domingo, 22 de novembro de 2009

DIREITO CONCURSAL, EFICIÊNCIA E FUNÇÃO SOCIAL

CASTRO, Moema Augusta Soares de & CARVALHO, William Eustáquio de [coord.]. Direito Falimentar contemporâneo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008.

A obra que ora se resenha tem como origem os debates travados no seio da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e se propõe a ser um ponto de partida sobre uma das matérias que mais angustiam a quantos se preocupam com a questão maior de se dar solução adequada a crises.

Eduardo Goulart Pimenta, ao analisar as atribuições e o perfil do administrador judicial, do gestor judicial e do comitê de credores na Lei 11.101/05, refere que o primeiro, como resultado da reestruturação das tradicionais figuras do síndico da falência e do comissário da concordata, pessoa física com habilitação específica ou jurídica especializada, seria o principal auxiliar do juízo na condução dos processos de falência e de recuperação judicial, e se distinguiria, por seu caráter eminentemente fiscalizador do feito e da conduta do devedor, do gestor judicial, que seria a pessoa física habilitada ou jurídica especializada, que seria nomeada pela assembléia geral de credores para gerir a empresa devedora, no caso de os gestores originários incorrerem em alguma das situações aptas, de acordo com a lei, comprometer a respectiva credibilidade, e discute as vantagens e desvantagens, sob o prisma da eficiência, da instituição, em cada processo, do comitê de credores, para a concreção do princípio da preservação da empresa que inspira o diploma sob comentário.

A discussão dos aspectos da sucessão do falido e do empresário em recuperação judicial na Lei 11.101/2005, feita por Fábio Guimarães Bensoussan, parte do pressuposto de que o enfoque legislativo “é norteado pela idéia da preservação da empresa como unidade geradora de empregos e de tributos, através de sua recuperação ou reorganização” (p. 31), e se volta ao afastamento, como regra geral, da sucessão tributária e trabalhista na hipótese de alienação de estabelecimento em processo de falência e recuperação judicial, voltando-se a tornar mais atrativa ao investidor a aquisição de ativos de empresa em apuros.

Felipe Fernandes Ribeiro Maia, ao esmiuçar a tensão recuperação judicial vs. Fisco, a partir do escopo da lei no sentido de assegurar que a empresa desempenhe sua função social, discute a abrangência da exclusão da sucessão tributária, a exigência da apresentação da prova de quitação de todos os tributos e a compatibilidade do parcelamento tributário com o princípio da par conditio creditorum, sustentando merecer rechaço qualquer interpretação que não venha em benefício do empresário e do estímulo da atividade econômica e venha em benefício do Fisco.

Marcelo Vieira de Mello versa a situação dos créditos dotados de garantia na recuperação judicial como inspirada no escopo de redução das taxas de juros bancários, ante a relação destes com as dificuldades de recuperação, por parte das instituições financeiras, dos valores por eles mutuados, distinguindo: (a) as garantias pessoais e reais; (b) o regime da concordata, que excluía os créditos não quirografários, e o da recuperação judicial, que os abrange; (c) o tratamento dos credores com garantia pessoal, equiparados aos quirografários, e o dos credores com garantia real. Traz, ainda, ao debate a possibilidade de substituição ou renovação da garantia, que será acolhida ou rejeitada pelo juiz tendo em vista a aptidão para concretizar o princípio da preservação da empresa enquanto atenda à sua função social.

As teses envolvendo o Supremo Tribunal Federal e a nova lei de falências são discutidas na contribuição ofertada por Marcelo de Andrade Feres, na qual sustenta a constitucionalidade da distinção, em termos de valores, para fins de assegurar a preferência, do tratamento dado à restituição do numerário ofertado em adiantamento de câmbio para exportação e da prioridade aos créditos constituídos durante a recuperação judicial, como medidas destinadas a coibir as fraudes em relação à coletividade de credores, beneficiando, assim, os realmente necessitados, a diminuir os riscos de inadimplência no que tange ao comércio internacional, com repercussões nas taxas de juros, e a propiciar a recuperação da empresa, de sorte que se mostre vantajosa, inclusive para os credores, o restabelecimento e manutenção da fonte produtora, geradora de empregos e de recursos tributários.

Partindo do pressuposto da impossibilidade de se conceber a atividade mercantil sem o crédito enquanto catalisador da circulação da riqueza e tendo em mente o papel do juízo concursal enquanto instrumento de sua proteção, Moema Augusta Soares de Castro debate a ordem de preferência dos credores, com foco nos créditos trabalhistas na falência, principiando pelos efeitos desta sobre os créditos em geral, a classificação destes de acordo com a lei, as razões do tratamento dos créditos trabalhistas superiores a cento e cinqüenta salários mínimos como quirografários – apontando os motivos por que as vê como “uma falácia” (p. 135) -, a questão da subsistência dos contratos de trabalho mesmo após da decretação da falência, bem como a atração, a partir da constituição do respectivo título executivo, da execução trabalhista ao juízo falimentar.

Natália Cristina Chaves discute o teor do artigo 59 da Lei 11.101, de 2005, indagando se a situação nele prevista traduziria novação ou inovação, dado que aquela categoria jurídica implica extinção – e, ipso iure, liberação – do devedor da obrigação originária, substituindo-se-a consensualmente por uma nova, ao passo que, com o escopo de assegurar que a empresa superasse o estado de crise econômico-financeira, viabilizando-lhe o atendimento da função social, foi determinado no aludido artigo que o plano de recuperação, uma vez aprovado, implicaria novação de todas as obrigações anteriores, sem prejuízo das garantias e privilégios, de tal sorte que a satisfação plena do que no plano se contenha implicaria a liberação do devedor, ficando, entretanto, o efeito novativo sob condição resolutiva, vez que, não cumprido o plano e convolada em falência a recuperação, estariam restabelecidas as obrigações antigas, com todos os seus caracteres.

Ao realizar apontamentos sobre o princípio da preservação da empresa, William Eustáquio de Carvalho vem a extrair seu fundamento primeiro do princípio da função social da propriedade, merecedor de exegese fiel à origem solidarista, no pensamento de Duguit, arredando, assim, a sua concepção meramente estática, em nome do tratamento da atividade empresarial como transcendendo o simples universo de obrigações entre a empresa e seus credores, assegurando, uma vez verificada a sua viabilidade, a mantença do abastecimento do mercado consumidor, a oferta de postos de trabalho – meio, por vezes, indispensável a que o mínimo existencial seja assegurado a um maior número de indivíduos, com o que se colocaria como uma das formas de realização da dignidade da pessoa humana – e a geração de recursos tributários, ao mesmo tempo em que se protege o crédito público e se intimida a inadimplência.

Segue-se estudo de Maria Celeste Morais Guimarães sobre as alterações no Código de Processo Civil em matéria de execução e suas repercussões na nova lei de falências, no qual, a partir do pressuposto de que esta buscou o equilíbrio entre a segurança no crédito e o fortalecimento das empresas enquanto meio de se concretizarem as aspirações do crescimento econômico e da redução das desigualdades sociais, distingue a ausência de pagamento e indicação de bens à penhora enquanto mero incidente na execução ou no cumprimento de sentença, da situação que rende ensejo à verificação do estado falimentar, que é a da execução frustrada pela ausência de bens suficientes a satisfazerem o crédito exeqüendo.

Leonardo Guimarães, por seu turno, verifica minuciosamente quais os documentos a serem acostados, obrigatoriamente, à petição inicial da recuperação judicial, extremando esta, como instituto processual-contratual, em que grande é a relevância da vontade manifestada pelos credores, da extinta concordata, como instituto tipicamente processual, comentando cada um dos fatos a serem reconstituídos e ressaltando os perigos de uma interpretação excessivamente formalista, que poderia, ao cabo, frustrar o emprego de um instrumento destinado a permitir à empresa séria, porém em dificuldades temporárias, “efetuar turnaround financeiro nessa situação, preservando-se a fonte produtora, geradora de empregos e de arrecadação do Estado” (p. 258).

