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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Direito e a astúcia do (ir)racional através dos tempos

MARQUES, Daniela de Freitas. Os espelhos do sistema jurídico-penal - Giordano Bruno, o herege. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2011.


O texto ora comentado, embora focado na área penal, apresenta interesse para todos os ramos do Direito. Isto porque nele a Professora da Universidade Federal de Minas Gerais investiga, a bem de ver, um dos mais trágicos - no sentido etimológico do termo - aspectos do Direito, que é justamente a persistência da obsessão pela identificação e destruição do inimigo enquanto exemplo necessário à manutenção de uma dada ordem de coisas. Para tanto, decidiu examinar o processo mais invocado por quantos pretendam falar no martirológio das Ciências, em luta contra o Obscurantismo: o processo de Giordano Bruno.

A primeira parte da obra versa tanto a biografia do infortunado pensador quanto as circunstâncias pelas quais veio a cair nas mãos do Santo Ofício, bem como a condução do processo, com o emprego - entáo havido por lícito e mesmo recomendável - da tortura e sua execução, pela fogueira, no Campo de Flores, no ano de 1600. Já nesta parte, a autora vai delineando o papel desempenhado pela punição, na visão católica, como o elemento voltado a dissuadir as tentações, marcadas pela antítese do privilegiar a alguns, perseguindo a muitos, racionalmente orientada, contudo, de tal sorte que o papel das autoridades, tanto eclesiástica quanto secular, ficasse bem delineado, visível, e focada precisamente na idéia de infligir o sofrimento para a expiação do pecado, e, na visão luterana e calvinista, voltada epecialmente à expiação pelo trabalho, e ambas as visões tendo como ponto de intersecção o cárcere e a própria discriminação daquele "que não é dos nossos" como inimigo, cujo fundamento pode, exteriormente, mudar, mas não deixa de estar nas raízes de todos os sectarismos ao longo da história, inclusive dos séculos XX e XXI. Refere a origem da massa miserável que afluiu às cidades inglesas nos séculos XV e XVI, formando as vagas de desocupados e mendigos, expulsa das terras que deram lugar às pastagens, e que foi tratada como se a sua situação fosse decorrente exclusivamente de uma disposição voluntária viciosa. A ênfase na expiação pelo trabalho, no contexto protestante, não exclui, necessariamente, a pena de morte, mas somente em decorrência da rebelião contra a disciplina imposta pela própria condição da condenação original do homem a ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Trabalha o desenvolvimento da Inquisição na Espanha, em Portugal e na Itália, de tal sorte que o foco das perseguições se colocaria tanto nos diferentes - judeus, mouriscos, cristãos-novos - quanto nos dissidentes - hereges -, manifestando - especialmente depois da descoberta do Novo Mundo, para o qual o degredo implicava a perda dos referenciais para o condenado - a lógica de caráter estritamente binário, com as suas oposições, e a punição expressa em corpos dilacerados, com que a coerção se faz visível ao público, o horror enquanto o repelente, conduzindo, inclusive, ao desenvolvimento de estudos que ligavam as características físicas a dados psicológicos e mesmo mentais, que estariam na raiz tanto da fisiognomia de Lavater quanto na frenologia de Gall, na criminologia lombrosiana (que Joseph Conrad ironizaria em seu romance O agente secreto) e mesmo nas teorias eugênicas. O processo de Giordano Bruno é contextualizado, assim, como a perseguição ao dissidente, por suas idéias e ao medo da independência, porque fora do oficialismo eclesial, somente existiria o pecado e, pois, a inimizade a Deus. O medo ao pecado seria a base para a perseguição à heresia, seja no lado católico, seja no lado protestante (a autora exemplifica, aqui, com Miguel Servet, o descobridor da circulação pulmonar, levado à fogueira em pleno calvinismo). A própria idéia de subversão como inimizade a ser reprimida, como o espelho da ordem que se quer manter, a autora refere que, a despeito das comparações e diferenciações que se possam fazer entre a ilicitude herética e a ilicitude jurídica, vem atravessando os tempos, como se pode verificar nos regimes castrenses instaurados no século XX na América Latina, bem como na "caça às bruxas" do período do macartismo norte-americano, dando, assim, a figura do inimigo como essencial ao imaginário da humanidade. A partir daí, ingressa no debate do conceito de "pecado", enquanto pensamento e ação que traduz uma rebelião contra Deus, rompendo a Aliança com Este e com a sociedade dos Seus fiéis, enquanto opção realizada contra a Divindade, e vem a discutir, então, as próprias dificuldades da dogmática penal na própria escansão dos elementos do dolo e da culpa, os problemas da concepção funcionalista de um Claus Roxin, bem como a própria questão da intenção como qualificadora