domingo, 28 de janeiro de 2018

A república ainda precisa de pensadores no Direito

SORTO, Fredys Orlando [org.]. O pensamento jurídico entre Europa e América - estudos em homenagem ao Professor Mario G. Losano. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2018.


A obra multifária do Professor Mario G. Losano, em si, dispensa apresentações, tanto pela sua quantidade quanto pela sua qualidade, tanto pelo exame de temas ligados à história do Direito quanto pelas reflexões em torno das influências do desenvolvimento científico e tecnológico sobre ele, e isto, com toda a certeza, explica que uma trintena de autores das mais diversas nacionalidades tenha acorrido à presente coletânea.

Abelardo Levaggi trabalha, esmiuçando a obra e o pensamento de Tomás Jofré, a influência de Chiovenda na formação da processualística argentina, aos tempos em que se estava a discutir a autonomização do Direito instrumental em face do Direito material, com todas as consequências que isto teria em termos de valorização do caráter oral, dispositivo e público do processo.

Alessandra Facchi versa a situação da mulher em face das categorias dos direitos humanos -- direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais -- e a relação entre tais categorias  e a amplitude da autodeterminação que lhe seja assegurada.

Alfonso Ruiz Miguel retoma os dilemas da democracia liberal, com referência especial ao problema da garantia de maior participação dos segmentos do povo no exercício do poder, por um lado, e a proteção, contra maiorias autoritárias, de um núcleo de direitos básicos, trazendo a indeterminação como um dado inexorável que somente teria como ser extinto com a extinção da própria democracia.

André-Jean Arnaud discute a relação entre a estrutura social e a formação do pensamento jurídico, olhos postos, sobretudo, no papel dos juristas durante o período feudal-cristão na Europa, nas transformações verificadas no pensamento jurídico quando da formação dos Estados Nacionais até a quase superação desta noção pelo contexto da globalização, a substituição de conceitos de "identidade" pelos de "diferenciação", de "universalismo" pelos de "globalismo", as tensões entre o "pluralismo de fontes" e a centralização da produção do Direito no Estado.

Ángeles Solanes Corella, retomando um debate muito presente na obra de Bobbio e também do homenageado, discute o papel da "função promocional do Direito" -- o chamado "Direito premial" -- no contexto do Estado Social, abalando a ênfase que se costuma dar ao caráter coativo da norma jurídica.

Carla Faralli resenha os debates em torno das concepções contratualistas do Direito e do Estado, desde a Antiguidade até a Contemporaneidade, indicando, hoje, os problemas da extensão das noções tipicamente contratuais para a fundamentação da autoridade pública, em especial as concernentes à capacidade para obrigar-se.

Carlos E. Dalpiazzo fere o problema da viabilização das contratações públicas e da solução dos conflitos a elas inerentes mediante o estabelecimento de uma uniformização ("convergência") de regimes jurídicos e de meios tecnológicos.

Francesco Belvisi, em face dos conflitos que emergem em sociedades nas quais múltiplas culturas convivem entre si e, por isto mesmo, do próprio "paradoxo da tolerância", debate a eficácia do princípio da não-discriminação em razão da identidade e a proteção dos valores erigidos como fundantes da ordem constitucional.

Francisco Javier Ansuátegui Roig, ao estudar as condições de uma cidadania baseada em direitos, retoma a ligação necessária entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, a imprescindibilidade de um aparato para a realização desses mesmos direitos, que outros, que não o titular, nem sempre estão muito dispostos a reconhecer espontaneamente,  a democracia e suas tensões.

Fredys Orlando Sorto faz uma releitura de Montesquieu a partir de sua obra principal, enfatizando seja o seu papel enquanto voltado a, no campo do pensamento social, procurar extrair suas proposições a partir da generalização de elementos comuns a mais de um ente concreto, para a compreensão do espírito das leis que regem os povos, o seu "não-contratualismo" na explicação da origem da sociedade, o estabelecimento da tipologia das formas de governo, atualizando, no particular, Aristóteles, a contribuição, na teoria da separação dos poderes, do Judiciário enquanto função estatal separada das demais.

Gilberto Bercovici introduz o tratamento do solo rural e urbano na Constituição de 1988, bem como as tensões decorrentes da necessidade de, ao mesmo tempo em que se assegura o caráter de direito fundamental à propriedade privada, ser promovida a realização de uma política de utilização do espaço que venha a reduzir o potencial conflitivo, ante o caráter de exclusividade que é inerente a esse mesmo direito sobre bem escasso.

Hugo Cancino dedica seu estudo às reflexões do homenageado sobre a identidade jurídico-política da América Latina, no quanto esta identidade, em muito, traduz uma adaptação dos elementos europeus às conveniências das oligarquias locais.

Jacques Ziller versa a relação entre o regime de proteção de dados informáticos na União Europeia e sua repercussão em face dos regimes de países que não a integram, trazendo a questão da transferência de dados com a Argentina.

João Maurício Adeodato estuda as questões envolventes das retóricas empregadas nos discursos sobre o Direito no Brasil, nascidas basicamente de um casamento entre a "escolástica", com seu apego às formas e ao culto da autoridade, e o "praxismo", bem como as falácias mais frequentes, quer no texto que se apresenta ao foro, quer no texto que se produz com o objetivo de refletir sobre o Direito.