Gustavo Oliva Galizzi & Leonardo Netto Parentoni questionam, a partir de artigo dos Profs. Baird & Rasmussen, publicado na Stanford Law Review, se a sugerida aplicação, pelos autores norte-americanos, da teoria da empresa de Ronald Coase, para atender a mecanismos mais ágeis e menos custosos para a realização dos créditos, é o fim da falência ou se, pelo contrário, em face da realidade da economia contemporânea, cuja forte competitividade determina a insolvência de quantos não tenham condições de enfrentar tal competição, impondo a sua expulsão do mercado e o estabelecimento de critérios que, ao invés de submeterem a realização do direito à maior agilidade do credor, venham a balizá-la pela maior relevância atribuída por lei a determinados créditos, não imporia a disciplina de um procedimento concursal, ainda mais quando se verifica o papel desempenhado pela empresa, no propiciar empregos, abastecer o mercado consumidor e gerar recursos para o erário, de tal sorte que a sua permanência no mercado deixa de ser apenas uma questão particular dos acionistas e dos credores privados para se converter em um problema social.

Claro que nem todas as teses que afloram na obra ora resenhada contam com a adesão do ora resenhista, como se pode registrar no tocante à renitência na caracterização da empresa como objeto e não como sujeito, que se vê, por exemplo, no último texto, ou à proscrição da interpretação que beneficie o Fisco, que se vê no texto de Felipe Ribeiro Maia. Entretanto, este e outros pontos merecedores de debate em outra ocasião não empanam a obra, que mostra, como traço de unidade, a caracterização da nova lei falimentar como a busca do equilíbrio entre a tutela do crédito e a preservação da empresa, para além da terapêutica cirúrgica, de simples expulsão do insolvente do mercado. De outra parte, os autores gravitam, ao analisarem a lei em questão, entre os postulados da Análise Econômica do Direito, buscando a interpretação mais acorde com a eficiência econômica, e os da doutrina solidarista de Duguit, no sentido de verificarem a melhor forma de assegurar o atendimento da função social por parte da empresa.

sábado, 29 de agosto de 2009

A EFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO NO JUDICIÁRIO PARA ALÉM DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

RÊGO, Bruno Noura de Moraes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.

A grave lacuna deixada, muitas vezes, pela impossibilidade de se examinar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, a violação de determinadas normas constitucionais, conduzindo, em razão disto mesmo, aos caminhos mais lentos e tortuosos do controle difuso, conduziu à criação da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Com efeito, surgem situações em relação às quais a ausência de um remédio mais pronto fizeram com que explodissem conflitos judiciais da mais variada natureza: o atentado ao plano plurianual, à lei de diretrizes orçamentárias e ao orçamento, por exemplo, constituem crimes de responsabilidade. Entretanto, e na hipótese de haver neles alguma inconstitucionalidade, considerando que não são tidos como diplomas aptos a autorizarem o controle em sede de ação direta, de acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal? A discussão acerca do que constituiria ou deixaria de ser preceito fundamental, e a própria compatibilização de tal discussão com o entendimento remansoso do Supremo Tribunal Federal acerca da inexistência de hierarquia entre as disposições constitucionais, ainda que aparentemente contraditórias entre si, vem, de outra parte, a atrair diretamente o interesse do juseconomista, além do constitucionalista, tendo em vista que o fenômeno das aparentes antinomias nos Textos Constitucionais emerge com freqüência no que tange ao tratamento dos temas econômicos. Por outro lado, inúmeros atos legislativos de vigência transitória, mas cujos efeitos se protraíram no tempo, como é o exemplo clássico da retenção de ativos financeiros que se verificou de 1990 a 1992, ficaram sem um pronunciamento definitivo acerca da sua validade em face do Texto Constitucional. Para situações desta natureza, em que a própria vontade do povo manifestada nas urnas correria o risco de ser desautorizada, com o comprometimento do equilíbrio entre os Poderes da República, em que se sopesam os limites entre o atendimento a interesse transindividual juridicamente relevante e a preservação dos direitos individuais, como sói acontecer em todas as questões envolvendo políticas públicas, que se constituiu o remédio da argüição de descumprimento fundamental. O autor, mestre pela Universidade de Brasília e Professor no Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB, registrando as incertezas geradas na doutrina acerca do alcance do instituto previsto no § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, regulamentado pela Lei 9.882, de 1999, procura situá-lo dentro do quadro das ações constitucionais, bem como a própria caracterização por ela assumida no sistema de controle de constitucionalidade, apontando as dificuldades encontradas quanto à constitucionalidade mesma do remédio, na medida em que reforça, mediante atuação do legislador ordinário, o sistema concentrado em detrimento do sistema misto de fiscalização da constitucionalidade. As dificuldades teóricas resultantes, sobretudo, de ainda não haver sido precisado o caráter da argüição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal são enfrentadas com brilho pelo autor, embora, evidentemente, haja alguns pontos de franca divergência, como, por exemplo, a questão de ter o legislador ordinário, sem manifestação do poder constituinte derivado, criado nova modalidade de controle concentrado, quando, a juízo deste resenhista, a lei disciplinadora da ADPF apenas veio a conferir eficácia ao § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, bem como a questão do alegado per saltum, quando o que se tem na ADPF é apenas a solução da questão de direito, ficando ao juiz de primeiro grau a plena possibilidade de apreciação dos fatos a serem reconstituídos.

domingo, 16 de agosto de 2009

O CONSTITUCIONALISMO ENTRE A RACIONALIDADE E A BARBÁRIE

KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado – os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.

Um dos mais referidos constitucionalistas da atualidade, o Prof. Martin Kriele, finalmente vem a se tornar acessível a um maior público de língua portuguesa, graças à primorosa tradução que se vem a resenhar.

Pela investigação das origens de conceitos como os de legitimidade, soberania, absolutismo, das raízes do Estado Constitucional, especialmente no que tange à divisão de poderes, aos direitos humanos, às vicissitudes da liberdade individual – tanto política quanto econômica – enquanto valor, à dignidade enquanto mediador das aparentes contradições entre liberdade e igualdade, das origens do parlamentarismo, da revalorização do ideal democrático no século XX, o autor concretiza a premissa anunciada nas páginas 58-9: “o conteúdo normativo das instituições reconhecidamente legítimas é melhor perceptível a partir de sua história, para ser exato, a partir da história da luta ideológica conduzida em torno da fundação e da implementação dessas instituições”. Pleno de atualidade o aviso que formula, outrossim, em relação às críticas às instituições constitucionais: “se o crítico não compreende as razões para essas instituições, então existe o perigo de que ele destrua uma instituição para a qual existam boas razões e que, dessa forma, não proporciona o desenvolvimento mas sim o retrocesso. Este é o destino fatal dos movimentos, os quais avançam com grande convicção, mas diminutos conhecimentos sobre a alteração ou a dissolução das instituições constitucionais, as quais são resultado de lutas seculares e comportam boas razões despercebidas pelos críticos. Essas críticas progressivas simuladas, as quais não se encontram no ápice do problema, residem, normalmente, no âmbito dos sabichões independentes ou dos sabichões sectários. No entanto, ao conseguir desencadear um movimento de massas, elas também podem produzir efeitos políticos” (p. 60). Na discussão dos conceitos em sua formação, verifica a respectiva consistência a partir do estado do conhecimento da época em que formulados, bem como as condições que levaram aos seus questionamentos, especialmente na primeira metade do século XX - o que faz desta obra muito mais do que um simples ensaio de história do constitucionalismo europeu, para permitir, mesmo, a apreensão dos conceitos por este urdidos -. As limitações da compreensão racionalista do Estado são expostas com clareza, compreensão esta que, se não é destruída, vem, contudo, a ser mitigada pela força dos interesses polarizados num dado momento e, por isto mesmo, a preservação da idéia de Estado de Direito tem reforçado o seu papel de preservação da paz e da liberdade humana: “bons e maus argumentos convencem da mesma forma àqueles cujos preconceitos e interesses lhes são proveitosos. [...] Se opiniões políticas remetem, amplamente, de forma ideológica a interesses, essa situação turva o ideal puro da razão, as não o destrói. A natureza intelectual da pessoa, como a natureza em si, é débil, mas não sem força para a renovação e reavivamento. Em razão disso, a verdade possui uma certa capacidade mágica de ‘ser evidente’, o que torna sua força de convencimento independente do interesse. Com isso sua força de convencimento vai além do círculo das pessoas diretamente interessadas na exatidão do argumento. Quando o interesse é muito forte contra o poder de convencimento do argumento, quando, por exemplo, em uma situação político-partidária polarizada não se quer fazer concessões ao opositor, isso produz uma estupidez que bloqueia o efeito convincente da verdade. Através do apelo aos efeitos estúpidos, pode-se enganar todas as pessoas durante um tempo e alguns a longo prazo, mas não todos o tempo todo” (p. 354).