do pecado, haurida em Abelardo e em Pedro Lombardo, e que vem a influenciar profundamente o pensamento jurídico-penal herdeiro da tradição judaico-cristã, inclusive na diferenciação entre o criminoso e o herói. O pecado e o crime vão correndo em paralelo, assim, na visão do final do século XVI, como fundamentos para se exercer, sobre o indivíduo, o controle do pensamento e da conduta. Discute o crime e a heresia como manifestações da própria idéia do Mal, enquanto reflexo ou espelho do Bem, estabelecendo as relações entre duas importantes obras de Bodin, a Demonomania e os Seis livros da República, enquanto confluência do absolutismo e do poder de punir, fundamentados, ambos, na autoridade Divina, embora estabelecidas diferenciações entre o criminoso comum - que, mesmo sendo um regicida em potencial, poderia haver a remissão sem que a sua consciência fosse renegada, o que seria impossível para com o herege, e é a partir de tais construções, ainda que superadas com a vitória dos ideais iluministas, que se abre o caminho para a concepção do crime como uma lesão não somente à vítima concreta, mas à própria saúde do corpo estatal, o Direito enquanto expressão do sagrado, da conservação, da ordem, o crime enquanto expressão do profano, do anárquico, do inseguro, a pena de morte enquanto sacrifício do delinqüente ao restabelecimento da vontade de Deus, o controle dos seres humanos, a identificação do herege como elemento fundamental para assegurar um motivo que aglutine a sociedade em torno do Estado e para que tanto as relações políticas quanto as relações de trabalho sejam aceitas como impostas pela própria natureza das coisas: concebe-se, pois, naquele contexto, a lei mais severa como a melhor, porque inspira o medo a quem não se mostre beneficiário da ordem estabelecida. Vem a caracterizar-se a heresia muito mais por se ser refratário à autoridade, ao medo que esta inspira do que à verdade, e o discurso sobre ela vem a se reproduzir na visão funcionalista do crime, fundada em uma lógica binária dos "agentes do Bem" contra os "agentes do Mal", sendo o Bem manifestado de uma, e somente uma, forma, enquanto o Mal é representado pela multiplicidade, tal qual a hidra de muitas cabeças; a onipresença do Mal no período da Contra-Reforma - contexto em que se deu o processo de Giordano Bruno - vem a ser sucedida pela mentalidade da onipresença do Império do Crime, no âmbito interno, e do Terror, no âmbito externo, no contexto em que se consideraram vitoriosos os ideais do Iluminismo. A partir daí, vão sendo examinadas as peripécias das heresias que pontilharam a história do Cristianismo, bem como o papel aparentemente paradoxal por elas desempenhado no sentido da consolidação do dogma e, no momento em que o Cristianismo se torna a religião oficial, no sentido da afirmação da própria autoridade temporal. Daí por que a caracterização da heresia vem a se tornar algo decorrente do temor de abalar as certezas da autoridade, com o que se vem a entender por que não é difícil imputar tal acusação a quem quer que seja, quer porque não aceite o cânone estabelecido sobre a Santíssima Trindade e a natureza do Cristo (como as heresias da Antiguidade), quer porque discuta o papel da Igreja e dos sacramentos (com as heresias medievais), e vem o conceito de heresia a abranger não apenas a discordância como a impossibilidade de se fazer entender, não apenas a rebeldia, em todas as suas manifestações, como também a própria posse de conhecimentos além dos alcançados pelas autoridades eclesiásticas, qual ocorreu tanto com Damião de Góis em Portugal quanto com Giordano Bruno. A idéia de uma auto-evidência dos direitos do homem somente se vem a tornar possível a partir do momento em que se vem a tratar o egoísmo enquanto motor do ser humano em busca do bem-estar, ou seja, a partir do momento em que o afã de lucro vem a ser considerado como necessário à ampliação do círculo do poder, de tal sorte que o corpo do indivíduo passa a ser visto como sagrado enquanto propriedade sua, embora tal egoísmo deva ser atenuado pela necessidade de reconhecimento desta sacralidade por parte do Outro. E o Outro, por seu turno, para se sentir estimulado ao reconhecimento, passa a ter o direito de ser reconhecido. E, por conta disto, ter-se-ia principiado o movimento de abandono da punição corporal, embora os acontecimentos desencadeados pelo atentado de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center tenha reavivado temas como a aceitabilidade da tortura como um mal menor diante da ameaça indiscriminada do terrorismo e, mesmo, a da redução das pessoas ao papel que desempenham na sociedade para que se tornem ou não os destinatários da força repressiva do Estado. A aversão à própria idéia da Multiplicidade, que somente se admitiria se fosse o estabelecimento de um bloco de idéias conformes e não várias cabeças como a hidra, também se viria a projetar na aventura européia no Novo Mundo, em que o combate da