Klaus Kempf traz sua contribuição discutindo o advento e o desenvolvimento do acervo da "Biblioteca Híbrida", isto é, a que se compõe tanto de acervo físico quanto digital, estudando o caso específico da Biblioteca Estatal da Baviera.

Luigi Bonanate debate o tema das tensões geradas pelas noções de "identidade", "cidadania" e "humanidade", no que toca à própria sobrevivência da democracia, tanto no âmbito nacional como no supranacional.

Luís Lloredo Alix. realiza um comentário à obra mais conhecida de Rudolf von Jhering (A luta pelo Direito), identificando um desdobramento das ideias do Catedrático de Göttingen no sentido de tratar a defesa dos direitos subjetivos como um dever moral que repercutiria na saúde do próprio sistema político.

Maria Áurea Baroni Cecato retoma a temática da efetividade e essencialidade dos direitos fundamentais do trabalhador na Constituição brasileira de 1988, a partir da sua consideração como ligada à proteção da dignidade da pessoa humana.

María Belén Cardona Rubert enfrenta o tratamento jurisprudencial da proteção de dados pessoais relativos ao trabalhador, em especial no que tange a filiação sindical e saúde, e os limites em que o poder de direção do empregador pode utilizar tais dados sem perfurar o direito do trabalhador à intimidade.

Maria Cristina Hermida del Llano, a partir das reflexões de Francisco de Vitória sobre a igualdade natural dos seres humanos e a própria concepção universalista do que seja um ser humano, trabalha as projeções de tal contribuição nas questões concernentes a direitos humanos e, em especial, ao caso das migrações.

Martin Laclau realiza o percurso acerca da formação das teses de Heidegger e Gadamer que têm influenciado as tendências contemporâneas da hermenêutica jurídica, num progressivo abandono das posturas normativistas tradicionais.

Miguel Ángel Ciuro Caldani, diante de um mundo marcado pela velocidade de mudanças decorrentes da tecnologia, aponta para a superação dos referenciais teóricos normativistas, próprios para o mundo do século XX, conduzindo à adoção de uma teoria trialista do mundo jurídico, na qual se apresentam as dimensões sociológica, normológica e dikelógica, lembrando em muito o tridimensionalismo de Miguel Reale.

Nelson Saldanha suscita a questão das peripécias do conceito de Direito desde o jusnaturalismo, passando pelos positivismos da Escola de Exegese em confronto com a Escola Histórica, bem como pela Pandectística, pelo normativismo e suas derivações, até chegar ao pragmatismo anglo-saxão contemporâneo e à teoria da argumentação, que tem em Alexy o nome principal, salientando o papel da sociologia jurídica, cujo desenvolvimento mostra o quão injustificável é a teoria geral do Direito atual ignorar suas contribuições, bem como a de pensadores do Direito de que dela se ocuparam, como Gény e Esser.

Norberto C. Dagrossa traz o aporte acerca das situações em que se verificou a vacância do Vice-Presidente da República na Argentina, e os modos por que se procurou resolvê-las, apontando para os riscos de acefalia a cada vez que um Vice vem a estar impedido de exercer o poder em que investido com a queda do titular.

Oscar Sarlo trabalha a tensão existente entre a teoria do Direito voltada à dogmática e a teoria do Direito centrada na argumentação dos respectivos artífices, referindo como questão central a da própria racionalidade tanto do discurso jurídico quanto do discurso sobre o Direito.

Paolo Garbarino recorda a presença de Bobbio no departamento de Filosofia do Direito da Universidade de Torino, mesmo depois que, em 1972, veio a ser substituído na regência da cátedra por seus discípulos Umberto Scarpelli e Enrico de Rubilant, o seu papel na construção do pensamento jurídico enquanto um dado a dialogar com outros ramos da ciência social, mesmo a partir de Kelsen, e no estabelecimento da linha editorial de livros jurídicos junto à Casa Einaudi.


Patricia Cuenca Gómez trabalha, a partir de Kelsen, a presença do dado de fato do poder enquanto fator inafastável da efetivação ou da frustração da eficácia do ordenamento jurídico, por mais sofisticado que este pretenda ser.

Ricardo Adriano Massara Brasileiro e Marco Antonio Sousa Alves, a partir da perspectiva do Direito enquanto discurso que se institucionaliza, versam as influências que o suporte do discurso - da oralidade à escrita e, depois, à digitalização - termina por manifestar sobre a própria substância do discurso.

Torquato Castro Júnior vem a trabalhar o papel das metáforas na construção da obra jurídico-filosófica de Pontes de Miranda.

Segue-se a relação da produção do homenageado, alcançando nada menos que 570 escritos.

Como se pode ver, a multiplicidade de temas versados nesta obra corresponde a todos os campos sobre os quais se debruçou o homenageado, e nos tempos atuais, em que os imediatismos parecem substituir os conceitos meditados e construídos para evitar as soluções à base da passionalidade, textos como este que ora se resenha vêm a parecer-se com a coruja de Minerva que, na metáfora hegeliana, alça voo no crepúsculo da Razão. A frase que levou Lavoisier à guilhotina não deve ser repetida.

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