Nunca como nos tempos que ora correm – e não é por menos que o autor ainda elaborou um posfácio tomando em consideração o terrorismo pós-Guerra Fria enquanto desafio a ser enfrentado pelo constitucionalismo, para se evitarem retrocessos – se mostrou tão plena de operacionalidade a distinção platônica entre o conhecimento e a opinião a que, em última análise, se reporta esta obra em todo tempo. A preocupação com a perda de espaço da racionalidade é um dos principais dados que unem o resenhista - confira-se Advocacia Pública e Direito Econômico - o encontro das águas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 206-208 - ao autor ora resenhado.

domingo, 9 de agosto de 2009

POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERESSE TRANSINDIVIDUAL

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas - parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, 238 p.

Muitos dentre os dogmas do constitucionalismo clássico, fortemente influenciados pela doutrina do Direito Administrativo, no sentido da caracterização das questões políticas, por vezes, têm levado os estudiosos a verdadeiro estado de perplexidade, considerando os próprios pressupostos teóricos do Estado de Direito, voltado a reduzir ao máximo o espaço da vontade puramente subjetiva de quem exerce o poder público. Por outro lado, o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais rendeu ensejo a que se viesse a falar na necessidade de uma atuação positiva do Estado, inclusive mediante a formulação de políticas, para o fim de sua implementação. Por esta razão, procurando enfrentar as objeções habituais, o autor, Promotor de Justiça na Comarca de Natal/RN, traz a sua experiência pessoal para o debate acadêmico e centra o debate nos modos como as políticas publicas podem ser controladas, quer no que tange à formulação, quer no que tange à execução, quer no que tange, mesmo, à respectiva transparência. Sem deixar de referir os mecanismos de controle político e social, máxime tendo em vista os progressos da idéia da democracia participativa, aponta para os limites e possibilidades do controle jurisdicional, com especial destaque para a ação civil pública. Refutando o surrado argumento de que os direitos individuais não ultrapassam a noção de direitos de defesa, que apenas exigem a conduta negativa do Estado, bem como o próprio argumento falaz dos custos como obstáculos para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, e delimitando adequadamente os pontos que, efetivamente, traduziriam o domínio reservado dos Poderes providos em caráter eletivo, reforçando sua argumentação com exemplos da própria legislação recente, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus artigos 48 e 49, enfatizando o caráter normativo da Constituição como base de seu raciocínio, trata-se de obra cuja leitura se torna obrigatória, a despeito, evidentemente, de alguns pontos passíveis de debate que não empanam o mérito da obra, como, por exemplo, ao considerar que a possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas seria decorrência da superação do positivismo e não, tão-somente, do legalismo privatista típico da Escola de Exegese, uma vez que em asserções como esta vem revelado um inconsciente compromisso com a tese de que a Constituição não integraria o direito positivo. Mas, como dito, não se tem empanado o mérito da obra e, mais do que isto, vem ela como um auxílio ao bacharel formado para o praxismo burocrático e que, por vezes, ao se deparar com um problema que escapa aos velhos formulários, vem a cair num estado de perplexidade e não consegue descobrir sequer a formulação da questão jurídica pertinente, quanto mais a solução mais adequada. Todos os motivos, pois, para se receber alvissareiramente esta obra e quantas se dediquem a este tema, na constante busca da redução do espaço do arbítrio.
O tema, em relação ao Direito Econômico, mostra-se de grande relevância, considerando tratar este precisamente das medidas de política econômica, tanto no que tange à forma pela qual vêm elas a ser implementadas - medidas provisórias, leis, decretos-leis, decretos - como no que tange aos parâmetros constitucionais para sua implementação e, ainda, os efeitos sobre as situações jurídicas já definidas. Embora se entenda tradicionalmente que se trata de domínio reservado aos Poderes "Políticos", o fato é que tais medidas, para serem implementadas, têm, necessariamente, de vir à luz mediante algum ato jurídico, e, se ao Judiciário é vedado ingressar no mérito das medidas, no sentido de se dizer se elas são "boas" ou "más", o controle da respectiva juridicidade não está a ele interditado. Por outro lado, dentro da linha que adotei em minha tese de doutoramento (Direito Econômico - aplicação e eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001), a partir da doutrina de Washington Peluso Albino de Souza e Ronaldo Cunha Campos, não existe somente a política econômica pública, porquanto o particular também formula e põe em prática medidas como as fusões, incorporações, as joint ventures e tantos outros expedientes para a conquista de mercados e enfrentamentos - e, mesmo, eliminação - da concorrência -, sem contar com o dado de que, no seio da política econômica pública, não são somente o Executivo e o Legislativo que as formulam e executam, porquanto o Judiciário, ao firmar jurisprudência em torno do meio mais adequado para conferir maior celeridade à cobrança de determinados créditos ou mesmo quando adota a política de auto-restrição não deixa de o fazer.
Bem se vê, pois, o quanto se vai reduzindo a aparente estranheza das relações entre o Direito Processual e o Direito Econômico, ainda que não se marche para um Direito Processual Econômico, quando se verifica a recorrência do enfrentamento deste tema.

domingo, 12 de julho de 2009

EM BUSCA DE UMA NOÇÃO RACIONAL DE JUSTIÇA À LUZ DAS TEORIAS DA EVOLUÇÃO

FERNANDEZ, Atahualpa. Direito, evolução, racionalidade e discurso jurídico – a "realização do Direito" sob a perspectiva das dinâmicas evolucionárias. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.

Um dos problemas que mais vêm atormentando os juristas é justamente o problema da possibilidade de uma concepção racional de justiça. Com efeito, um parâmetro de justiça que seja uniforme para todos, que tenha a previsibilidade necessária à convivência social é o desiderato de todos os grupos sociais.
Um esforço bastante positivo deve ser visto na obra de fôlego ora resenhada. A partir das teorias evolucionistas, principalmente de Darwin, o autor, membro do Ministério Público do Trabalho, procura reconstituir o conceito de "natureza humana", abandonado desde o século XIX, para o fim de, excluindo todo relativismo e toda metafísica, tratar o direito como técnica adaptativa,decorrente de uma característica básica do ser humano, que seria um mecanismo cerebral que seria responsável pela formação de um instinto de reciprocidade. Tal instinto, que o levaria a ser norteado, em cada uma das situações que vivencia, pela idéia de contrato, fez com que se tornasse possível a vida em sociedade, segundo o autor, pela possibilidade de se preverem e interpretarem, reciprocamente, as ações praticadas por cada um dos integrantes desta mesma sociedade, o que é indispensável à própria sobrevivência do homem na Terra. É assim que se criam e estabelecem relações, de sorte a informarem cada decisão a ser tomada pelos indivíduos. É com base nestes pressupostos que o autor sustentará a excelência do sistema jurídico republicano-democrático enquanto o mais necessário à manutenção da sobrevivência do ser humano enquanto tal, bem como o papel da construção do discurso jurídico, na tentativa de se impedir a interferência arbitrária de um indivíduo na esfera de outros, conferindo, assim, racionalidade a cada decisão que se tome, quando ela tenha efeitos jurídicos.