fé se traduzia pela evangelização dos gentios, que deveriam, não obstante, ser destinados também à escravização e, mesmo, à destruição - o megalomaníaco Kurtz de Coração das trevas, de Joseph Conrad, preconiza que se "exterminem todos os brutos!" -, para que o terror lhes infunda a disposição para aceitar tanto a autoridade de Deus quanto a autoridade do Rei. O degredo para o Novo Mundo, enquanto perda de referenciais, viria a ser uma das penas destinadas a hereges, feiticeiros, marranos, mouriscos, sodomitas, enfim, marginais de todos os tipos, valeria, praticamente, por uma proscrição. O Novo Mundo, para o europeu, seria o equivalente temporal do Purgatório. De outra parte, o papel da Universidade enquanto templo da ortodoxia doutrinária também viria como reforço ideológico da necessidade de se manter a constante perseguição ao herege, visto como um inimigo em guerra sem quartel. A partir daí, também, a autora empreende o estudo da função desempenhada pelo Index Librorum Prohibitorum, no que tange às possibilidades infinitas que as obras encerram, de superar não só os limites da vida humana - e, por isto mesmo, as obras de Giordano Bruno foram também levadas à fogueira -, como também de perpetuar a própria idéia da Multiplicidade, tão identificada ao Mal. Daí por que a idéia da Árvore do Conhecimento e da Árvore da Vida, presente tanto no pensamento hebreu-cabalístico (estudado a fundo por Raimundo Lúlio e por Giordano Bruno) quanto na mitologia nórdica, vem a se confrontar diretamente com o pensamento único, a Verdade única, a visão de que fora da ortodoxia não existe salvação, tão combatida pelo pensador nolano, para quem na diversidade e na infinidade estão, mesmo, as manifestações do Uno, as manifestações, pois, de Deus. Passa a examinar os fundamentos para a instituição do Santo Ofício, indicando o papel desempenhado pela forma para a caracterização do eterno sofrimento dos hereges, iniciado pela queima em vida e prolongado após a morte no Inferno, bem como os paradoxos das formas jurídicas, presentes inclusive nos tempos do constitucionalismo, da afirmação dos direitos humanos, em que até mesmo o conceito de pessoa humana vem a permanecer indefinido e cada qual se quer um absoluto. Diferencia as Inquisições portuguesa, espanhola e romana, quanto às regras de competência e aos procedimentos. Se, a partir do final do século XVII, a tese do "não conhecer o que está no alto" vem a ser substituída pelo "ousar saber", os segredos da natureza abrem espaço a que se venham a desvelar os segredos de Deus e os segredos do Império; o sistema jurídico, enquanto texto a ser interpretado, a ser objeto da ciência de Hermes - paradoxalmente, o patrono dos ladrões, o próprio exemplo clássico da negação do Direito -, vem a condicionar a manipulação de tais segredos, seja ao estabelecer os modos como se disporá da natureza, conservando-a, alterando-a ou destruindo-a, como se separarão as esferas do laico e do sagrado, como se exercerá o poder do Estado. Texto a ser interpretado por um intérprete autorizado, o magister. O primeiro delito será sempre a tentativa de tomar o lugar de Deus, como o teriam feito antes Cronos em relação a Urano e Zeus em relação a Cronos e o tentou fazer o próprio Adão em relação a Iahweh. Mesmo que, progressivamente, o mundo ocidental se tenha feito menos mágico e mais sério, não há como negar que conceitos básicos como culpa, livre-arbítrio, expiação se encontrariam no pensamento teológico católico, substituindo a vingança privada pela concentração do poder de coação na autoridade constituída e que, a partir da noção do herege como o inimigo da fé, vem a ser construída a noção do criminoso como o inimigo da sociedade, de tal sorte que se pode dizer que o herege se vem a colocar como o elemento humano de transição entre o poder espiritual e o poder temporal, agente do demônio indigno de qualquer piedade. A identificação do herege e do criminoso têm em comum a referência a uma autoridade estabelecida, a uma autoridade que se tem como a portadora da Verdade revelada - o Verbo que se impõe, ainda que sob a forma de texto legislativo -. Em seguida, realiza-se o cotejo entre as obras de Giordano Bruno e seu contemporâneo Francisco Suárez. Este, embora jesuíta, abriria caminho para a laicização do Direito fora do próprio contexto da Reforma protestante, ao apontar para a impossibilidade de a lei humana - que ele distinguia da lei natural - disciplinar atos puramente internos, veio a abrir caminho para a distinção entre o Direito e a Moral, considerada a grande contribuição do iluminismo para a Filosofia e a Ciência do Direito, bem como ao tratar o poder político uma outorga de Deus ao povo, para que este o outorgasse ao governante, marcando novo passo na construção do contratualismo. Giordano, sem ter sido teólogo ou jurista, reditando conceitos platônicos acerca do mundo, da alma e da escolha individual desta em relação ao seu destino, atingiria os