, o mais possível, aproximar da realidade, com a participação popular direta na sua formação. Com o aumento da eficiência dos meios de comunicação, nos últimos tempos, particularmente pela INTERNET, a possibilidade de se dar conhecimento da legislação em tempo mais curto, e também de uma participação mais efetiva, com a superação das barreiras de comunicação, com a troca de informações, torna-se maior, mas, paradoxalmente, em face de um grande contingente de excluídos, que não teriam acesso sequer à energia elétrica, indispensável para o funcionamento dos computadores, torna-se um real desafio a própria universalização destas oportunidades. Estes temas traduzem a preocupação central da obra que a Profa. Fabiana de Menezes Soares apresentou a exame, para a obtenção do título de Doutora, perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, e que hão de chamar a atenção de todo jurista que esteja voltado àquela atitude de verificar a constante adequação dos conceitos aos fatos observados, ao invés de forçar o enquadramento dos fatos em conceitos que, muitas vezes, sobrevivem apenas por força da tradição. Conheço-a desde o início do seu curso na Casa de Afonso Pena, em 1987, e vejo nesta obra a realização do potencial que já então mostrava a característica do verdadeiro jurista, que, ao invés de sair a inventar teses por mero deleite intelectual, desprezando todo um patrimônio cultural construído ao longo de séculos ou a construir altares reverenciando fanaticamente a alguns monstros sagrados, procurava testar a solidez de cada proposição, até que chegasse ao ponto que a satisfizesse – Fabiana gostava de fazer perguntas difíceis, e gosta de se lançar a resolver problemas difíceis -. Claro que não há total convergência de posicionamentos entre o resenhante e a autora da obra resenhada, a começar pelos referenciais teóricos – a influência hegeliana que marca várias das passagens é um ponto em que não estamos de acordo -, mas isto não impede o reconhecimento do valor da obra em questão, da excelência da fundamentação, do estilo leve e agradável – o que é raro no jurista do século XX – e, por outro lado, do pleno acordo que temos em relação à participação como um valor, superando a concepção puramente coativista do Direito.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

TRIBUTAÇÃO, MITO E REALIDADE

Tipke, Klaus & Lang, Joachim. Direito Tributário. Trad. Luís Dória Furquim. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,2008, v. 1, 765 p.

Para os cultores da Filosofia do Direito, do Direito Constitucional, do Direito Internacional, do Direito Comunitário e do Direito Econômico, além, é claro, dos voltados ao Direito Tributário, é auspicioso que a tradução desta obra, considerada um clássico, venha a lume no Brasil, ainda mais nos tempos que correm, em que há uma grita generalizada contra a tributação, enquanto uma atividade que comprometeria, supostamente, a eficiência do funcionamento da economia baseada na livre iniciativa. A multiplicidade de informações prestadas com riqueza de detalhes, aprofundando cada um dos temas, torna extremamente difícil a elaboração de resenha para este livro - no qual não existe, sem qualquer hipérbole, nenhuma palavra irrelevante - dos dois eminentes Professores da Universidade de Colônia, Alemanha. Com efeito, a partir da constatação de que, dentre todos os ramos do Direito, o Direito Tributário seria o que se mostraria mais marcado pelo encontro do particular com o Estado, e somente poderia ser concebido enquanto parte de um ordenamento jurídico de orientação liberal, por pressupor a propriedade privada garantida como direito individual. O tratamento do Direito Tributário em sua dimensão constitucional, bem como nos contextos internacional e comunitário, a identificação dos princípios gerais que norteariam a disciplina, bem como a opção clara pela Teoria Sistemática de Canaris como a que asseguraria maior coerência da edição e aplicação da legislação tributária com os princípios do Estado de Direito e do Estado Social, os problemas gerados em relação à legitimação dos gravames tributários a ponto de criarem no imaginário popular a percepção dos delitos fiscais como "delitos de cavalheiro", a possibilidade do uso extrafiscal do tributo encontrando como limites a preservação do mínimo existencial e da propriedade privada, a inferência do princípio da capacidade contributiva do princípio da igualdade geral e a incompatibilidade com tal princípio da tese fisiocrática do imposto único, o tratamento dos tributos no contexto do Estado Federal, os cânones hermenêuticos adequados à temática tributária, o início do exame dos tributos em espécie a partir das dificuldades com a fixação do montante passível de tributação no que tange ao imposto de renda são alguns dos temas que vêm versados nesta obra, com a necessária profundidade, contribuindo para o esclarecimento de conceitos e a dissolução de preconceitos acerca da matéria. Cabe, agora, uma palavra sobre a tradução levada a cabo pelo Prof. Luís Dória Furquim. A rigor, a despeito de determinadas questões como a identificação do Wirtschaftsrecht - Direito da Economia -, conjunto de todas as normas jurídicas de conteúdo econômico em cada um dos ramos do Direito, com o Direito Econômico, que é ramo do Direito autônomo, cujas normas se inserem, contudo, no Direito da Economia, ela é, além de primorosa, um trabalho hercúleo, quer pelo volume de páginas traduzido, quer pela preocupação em manter a atualidade dos conceitos ali presentes, quer pela preocupação com a fidelidade ao ponto de urdir neologismos (como "jusestatalidade", para referir a qualidade inerente ao Estado de Direito) para ofertar maior correspondência às idéias originais do texto, que deve ser valorizado, no mínimo, por quantos desejem fazer uma investigação séria em sede de Direito Comparado, vencendo as barreiras idiomáticas.