A obra ora resenhada é de incomensurável valor. E quem o diz é justamente um dos que se alinham entre os relativistas que o autor combate com tanto zelo. Com efeito, ainda não me consegui convencer de que ao Direito se possam aplicar os mesmos pressupostos metodológicos das Ciências Naturais, notadamente a biologia, e que tais pressupostos não sejam suficientes a justificar, inclusive, a tese da superioridade de uns povos em relação a outros, de umas culturas em relação a outras, de umas tábuas de valores em face de outras - postura que, a bem de ver, Jhering esposou nas primeiras páginas do seu Espírito do Direito Romano -.
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Entretanto, polemizar cada uma das proposições do autor exigiria a elaboração não de um, mas vários livros, o que, desde logo, mostra a riqueza do material trabalhado. De outra parte, isto não me impede de manifestar minha concordância com o autor em alguns aspectos essenciais e outros pontuais de seu pensamento. Dentre os aspectos essenciais, chamo a atenção para a crítica que se faz ao isolacionismo em que o jurista resolveu se encastelar, desconhecendo que não há sentido em um enunciado normativo que não incida sobre um fato passível de verificação empírica e que, por vezes, esta verificação exige o concurso dos conhecimentos vinculados a outras ciências. Um aspecto pontual com que concordo é o da situação-limite enquanto algo que nos coloca, freqüentemente, na impossibilidade de se tomar a melhor decisão: "seria igualmente estúpido que nosso ancestral hominídeo, perseguido por um predador, se pusesse a pensar qual era a melhor árvore a subir: mais vale equivocar-se que ser devorado" (p. 206). Mas, como dito, dentro do meu relativismo, hei que relativizar, inclusive, a minha postura pessoal, com o que admito que posso não estar objetivamente a adotar a melhor posição, mas é a posição que me parece a melhor. E, de qualquer sorte, dentro dos pressupostos de que o autor partiu, o trabalho traz grandes contribuições tanto para o pensamento jurídico quanto para a própria epistemologia.

HERMENÊUTICA, TOLERÂNCIA E ISLAM

FERREIRA, Odim Brandão. Laiaali, ou a universalidade do problema hermenêutico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001.
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A queda das Torres Gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001 provocou, no Mundo Ocidental, entre outras coisas, uma renovação da percepção do Oriente Médio islâmico como o grande inimigo dos avanços que a civilização cristã propiciou à humanidade. Um surto de intolerância começou a se espalhar pelo mundo e o estereótipo do árabe como um ser fanático, incapaz de raciocinar, de meditar, um ser furioso, desejoso de matar o maior número de pessoas possível para conquistar um espaço no Paraíso islâmico veio a ser plantado pelos meios de comunicação. Tem sido necessária uma longa explicação para demonstrar que árabe não é sinônimo de muçulmano, até porque existem muçulmanos que não são árabes, como é o caso dos afegãos, dos armênios, dos iranianos e dos turcos, e existem árabes que não são muçulmanos, como é o caso dos maronitas, nome que se dá aos árabes fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana. Mas ainda resta um outro estereótipo: o pensamento muçulmano teria este caráter de monolitismo? O muçulmano seria um homem que abdicou da capacidade de pensar por si mesmo?
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O livro do Dr. Odim Brandão Ferreira, ilustrado membro do Ministério Público Federal, ajuda a desvanecer tais preconceitos. Escrito antes da ocorrência de tais sucessos, narra, a partir de um manuscrito medieval elaborado na Península Ibérica hoje preservado no Rio de Janeiro, a discussão, perante um Califa, travada entre representantes dos quatro ramos religiosos mais importantes no Islam, acerca dos preceitos do Corão. Desde a linha exegética tradicional,literal, até a busca da chamada lógica do razoável aparecem na discussão que se trava ao longo desta pequena-grande brochura, revelando que o problema da hermenêutica é universal e que, em razão disto mesmo, não se pode tratar as ciências cujo objeto é referente a valores como as ciências naturais, com o que não existe uma resposta certa dada a priori para os problemas jurídicos, assim como no âmbito da religião. A resposta certa será aquela que a autoridade investida de poderes para tanto dirá que é certa e, ainda assim, sujeita a cometer erros. Assim como a controvérsia em matéria religiosa não pode ser apta a levar à conclusão de que quem esposa tal ou qual interpretação seja o que recebeu a iluminação divina e os demais são ímpios, também não se pode dizer que tal ou qual interpretação, no âmbito jurídico, seja a correta. A correção derivará, antes, da unidade de referencial básico e não do resultado que sealcançar.
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E, posta a questão da universalidade do problema hermenêutico pela obra ora resenhada, bem se vê que a questão da tolerância vai muito além de uma atitude mental em relação a tábuas de valores, para adentrar, mesmo, a consideração do outro como integrante do gênero humano. Mais que ubi homo, ibi ius, a questão maior que se coloca é ubi homo, ibi interpretatio. E, destarte, os brocardos avessos à atividade interpretativa (o famoso in claris cessat interpretatio), na realidade, mostram-se, mesmo, avessos à faculdade mais própria do ser humano, que é a de procurar dar um sentido aos dados que se lhe apresentam.