fundamentos do dogma, do mesmo modo que as instituições humanas, sem o seu sistema punitivo e sua constante justificação e legitimação pelos sábios competentes, ruiriam, de tal sorte que se vem a realizar, no âmbito do funcionalismo penal que viceja, o próprio retorno à pena enquanto vingança, dado que mesmo quando não haja a esperança de reeducação do condenado, este vem a sofrer as desagradáveis conseqüências de sua conduta. A partir daí, entende-se por que, a despeito de provocar o riso do adulto em face dos "desatinos infantis" a perseguição a bruxas e hereges durante a Idade Moderna, a mesma disposição que em relação à necessidade de uma punição atroz aos que se encontravam na conspiração contra Deus se apresente, nos tempos atuais, quanto aos clamores de penas mais duras e um sistema penal menos benéfico a quem se mostre merecedor das reprovações do Judiciário e, principalmente, da mídia, apontado como um perigo para a própria sobrevivência da humanidade. Não é nem tanto a conduta em si que será objeto de punição, mas sim o dado de ela haver sido praticada em tais ou quais circunstâncias, de nada valendo um arrependimento sincero, quando o que interessa é a recomposição da ordem, abalada pelo menor desvio, qual ocorrido com Actéon, caçador que, ao divisar, por acidente, a casta Deusa da Caça no banho, foi por esta transformado em cervo e somente se contentou a Deusa depois que os próprios cães que o acompanhavam à caçada o despedaçaram. Daí a exclamação que parece resumir toda a angústia que inspira a obra resenhada: "não percebem as pessoas? Os direitos fundamentais nascem no Estado absolutista - ou seja, no Estado e na Igreja que assolavam as mentes, dominavam os espíritos e supliciavam os corpos. Direito é Maya. Direito é ilusão. O suicídio não é proibido, mas a vida é um bem humano indisponível. O patrimônio é bem jurídico disponível, mas o crime de furto é crime de ação penal pública incondicionada. O consentimentó é irrelevante em determinados crimes, cuja tutela são valores humanos - cambiáveis como vôos de pássaros ou nuvens no céu. Há a liberdade de ensino, mas os docentes estão presos ao programa tradicional e à leitura de textos fundamentais. Há a liberdade de convicção, mas os símbolos religiosos estão presentes nos espaços públicos e, no Estado laico, proíbe-se o uso do chador. Proíbe-se a clonagem humana, e a proibição apazigua as consciências. Razões de Política Criminal, razões de Estado, razoabilidade e proporcionalidade nas decisões tomadas., dirão uns e outros. Mentira! Grita o inconformado espírito" (p. 267). Na raiz da heresia, estaria o pecado original, a soberba, que, entretanto, não deixaria de acometer aos próprios juízes, auto-investidos na condição de gládios de Deus sobre a terra (muito pode aprender o jurista com a leitura do conto Gladius Dei, de Thomas Mann), e a suprema ironia se apresenta a partir do dato de que são representantes de uma cultura toda fundada no enaltecimento de um personagem condenado como criminoso - o próprio Jesus de Nazaré -. A virtude, quando não dissimulada, vem a ser perseguida como negação do maior fundamento para a presença do aparelho coercitivo: a idéia de que ela seria inatingível, não fosse o temor da danação, tanto temporal quanto Eterna. Daí por que, para ser virtuosa, realmente, tem de ser discreta, silenciosa, não deixar rastros, o pensamento individual, independente, somente pode ser expresso a partir da identificação de sua conformidade a determinado padrão coletivo de respeitabilidade. A alegada proscrição da mentira e do engodo vem a ser confrontada com o emprego constante das ficções pelo Direito, cuja história se vem a confundir, mesmo, com a da justificação do Poder. A idéia de um corpo universal, representado no Estado e pela Igreja, com poderes sobre o corpo particular, representado pelo súdito e pelo fiel, conduz também ao debate acerca do que se entenda como bens disponíveis e indisponíveis, sobretudo diante da necessidade de que as relações de poder se instaurem, seja no âmbito político, seja no âmbito religioso, seja no âmbito econômico. O universal com disposição sobre o particular, estabelecendo a medida da forma como determinante da essência de atos, fatos e pessoas, o herege, o incréu, o outro, enfim, como o "algo" a ser proscrito, como todas as manifestações subversivas, o riso - o declínio do Bobo da Corte com o início da Idade Moderna é um exemplo claro -.Daí se vem a entender por que a obsessão pela "correção" e pelo puritanismo se disseminam, e o desejo da punição exemplar de tudo o que seja desviante se apodera dos corações, embora seja justamente a partir dos desvios que todo o pensamento jurídico, pretensamente sério, vem a avançar - ele avança a partir da sua negação, do mesmo modo que a teologia avança na busca de argumentos para reforçar a fé pela negação do herege - e o porquê de serem tão próximas as representações de despersonalização dos hereges e dos crimnosos.



Como se pode ver, trata-se de obra fundamental, justamente neste período em que surgem, pulando daqui e dali, os novidadeiros que julgam estarem a corrigir soluções que lhes parecem excessivamente brandas ou permissivas na legislação - especialmente quando o sujeito passível de sofrer a restrição não é "um dos nossos", ao contrário do que ocorre com "os nossos", que "deveriam ser libérrimos", em relação aos quais qualquer exigência do cumprimento de deveres legais soa como uma opressão -. A presença do dogma, com toda a carga de impositividade e limitação que a palavra contém, no corpo dos conceitos jurídicos e, principalmente, no Direito Penal, é dissecada e apontada a cada página. O processo de Giordano Bruno, além da sua significação histórica, assume, no que interessa aos juristas, uma significação metafórica. Simultaneamente, fato histórico, problema jurídico (os referenciais axiológicos que presidiram cada ato do processo) e metáfora (dos problemas que ainda hoje vêm a acometer quantos têm de resolver questões jurídicas, para além dos respectivos preconceitos e predisposições). E o autor de Interpretação jurídica e estereótipos não poderia deixar de referir encomiasticamente esta obra. Não somente, como antes dito, aos penalistas, embora a autora concentre suas pesquisas nesta área do Direito: a razão de ser do direito ao trabalho, vista pelos economistas da Escola de Chicago como uma simples manifestação de demagogia para negar a sempiterna verdade de que o desemprego é sempre fruto de uma decisão livre e viciosa, vem estampada, inclusive, pela experiência dos tempos de Henrique VIII, mostrando que a exclusão de grandes massas da própria condição de sujeitos de direitos e deveres não teve o efeito esperado de tornar mais segura a situação dos beneficiários do sistema, antes veio a informar aos excluídos da existência de uma guerra a ser sustentada. A própria questão do pensamento único a que se referiu Margareth Thatcher, ao ser ofertado o fundamento ideológico para as políticas denominadas "neoliberais" que se levaram a cabo, mediante o desmonte do aparato constitucional do Estado Social, no correr da década de 90 do século XX e que tiveram a sua exaustão assinalada pela crise de 2008. Do mesmo modo que a eliminação dos hereges não eliminou as heresias, somente fez com que se modificassem as formas de questionar a própria autoridade - se, num momento, são os albigenses, no outro, são os luteranos -. E emerge, aqui, um material extraordinário para quantos se voltem com seriedade à temática dos Direitos Humanos. Alguém, provavelmente, diria que a autora, ao invés de criticar os conceitos construídos ao longo de séculos e, mesmo, de milênios para assegurar a sobrevivência da sociedade, deveria, caso os entendesse - com mostra que entende - inadequados para as finaldiades proclamadas, prescrever a terapêutica. Aqui, responder-se-ia que prescrever terapêutica sem o diagnóstico adequado seria temeridade, seria, mesmo, o caminho para agravar a situação do doente, ao invés de o tratar. A ficção pode ser útil, muitas vezes, mas quem a emprega, independentemente da sua utilidade, deve estar ciente de que está lidando com a ficção.