sábado, 27 de junho de 2009

RECUPERAÇÃO EMPRESARIAL E FUNÇÃO SOCIAL DOS BENS DE PRODUÇÃO

Corotto, Susana. Modelos de reorganização empresarial brasileiro e alemão - comparação entre a Lei de Recuperação e Falências de Empresas (LFRE) e a Insolvenzordnung (InsO) sob a ótica da viabilidade prática. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.
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O texto sob comentário, versão comercial da tese de doutoramento defendida pela autora perante a Universidade Humboldt de Berlim, versa a evolução dos direitos concursais brasileiro e alemão de uma visão voltada muito mais à realização do ativo para a de uma reorganização da empresa, tendo em vista a repercussão que tem a quebra em termos não apenas de frustração da realização dos créditos como também no que tange ao recolhimento de tributos e ao próprio desenvolvimento econômico de um país.
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Historia o tratamento dado ao juízo concursal brasileiro desde as Ordenações Afonsinas, vigentes quando do descobrimento, passando de uma concepção voltada a excutir o patrimônio do devedor e obter a punição deste para uma outra destinada a preservar, basicamente, a unidade produtiva, a partir da distinção entre a falência sem culpa e com culpa, já adotada em Alvará do Marquês de Pombal posterior ao terremoto de Lisboa, passando pela introdução da concordata suspensiva pelo Código Comercial de 1850, pela substituição do pressuposto de "cessação de pagamentos" pelas noções de impontualidade e atos falimentares bem como pela introdução da concordata preventiva pelo Decreto 917, de 1890, pela instituição da concordata concedida por sentença por obra do Decreto-lei 7.661, de 1945, embora o período de vigência deste fosse marcado pelo desvirtuamento, na prática, dos institutos da falência e da concordata, até se chegar à vigente Lei 11.101, de 2005, que, voltada a dar maior concreção aos princípios constitucionais da função social da propriedade e do pleno emprego, atendendo, outrossim, a reclamos apresentados pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, tem a sua ênfase no processo de recuperação da unidade produtiva. São, a seguir, esmiuçados aspectos do tratamento dado ao devedor, pela recepção da teoria da empresa - a seu ver, caracterizada como atividade e não como sujeito de direito - e pela enumeração dos devedores excluídos do procedimento concursal por estarem sujeitos a regime próprio, o tratamento dado aos credores, indicando os créditos sujeitos e os não sujeitos ao regime concursal, o procedimento de verificação dos créditos para o fim de se elaborar o quadro geral de credores, o procedimento de recuperação de empresas cuja atividade se mostre economicamente viável, justificado pelo interesse público que existiria à volta da manutenção da atividade produtiva, devendo tal viabilidade ser avaliada de acordo com as circunstâncias do caso concreto, até chegar ao regime especial de recuperação das micro e pequenas empresas. Passa a examinar a evolução do direito falimentar tedesco, desde a Lei Concursal de 1877, voltada, predominantemente, ao devedor pessoa natural, seguindo inspiração eminentemente liquidatória, embora, para assegurar a continuidade da exploração da atividade econômica, fosse prevista, também, a alienação, total ou parcial, da empresa a terceiro enquanto se processava a liquidação do titular, passando pela Lei do Acordo, pela qual o devedor poderia evitar as conseqüências do juízo concursal ao propor acordo, fosse para a redução da dívida ou a dilação do pagamento, aos credores, desde que mostrasse honestidade e capacidade financeira para a satisfação de quota mínima estabelecida em 35%, as alterações legislativas decorrentes da frustração dos procedimentos falimentares a partir da crise verificada em 1973, para se chegar à Lei de Insolvências de 1994, que revogou tanto as leis precedentes em vigor na República Federal da Alemanha quanto as adotadas na antiga República Democrática da Alemanha, adotando como filosofia a reorganização patrimonial do devedor, tanto empresário quanto o devedor consumidor, centrando o seu enfoque no devedor empresário, observando a ausência, também no Direito Alemão, de uma definição unitária do conceito de empresa, esmiuçando, outrossim, a responsabilidade tanto do empresário pessoa natural como do empresário pessoa jurídica ou coletividade sem personalidade jurídica, passando a analisar a situação dos credores, bem como as respectivas posições em relação à massa, e o direito de terceiros a obterem a restituição dos respectivos bens quando sejam indevidamente arrecadados.
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No segundo capítulo, vem a tratar as peculiaridades procedimentais referentes aos planos de recuperação, no Direito brasileiro, e de insolvência, no Direito alemão, enquanto meios de reorganização da atividade da empresa, dando realce para as questões da legitimação para a sua propositura, para os poderes do juiz no exame da admissibilidade do plano, dos meios de recuperação, com destaque, no caso brasileiro, para a eliminação da sucessão obrigacional em se tratando da alienação de estabelecimento, da presença de elementos de autonomia privada e de coação estatal no tratamento do plano em ambos os ordenamentos, conduzindo às dificuldades da doutrina em precisar a respectiva natureza jurídica, a possibilidade de o julgador impor aos credores discordantes, tanto no Direito brasileiro como no alemão, a aceitação do plano aprovado pela maioria dos credores, a fim de evitar que a minoria determine a interrupção da atividade da empresa, inspirada no Bankruptcy Reform Act (EUA), os poderes de apreciação do mérito do plano em face do pronunciamento dos credores e as conseqüências do não cumprimento dos planos. Aponta, ainda, para um dado significativo de diferença entre o Direito Concursal brasileiro atual e o anterior, ao se converter em conteúdo do plano um ato que, antes, era havido como falimentar, qual seja, a convocação de credores pelo devedor para o fim de propor dilação, remissão de créditos ou cessão de bens, e, por outro lado, a visão que se coloca quanto à inspiração político-econômica do plano de insolvência na Alemanha e no Brasil seria a de enfatizar a autonomia privada, reduzindo-se ao máximo a coação, substituindo-se disposições imperativas por normas dispositivas: seria uma das expressões da desregulação da economia.
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No capítulo subseqüente, é examinado o procedimento de recuperação da empresa tal como disciplinado no Direito brasileiro, desde a legitimação para o instaurar - restrita ao devedor ou, extraordinariamente, no caso de morte do devedor empresário individual, ao cônjuge supérstite, aos herdeiros e ao inventariante, e, no caso de a sociedade empresária ficar reduzida a um sócio apenas, a este -, passando pelas condições que deve ostentar, elencadas no artigo 48 da Lei 11.101, de 2005, e pelo pressuposto objetivo da crise econômico-financeira da empresa, embora tal conceito tenha os seus termos "abertos" pela impossibilidade de o legislador elencar minuciosamente todas as hipóteses em que se poderia configurar, sem que se confunda com a mera inadimplência de obrigação líquida e certa, tendo como finalidade, mais do que evitar a falência, preservar a empresa, garantir o cumprimento de sua função social e o estímulo à atividade econômica. Recorda competir o processamento do pedido ao juízo estadual, diante do que dispõe o inciso I do artigo 109 da Constituição de 1988, do local onde se situe o estabelecimento principal ou a sede da filial de empresa estrangeira que atue no país. Observa que, em pleno contexto de globalização e integração econômica, o juízo concursal ainda seguiria o princípio da territorialidade, não abrangendo o restante dos países onde a empresa atue. Passa ao exame dos efeitos do ajuizamento do pedido de recuperação em relação às obrigações firmadas anteriormente a ele e à distinção entre créditos concursais e extraconcursais, tratando a classificação dentre estes últimos da obrigação contraída após o ajuizamento do pedido como apta a incentivar a continuidade da atividade empresarial, viabilizando não somente o acesso do devedor a financiamentos como também a própria mantença dos negócios dele com fornecedores e clientes, indicando, outrossim, a disciplina dos créditos quirografários anteriores ao ajuizamento do pedido, conversíveis em créditos com privilégio geral no caso de ser decretada a falência quando o respectivo credor, no período da recuperação, continue a prover o devedor de bens e serviços, e a interdição ao devedor da alienação ou oneração de bens do ativo empresarial, salvo se o juiz, ouvido o comtê de credores, reconhecer evidente utilidade na operação, ou quando esta aparecer como um dos meios recuperatórios previstos no plano. A seguir, examina o pedido de recuperação após a instauraçao, por qualquer credor, do processo de falência, sendo que somente quando se fundar no pressuposto objetivo da impontualidade e estiverem presentes os requisitos e condições postos para o processamento de tal pedido em caráter principal, poderá ele ser formulado no prazo para defesa. Prossegue distinguindo entre os atos judiciais que determinam o processamento do pedido de recuperação - despacho de mero expediente, não recorrível, de acordo com o entendimento firme do C. Superior Tribunal de Justiça -, a sua extinção - sentença, atacável via apelação - e a sua concessão - decisão interlocutória, atacável via agravo de instrumento -. Seguem-se considerações a respeito dos efeitos jurídicos do deferimento do pedido recuperatório, que são a nomeação de administrador judicial - normalmente, recaindo na pessoa do devedor ou, quando este seja sociedade empresária, nas pessoas que estejam encarregadas de tal mister, salvo quando presente alguma das hipóteses da lei que determinem o respectivo afastamento ou tal permanência venha a obstar ou dificultar a continuidade da atividade empresarial, com o que deverá recair tal encargo em outra pessoa idônea, a critério do juiz -, a abertura de prazo para a apresentação do plano de recuperação, o início da suspensão do curso da prescrição e das ações em face do devedor, a preservação das obrigações anteriores salvo definição em sentido diverso no plano de recuperação, o dever de apresentação mensal, por parte do devedor, de demonstrativos de receitas e despesas no período que durar o estado de recuperação. Discute, ainda, a permanência da necessidade da presença do Ministério Público nos procedimentos concursais diante do veto aposto pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República ao dispositivo que a previa, concluindo pela inoperância de tal veto, tendo em vista a presença, em tais procedimentos, de interesses transcendentes à economia interna das obrigações travadas pelo devedor. Por fim, debate a questão da exigência das certidões negativas de débitos tributários para a concessão do pedido recuperatório, considerando-a incompatível com a finalidade deste.