sábado, 9 de maio de 2009

UM ALERTA CONTRA O VOLUNTARISMO

KEMMERICH, Clóvis Juarez. O direito processual na Idade Média. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 2006.
O interesse prático desta obra em que se examina a evolução do processo na Europa desde a queda de Roma ao fim da Guerra dos Cem Anos avulta, eis que hoje voltam discursos que sustentam ser a ineficiência do Estado apta a autorizar os cidadãos a fazerem justiça por suas próprias mãos. A partir do retorno, com o fim da Antiguidade, da admissão da vingança privada, substituível por uma indenização, julgada por uma assembléia popular, em que existiam feitos que, pelo fato de o réu haver sido pego em flagrante, estava proibido de se defender, em que a instrução, freqüentemente, tinha efeitos decisórios, como é o caso dos ordálios, do duelo, em que a disciplina procedimental visava precipuamente a eficientização do exercício da força sobre aquele que viesse a padecê-la, passando pelo renascimento verificado no século XII, quando as glosas ao Direito Romano buscaram, a um só tempo, ofertar maior segurança às partes - limitação do arbítrio - e o fortalecimento da autoridade do príncipe, tornando-o livre da lei humana e fazendo da sua vontade a lei, vem a explicar o porquê da admissão da tortura como meio de prova, o papel desempenhado pelo juramento, e traz também o gérmen - a partir do julgamento de Adão - da tese esboçada por Durantis, no século XIII (mais tarde encampada por Thomas More), segundo a qual mesmo o demônio mereceria as garantias legais (p. 162). O livro contém passagens notáveis, como no momento em que mostra que sem o respeito ao devido processo legal, o poder se converte em medida da moralidade em si e por si, e com tal pressuposto ficam justificados inclusive "ataques preventivos" (p. 30), a falibilidade do resultado dos ordálios como instrumento de reconstituição da verdade dos fatos (p. 70), principalmente ante as exigências de segurança para o comércio que se ia desenvolvendo à margem dos feudos (p. 118), o caráter de lei conferido ao que agradasse ao príncipe (p. 74 e 144), a centralização no Papa do poder jurisdicional em matéria religiosa, a partir de Gregório VII (p. 102), o trabalho desenvolvido pelos canonistas para o efeito de demonstrar a ortodoxia do abandono das fórmulas introduzidas pelos bárbaros germânicos (p 104), o embate entre os místicos - defensores dos ordálios, em que o julgamento decorreria de fatores estranhos ao controle humano e, portanto, da vontade de Deus - e os dialéticos, defensores do contraditório exercido pela demonstração lógica (p. 127), a contribuição da revalorização do Direito Romano para a judicialização da execução, que aos inícios da Idade Média era levada a cabo pessoalmente pelo credor (p. 56 e 138-137), a possibilidade, deferida ao Papa, de condenar, nos crimes "notórios" contra a religião, sem processo (p. 148-150), em suma, demonstrando, por outras palavras, a experiência histórica de situações cujos efeitos foram tais que se as abandonou, mas que uma sociedade assustada em um mundo que praticamente perdeu as suas referências ressuscita o homem amedrontado da Idade Média. Como se vê, o texto do Mestre em Direito Processual pela UFRGS, em realidade, mais que um estudo de processo e um estudo de história, muito bem fundamentado ao longo de sua exposição, traduz um alerta para todos nós, que vemos trazerem à vida cadáveres insepultos cuja negação foi responsável pela criação do Estado de Direito em todas as suas manifestações. A idéia de se legitimar a exclusão de direitos, ao argumento da suposta ausência de virtude do padecente ou de este ser uma ameaça aos homens de bem, como se tal não fosse a preparação da redução do círculo dos beneficiários da ordem jurídica é bem uma ilustração de uma das frases aparentemente acacianas que se contêm na obra ora resenhada, merecedora de todo acatamento (p. 26): "a ignorância da história e a falta de comparação entre as diversas doutrinas são causas freqüentes de incidência em erros já superados por outros estudiosos".

CONSTITUCIONALISMO E RESQUÍCIOS DO SAGRADO

CUNHA, Paulo Ferreira da. Anti-Leviatã – Direito, política e Sagrado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2005.

A riqueza da obra sob comentário torna uma tarefa de Sísifo a elaboração de uma síntese cabível no curto espaço de uma resenha. A laicização do Estado não impede que o autor, Professor da Universidade do Porto, funde sua obra na presença do Sagrado no Direito, desde o culto às formas pelas quais ele se manifesta passando pela caracterização do Direito como técnica, ciência e arte, a sacralização dos direitos, com especial destaque para as polêmicas em torno da propriedade e da igualdade, os desafios das ideologias, do sacrário do constitucionalismo europeu, o problema das bandeiras como expressão pictórica da soberania, a ambigüidade do etnocentrismo no exame da formação da nação. O título replica ao pensamento hobbesiano, que visara banir a sacralidade buscando um fundamento racional para a obediência universal à autoridade estatal. A obra explora dados em relação aos quais reina um temeroso tollitur quaestio – os elementos do Sagrado no pensamento jurídico-político, o esgotamento dos modelos ideológicos puros, nos quais se enquadra o “politicamente correto”, o tratamento das cores e formas como expressão da Soberania nas bandeiras - e, só por isto, mostra-se de consulta indispensável. Note-se que reconhecer o mérito não implica adesão do resenhista, cujo juspositivismo é novamente proclamado, a todos os pontos, especialmente os essencialmente comprometidos com o jusnaturalismo de cunho tomista, abertamente professado pelo autor. Mas isto é questão de mera divergência de posições que não compromete, em absoluto, a importância e o mérito da obra.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

NA PROTO-HISTÓRIA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Azevedo, Luiz Henrique Cascelli de. Jus gentium em Francisco de Vitória – a fundamentação dos Direitos Humanos e do Direito Internacional na tradição tomista. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, 256 p.
O autor, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, vem a preencher uma lacuna de que a literatura jurídica se ressentia, ou seja, a contribuição de Frei Francisco de Vitória (1483?-1546) à formação do direto internacional público e, especialmente, do direito internacional dos direitos humanos. Com efeito, antes de Bartolomé de las Casas (http://viagensamerica.blogspot.com/2009/03/escada-e-espiral-capitulo-15.html), este teólogo dominicano vem a compadecer-se da sorte dos índios da América e, a partir de Santo Tomás de Aquino e de Aristóteles, trazia argumentos notáveis quanto à unidade do gênero humano, no qual estavam incluídos os selvagens. A evolução do conceito do ius gentium, desde Aristoteles, passando pelos romanos Cícero, Gaio, Ulpiano, chegando a Justiniano, pelos teólogos Agostinho de Hipona, Isidoro de Sevilha e Alberto Magno até chegar a Santo Tomás de Aquino, fonte principal de Vitória, é estudada minuciosamente, para apontar para a semeadura das noções fundamentais do Direito Internacional Público e da própria temática dos Direitos Humanos, posto o pensador escolhido na condição de habitante da fronteira entre o teocentrismo medieval e o humanismo renascentista, abrindo ensejo, inclusive, à consideração da projeção universal do ser humano enquanto titular, em si mesma, de direitos.
Para que se verifique a importância da obra que ora se resenha para o estudioso do Direito Econômico, é preciso recordar que Vitória atuou precisamente aos tempos em que a filosofia mercantilista imperava nos Estados Nacionais europeus e foi o grande motor da aventura colonial. Por outro lado, após a queda do Muro de Berlim, houve toda uma movimentação no sentido de reduzir o ser humano às dimensões de produtor, investidor, trabalhador ou consumidor, de tal sorte que, quem não se pudesse enquadrar em nenhuma destas categorias não mereceria consideração inclusive como pessoa - a função econômica enquanto passaporte para a dignidade humana -, comprometendo a idéia da unidade do gênero humano como se fosse uma bem-intencionada, mas catastrófica, porque contrária à eficiência econômica, utopia, de tal sorte que o Direito passava a sofrer transformações no sentido do reforço do poder econômico privado, com a adoção de um processo intenso de desregulamentações e privatizações, e a restrição aos gastos públicos erguida como fundamento para denegar a concreção de direitos que não se enquadrassem dentre os clássicos direitos patrimoniais. A revisita a Vitória, ainda mais depois da crise de 2008, para superar a tentativa da redução do Direito ao econômico, impõe-se para dialogar com tal tendência.