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No capítulo quarto, examina-se, à luz do Direito germânico, a reorganização enquanto alternativa prevista para a satisfação dos credores no processo de insolvência. O pedido de reorganização tem lugar com a confissão do devedor, embasada em prognósticos demonstráveis, do risco de se tornar incapaz de honrar seus compromissos acaso não deferido o pedido de reorganização, dependendo a sua permanência na administração de requerimento formulado por ele ou, no curso do processo de insolvência, de postulação dos credores. Em regra, no Direito tedesco é competente o juiz de primeira instância, especializado em Direito da Insolvência, na sede do Tribunal de Justiça do Estado (Land) em que se ache o centro da atividade econômica do devedor - regra aplicável inclusive aos grupos de empresas, em que a insolvência de cada uma não afeta as demais integrantes do grupo -, restando a solução das questões conexas sujeita ao Direito Processual geral. A competência do juízo especializado, à ausência de tratado internacional em sentido contrário, vem a estender-se também no plano internacional em relação ao processamento das causas concursais que extrapassem o âmbito da União Européia, e, no âmbito desta, a competência territorial será no país onde a empresa possuir o principal centro de interesses, que, até prova em contrário, será aquele declarado nos estatutos respectivos. Derrogada a regra geral da indelegabilidade de competência jurisdicional, o juiz de direito pode transferi-la ao Rechtspfleger, salvo no que diz respeito à condução do processo até a abertura da insolvência, à nomeação do respectivo administrador e à "condução do plano de pagamento do devedor consumidor" (p. 159). De acordo com o Bundesgerichtshof (Tribunal de Cassação Federal, equivalente ao Superior Tribunal de Justiça, no Brasil), não é somente o pedido de insolvência pelo credor que merece o controle de admissibilidade, como também a confissão, para se obviarem os riscos para a satisfação pontual dos créditos, com o que se deve verificar, primeiro, se o devedor tem a capacidade para a insolvência, se na peça em que requer estão indicados, objetivamente, fatos que a venham caracterizar ou a caracterizar o risco de ela se verificar, se o patrimônio do devedor seria suficiente para o pagamento de custas e se o pedido se mostraria compatível com o procedimento de insolvência para empresas. Admitido que seja o pedido, investe-se o juiz dos poderes para tomar todas as providências de interesse para o processo, conferindo-se-lhe ampla iniciativa probatória, ouvindo testemunhas e peritos. Escande, a seguir, as providências judiciais para a continuidade da atividade empresarial no período de pré-insolvência, como a nomeação de administradores - preferencialmente recaindo sobre pessoas não integrantes da administração ordinária da empresa devedora, somente se admitindo que os administradores desta permaneçam em caso de deferimento de pedido expresso dela ou do comitê de credores -, a proibição a que o devedor exerça sobre os bens integrantes do ativo da empresa o poder de disposição ou o condicionamento da eficácia dos atos que o materializem à anuência do administrador provisório, a proibição ou suspensão provisória de medidas executivas sobre o patrimônio do devedor, a determinação de intervenção na correspondência deste e de que bens objeto de garantia que se mostrem essenciais à continuidade empresarial não sejam expropriados ao devedor em prol do credor. Aponta para o papel da fase de pré-insolvência, entre o ajuizamento do pedido de confissão de tal estado e a abertura da insolvência, ocmo apto a propiciar a obtenção de liquidez por parte do devedor, exemplificando com a transferência do encargo do pagamento dos salários atrasados até três meses antes da abertura ao Departamento Federal do Trabalho, permitindo-lhe poupar este dinheiro para se poder reequilibrar. Investiga, a seguir, os efeitos jurídicos da abertura da insolvência, principiando pela sanção de ineficácia a todos os atos de disposição praticados pelo devedor, nomeando o juízo administrador - em regra, pessoa estranha à administração ordinária da empresa, a partir de rol constituído por todos os profissionais que se coloquem à disposição do juízo e não de lista previamente elaborada por este (tema que foi objeto, inclusive, de pronunciamento do Tribunal Constitucional Federal à luz do princípio da igualdade de todos perante a lei), podendo, entretatnto, recair sobre a pessoa do devedor o encargo, desde que seja formulado pedido expresso por este ou pelo comitê de credores, sob a fiscalização de um supervisor -. Passa a examinar os efeitos da apresentação do plano de insolvência pelo devedor, com a suspensão das medidas voltadas à realização do ativo até a respectiva aprovação e homologação, salvo quando implicar tal suspensão prejuízo para a massa, o regime dos contratos vigentes quando da abertura da insolvência - com especial referência ao direito de opção do administrador entre o cumprimento do contrato e a exigência à outra parte de que atenda a respectiva obrigação e o não cumprimento respectivo, convertendo a 0utra parte em credora da insolvência, bem como à extinção dos contratos de mandato e da relação decorrente da gestão de negócios -, a situação dos credores com garantia, o papel do juízo da insolvência como fiscal da lei e como responsável pela viabilização da solução negociada entre o devedor e os credores. Expõe, ainda, as incumbências do administrador da insolvência, sobretudo no que diz respeito à continuidade da atividade empresarial, cuja última palavra, a bem de ver, caberá ao comitê dos credores. Salienta, por fim, a ausência de intervenção do plano de insolvência nas relações que se estabelecem com os sócios ou acionistas.
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A comparação entre os ordenamentos brasileiro e tedesco, propriamente dita, vem a ser feita no capítulo quinto. Principia-se a investigação da legislação concursal enquanto concretizadora dos princípios constitucionais da isonomia e da função social da propriedade, albergados tanto na Constituição brasileira (artigos 5º, caput e XXIII, e 170, III) como na Lei Fundamental de Bonn (§ 1º, 3, e § 14, 2), referindo, em relação à brasileira, o papel por ela desempenhado no despertar a consciência jurídica para o papel da Constituição enquanto integrante do Direito positivo. Desenvolve, por outra parte, digressão sobre o surgimento e a evolução da análise funcional dos institutos básicos da economia de mercado, quais sejam, a propriedade e a liberdade contratual, desde a obra de Enrico Cimbali, publicada em 1884, passando por Karl Renner, Rudolf von Jhering e Otto von Gierke, enquanto verificação da necessidade de se buscar um título de legitimação, perante quantos sejam afetados por seu exercício, dos poderes inerentes aos que se coloquem em posição de vantagem, de tal sorte que se chegou à formulação, no § 153 da Constituição de Weimar, repetida no nº 2 do § 14 da Lei Fundamental de Bonn, à idéia de decorrer, da propriedade individual, obrigação para o proprietário. No âmbito do Direito brasileiro, estuda a evolução do tratamento de propriedade, com a recepção da idéia de função social nos textos constitucionais, olhos postos sobretudo no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição de 1988, apontando, ainda, para a distinção entre bens de consumo e bens de produção como um dos fatores aptos a permitirem o reconhecimento de uma dimensão positiva para a funcionalização da propriedade individual, ao lado da óbvia dimensão negativa. Quanto à função social do contrato, refere a contribuição de Luís Renato Ferreira da Silva no sentido de a considerar como decorrência do princípio solidarista posto no inciso I do artigo 3º da Constituição de 1988, indicando, assim, que a linha de interpretação mais adequada para a legislação concursal brasileira haveria de ser muito mais aquela que garantisse a preservação da função social da atividade empresarial do que aquela que priorizasse a satisfação de créditos em caráter privilegiado, com o que considera, mesmo, inconstitucional a exclusão de credores com garantia da sujeição ao processo recuperatório. Quanto à legislação concursal alemã, o enfoque se coloca principalmente na garantia do direito de propriedade, de tal sorte que se reduzam os pedidos de insolvência e, assim, a noção de função social se coloca no sentido de se garantir a higidez do crédito enquanto responsável pela circulação de riquezas – a recuperação do devedor se coloca, antes, no sentido de se evitar que, com a sua eliminação, os créditos percam a sua efetividade – e, com isto, explicar-se-ia o porquê de se incluírem na fase de saneamento da empresa os credores com garantia, bem como o afastamento de tradicionais privilégios, como o do Fisco. Indica estar voltada a reorganização empresarial, naquele país, voltada especialmente ao setor de prestação de serviços, ali predominante, e cuja maior riqueza está nos bens imateriais, como o know how. Salienta a escassa utilização do plano de reorganização na Alemanha, atribuindo-a tanto à resistência do devedor em ajuizar o pedido de confissão antes que a crise econômica da empresa tenha alcançado o estado de efetiva insolvabilidade quanto ao regime de extremo rigor a que sujeita a responsabilidade do administrador judicial, questionando, ao final, a adequação da concepção da reorganização como meio de realização do ativo, indicando a necessidade de mudança do enfoque para o escopo de manutenção da atividade empresarial. Após referir como ponto de convergência entre os direitos brasileiro e germânico a oferta de meios judiciais para que o devedor venha a atalhar a configuração da total insolvabilidade, indica, a partir da experiência de duas grandes empresas que entraram em crise e postularam a reorganização logo após ter entrado em vigor a Lei brasileira, a necessidade de aperfeiçoamento desta legislação, postas a preservação da função social da empresa e a par conditio creditorum - argumento principal erguido pela autora tanto contra a ausência, no Direito brasileiro, da vinculação de todo o universo de credores (p. 222) quanto contra a preeminência concedida aos créditos com garantia (p. 224) - como balizadores para a verificação da seriedade dos pedidos, para a escolha do administrador, bem como para se investigar a viabilidade econômica da atividade empresarial. Quanto ao Direito germânico, refere a maior vantagem representada pela elevação do pedido de reorganização à categoria de processo autônomo para o fim de dar maior efetividade ao instituto, baseando-se no dado objetivo da ameaça de impossibilidade de honrar os pagamentos aliado à viabilidade econômica da recuperação da empresa, pondo-se a manutenção desta como conditio sine qua non "para a melhor satisfação dos credores e também para a manutenção de empregos" (p. 245). Assim, o enfoque passa a ser, antes, o da função social da empresa do que o da realização dos créditos, impondo a adequação das regras procedimentais à nova finalidade da legislação concursal, inclusive no que tange à intervenção no direito societário, de sorte que os feitos que envolvam a reorganização de empresas de um mesmo grupo sejam tratados como uma unidade. Como desafios comuns a ambos os ordenamentos jurídicos, aponta as dificuldades na definição da viabilidade econômica da empresa, a escolha do administrador de acordo com as peculiaridades do caso concreto, recaindo, quando for o caso, em pessoa jurídica especializada e, ao cabo, a definição da forma de remuneração.
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Nota-se que a obra tem como um dos principais méritos o reconhecimento da presença de um interesse que refoge ao aspecto estritamente privatista. Nem todas as proposições contam com a adesão do resenhista: a crítica a respeito da incompatibilidade da sistemática da definição dos efeitos da recuperação da empresa e da falência no âmbito internacional toma como exemplo o dado de que sentença proferida no Brasil não teria produzido efeitos no exterior (p. 130, nota 388), quando, neste particular, não seria merecedor de quaisquer censuras o legislador brasileiro, porquanto não poderia legislar para produzir efeitos em outro país. De outra parte, a insistência da autora, explicável por conta da formação na área do Direito Comercial, em tratar a empresa como objeto e não como sujeito de direito, quando, a bem de ver, salvo pronunciamento em sentido contrário do legislador, a gama de interesses nela individualizáveis, não se confundindo com os do empresário, já foi pelo resenhista afirmada, com lastro na autoridade de Washington Peluso Albino de Souza em mais de uma ocasião. Mas, de qualquer sorte, o brilho da obra não se encontra empanado por estas observações.

terça-feira, 9 de junho de 2009

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E RESPONSABILIDADE FISCAL

ASSONI FILHO, Sérgio. Transparência fiscal e democracia. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009.

Com a queda do Muro de Berlim em 1989, a questão do déficit público passou a ser o centro das preocupações da política econômica, uma vez que o desmoronamento de tais regimes, que, ao lado dos cerceamentos às liberdades políticas, eram baseados numa direção estatal da economia, veio a ser considerado fator de legitimação suficiente para o movimento de retração da presença estatal, apontando-se, demais disto, para o peso excessivo de tal presença, traduzindo-se em tributação sobre os agentes privados. De outra parte, considerando-se o problema da malversação dos recursos públicos invocado como meio de racionalização para a conduta da recusa de atendimento ao dever de pagar tributos e da própria questão ainda não resolvida acerca da amplitude da participação no exercício do poder a ser assegurada, observa-se que a questão do tratamento das finanças públicas viria a assumir uma dimensão muito além do meramente técnico-contábil.

Foi neste contexto, resumido apertadamente no parágrafo anterior, que às normas gerais de Direito Financeiro vigentes no País desde 1964, assomou a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”. Este mesmo diploma, outrossim, é o que rende ensejo à obra que ora é resenhada, versão comercial da tese de doutoramento do autor, defendida na Universidade de São Paulo em 2008, que inicia suas reflexões a partir de uma premissa posta por Teilhard de Chardin, no sentido de que a ordem democrática seria a única apta a garantir a realização dos ideais de “personalização” – assim compreendidas as possibilidades de cada qual perseguir livremente as suas aspirações e ideais – e de “organização” – assim compreendida a oferta de estruturas aptas a permitirem o acesso de cada qual, na medida de sua capacidade, à possibilidade de contribuir na conformação das relações da sociedade em que vive -, centrando o seu foco na democracia enquanto processo de formação das decisões governamentais, em que há mister a presença de moderada tensão entre as forças políticas contendoras para que possa, efetivamente, funcionar, embora a própria noção de autoridade não seja derruída. Considera que o sistema de valores, para que se pretenda democrático, haveria que se fundar no binômio liberdade/igualdade, desenvolvendo suas reflexões a partir de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Jean-Jacques Rousseau, Raymond Aron, Georges Burdeau e Isaiah Berlin, para demonstrar a distinção entre a liberdade natural do indivíduo e a liberdade exercida no meio da sociedade, que se vem a manifestar pelo princípio da maioria, em que a autonomia individual se coloca em convívio com a possibilidade igual de participação no exercício do poder, a fim de se evitar que medidas arbitrárias sejam impostas a qualquer pessoa submetida à autoridade estatal. Passa a examinar as instituições criadas para a viabilização do processo democrático, iniciando pela Ágora ateniense, onde os cidadãos a exerciam em caráter direto, sob as críticas de filo-aristocratas como o historiador Tucídides, o comediógrafo Aristófanes e o filósofo Platão, passando, após séculos de compreensão de poderes “absolutos” nas mãos dos governantes, pela atribuição a órgãos a serem preenchidos por indivíduos escolhidos pelo povo como os mais aptos a falarem em seu nome, exprimindo a vontade geral, com a criação, ainda, de entidades intermediárias que representariam as visões de mundo que se pretenderia ver convertidas em inspiradoras de políticas públicas – os partidos políticos -. A inviabilidade da colheita direta da vontade geral, tendo em vista o crescimento populacional, a complexidade das relações sociais e a grande extensão territorial de alguns dos Estados teria sido a responsável pela criação das instituições que viabilizaram a democracia representativa ou indireta, embora esta, também, não se veja isenta de problemas que o autor aponta com lastro em Anthony Downs, Joseph Schumpeter, Charles Lindblom, Carl Becker, Norberto Bobbio, Karl Loewenstein, John Randolph Lucas, Anthony Arblaster, Maurice Duverger, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Pontes de Miranda, que consistiriam no caráter basicamente individualístico da disputa dos partidos pelo poder, no controle recíproco a partir das trocas de favores, o atendimento, pelos políticos eleitos, dos pequenos grupos sociais que constituem a sua base, que podem não corresponder ao de toda a coletividade, a tendência ao estabelecimento de situações de privilégio para determinadas lideranças partidárias, o esvaziamento dos compromissos ideológicos dos programas dos partidos, de tal sorte que todos, praticamente, vêm a se converter em meras pontes para a conquista do poder para pessoas integrantes de determinados grupos e não em nome de determinados valores, na influência dos meios de comunicação no processo eleitoral e, mesmo, na conformação da opinião pública acerca do modo de gerir a res publica mediante o emprego das técnicas propagandísticas, a ascenção da tecnocracia e da burocracia, reduzindo não só a celeridade no atendimento, por parte do Poder Público, às demandas do cidadão como também o próprio espaço franqueado ao debate, ante a exigência de conhecimentos técnicos para a solução de problemas cada vez mais complexos. Com lastro em Raymond Aron e Giovanni Sartori, observa que mesmo estes problemas não invalidariam as instituições próprias da democracia representativa, porquanto permitiriam a organização da competição entre as facções que pretendam a conquista do poder, arredando os meios arbitrários e violentos que caracterizam as revoluções e golpes de Estado, apresentando-se como uma solução para o impasse a combinação de elementos da democracia representativa com elementos da democracia direta, caminhando-se para a democracia participativa, mercê da qual canais de participação direta e voluntária convivam com as instituições políticas inerentes ao modelo representativo, invocando como teóricos defensores desta modalidade de síntese Tarso Genro, Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato, Adam Przeworski, Susan Stokes, Bernard Manin, Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer. Passa a investigar a base sócio-econômica do Governo democrático, observando a necessidade da difusão dos valores em que este se fundamenta mediante o processo educacional e a efetivação da cidadania a partir do momento em que a nenhum indivíduo submetido à autoridade do Estado seja sonegada a garantia do mínimo vital e das condições para que cada um possa desenvolver plenamente a sua personalidade, de tal sorte que se possam reduzir as tensões que, fora de um patamar máximo de controlabilidade, poderiam colocar em risco as instituições que asseguram, inclusive, o funcionamento do mercado. Aponta, ainda, para o esmaecimento da distinção entre o poder econômico e o poder político, em virtude da formação de estruturas empresariais nascidas do processo de concentração, que vêm a, em nome dos respectivos interesses comerciais, a comprometer inclusive a soberania dos Estados, e cujo dique estaria, justamente, na efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, buscando a redução das desigualdades sócio-econômicas. Alerta, com base em Pareto, para a impossibilidade prática de uma ordem social estável, trabalhando, antes, com uma perpétua mutação que se estabelece em ritmos diferenciados, destacando o processo democrático enquanto o mais apto a assegurar o ritmo mais célere na eliminação dos obstáculos ao desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo que vive em determinada sociedade, de tal sorte que – consoante C. B. MacPherson – estes mesmos indivíduos não mais se vejam como meros consumidores de produtos prontos para se converterem em atores das histórias respectivas.