ENTRE O TOMISMO E O LIBERALISMO ECONÔMICO

HORN, Norbert. Introdução à ciência do Direito e à filosofia jurídica. Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2005.

Este livro didático parte do pressuposto da avidez que as sociedades modernas demonstram por normas jurídicas, sobretudo diante de experiências de insegurança e destruição decorrentes do que denomina "ausência de Direito", considerado este como "a suma das normas gerais garantidas pelo Estado para a regulamentação da vida em comum das pessoas e para o apaziguamento dos conflitos inter-pessoais através da decisão" (p. 34). Trabalhados os temas usuais em obras do gênero, nota-se a preocupação enfática com os problemas jurídicos da manifestação da convicção íntima (p. 39) e da moral pública (p. 40-42), os limites gnoseológicos da religião e da ciência (p. 95), com as suas repercussões no pensamento jurídico, os dilemas entre a economia de mercado e a manutenção de seu desenvolvimento nos limites da ética, a tendência à internacionalização e universalização do Direito, com a necessidade do desenvolvimento de uma noção de Justiça - tarefa da Filosofia Jurídica - e de uma teoria do Direito adequada aos tempos de globalização e de instauração da lex mercatoria.

Temas caros ao pensamento jurídico liberal - do qual o autor se mostra representante assumido - aparecem, como o tratamento da legislação intervencionista como tipicamente excepcional, em face da generalidade da legislação de direito civil (p. 191), a recusa em reconhecer o caráter intervencionista das medidas estatais de fomento (p. 132), a superior destinação do Direito à viabilização máxima das trocas de bens (p. 146), o tratamento da economia de mercado como expressão da natureza das coisas (p. 142).

Várias informações importantes passam pelo leitor, como, por exemplo, a compatibilização feita entre a teoria que justifica o lucro pelo risco que o empresário corre e a possibilidade da participação do empregado nos lucros e na gestão da empresa (p. 192), assim como a negação de um slogan que tem sido (perigosamente) repetido amiúde, de que somente os regimes de direita que tenham caído teriam os seus dirigentes condenados e obrigados ao pagamento de indenizações, quando, ao contrário, têm sido freqüentes na República Federal da Alemanha a condenação de autoridades da antiga Alemanha Oriental por atrocidades realizadas em relação a quem fosse enquadrado como adversáro do regime que ali vigorava (p. 373-375).

A obra manifesta uma preocupação obsessiva em fazer uma defesa intransigente do capitalismo, ainda que negando alguns de seus pressupostos fundamentais, tão essenciais a ele quanto a idéia da descendência direta divina de Jesus o é para um cristão: buscando responder às objeções éticas que se fazem ao pensamento liberal, sustenta que nenhuma atuação no sentido da obtenção de lucros que se mostre antagônica a princípios éticos seria economicamente defensável, passando ao largo da ênfase que se dá às virtudes do egoísmo como fonte do progresso coletivo, como núcleo essencial do pensamento liberal.

Aliás, a observação acerca do papel do Direito quanto a ofertar a conexão da dimensão ética à economia, que, pelo ponto de vista do autor resenhado, seria despicienda, não foi feita por um marxista, mas por um opositor ferrenho de tudo o que representasse filiação a um tal pensamento, ou seja, Francesco Carnelutti e, por outro lado, não se explicaria o porquê do declínio do pensamento religioso, bem identificado por Werner Sombart como a necessidade de remover os escrúpulos que se mostrariam um verdadeiro obstáculo para quem se dispusesse a ingressar no campo de batalha mercadológico.

Não se trata de obra neutra, mas, com toda a certeza, dado o tratamento ofertado aos temas, não se lhe pode ficar indiferente: o que é motivo mais que suficiente para recomendar a leitura da obra do Professor da Universidade de Köln.