No capítulo seguinte, cuida da participação do cidadão na Administração Pública enquanto atividade exercitada uti universi, isto é, do cidadão buscando levar a sua contribuição ao todo social a partir de um interesse que transcende a sua utilidade individual e exclusiva, pela possibilidade de fruição dos resultados do atendimento ao interesse de toda a coletividade, invocando como referência a lição de Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón Fernandez. A presença do cidadão no contribuir para as decisões estatais, que, no entanto, continuam com as instituições construídas para o funcionamento da democracia representativa, teria como efeito pedagógico, no ver do autor, a possibilidade de o cidadão comum discernir entre as medidas que realmente viriam em benefício do público daquelas que teriam como objetivo unicamente comprar simpatias, entre o que seria necessário para que a sociedade se desenvolvesse harmonicamente e as medidas de caráter meramente clientelista, que pressuporiam uma postura de passividade do cidadão diante do Estado. Caracteriza o novo paradigma do Estado Democrático como poliárquico, em que os centros de poder se encontrariam difusos pela sociedade e a oposição, enquanto voz das minorias, enquanto dissenso necessário para se evitar que a própria maioria se convertesse em tirania, trabalhando a idéia de participação cidadã enquanto direito humano previsto no artigo 25 da Resolução 2.200-A XXI da ONU, de 1966, traduzida na busca de um “consenso decisório quanto aos rumos a serem seguidos pelo Estado-Administração a bem da coletividade” (p. 55). Por implicar a idéia de participação a aproximação entre os que se submetem ao poder estatal e os que estão investidos neste, tem-na o autor como inseparável do princípio da publicidade, que impõe sejam ofertadas à população informações suficientes acerca dos grandes problemas que ocorrem no território onde o poder é exercido e da adequação das soluções que lhes serão ofertadas. A publicidade vem, pois, a converter-se em “transparência administrativa”, pela qual a população vem a obter as informações que lhe possibilitem as discussões acerca do que se entenderia como o legítimo interesse público. Visualiza, em função disto mesmo, na efetivação do princípio da transparência administrativa a constituição da denominada “esfera pública não estatal”, em que movimentos, associações e organizações das mais diversas orientações, mesmo sem vinculação com as estruturas do poder político, vêm a ter aptidão para verem suas aspirações convertidas em políticas públicas. Tal participação, outrossim, vem a ser trabalhada a partir de espaços assegurados pela ordem jurídica a que os próprios súditos venham a colaborar na conformação desta. Numa palavra, a ordem jurídica, enquanto expressão da vontade geral, vem a ser tratada como resultado da autodeterminação dos indivíduos que vêm participar na elaboração dos diplomas normativos. Identifica como matrizes no âmbito constitucional, em caráter mais geral, no Brasil, a consagração do direito de qualquer cidadão ter acesso a informações de caráter individual ou geral, a consagração dos princípios da publicidade e da moralidade administrativa, a previsão do direito de reclamar acerca do funcionamento dos serviços públicos, do direito de acesso aos registros administrativos e informações concernentes aos atos governamentais e do direito de representação contra o exercício negligente ou abusivo de funções públicas por parte dos respectivos agentes, e como disposições específicas, além da clássica formulação concernente ao poder emanar do povo e ser exercido por este direta ou indiretamente, traz à balha as concernentes à participação no processo legislativo, mediante o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular - destacando projeto de lei elaborado por Fábio Konder Comparato em relação à regulamentação de tais institutos -, a previsão constitucional de colegiados públicos no que tange à gestão do Sistema Único de Saúde, da seguridade social e da educação, as audiências públicas, adotadas em primeiro lugar pelo Legislativo e estendidas aos demais Poderes.

No capítulo subseqüente, fixando como premissa a atuação do Estado-Administração como norteada ao atendimento das necessidades públicas, forte na autoridade de Regis Fernandes de Oliveira, refere o próprio fundamento para o exercício da atividade financeira pública, na qual o orçamento, ao contrário do que ocorre no âmbito particular, onde tem o caráter de um negócio jurídico declarativo, vem a ser conteúdo de diploma legislativo enquanto personificação de um programa de ação governamental. A participação popular direta na elaboração do orçamento público é vista como instrumento de combate à corrupção e ao clientelismo, com a mais efetiva verificação da gestão dos recursos obtidos coativamente aos contribuintes. Tal participação, outrossim, vem a se mostrar mais efetiva quanto mais próximo o centro do poder da população, com o que a autonomia municipal e a forma federativa de Estado lhe forneceriam o ambiente mais propício para frutificar e põe na ordem do dia a responsabilidade do gestor perante esta mesma população. A partir daí, inicia as reflexões em torno do conceito de sociedade civil enquanto parcela da sociedade que se vem a organizar com o propósito de influir nas decisões que se materializarão como políticas públicas, centrando sua análise na definição da própria gestão dos recursos aptos a materializarem tais decisões, recordando, sempre, que os gastos públicos têm como principal fonte de financiamento os próprios usuários efetivos ou potenciais do serviço público, e que esta realidade se torna mais patente em se tratando do financiamento de políticas locais, em que a maior palpabilidade dos resultados teria como efeito o estímulo maior à participação popular. A descentralização dos recursos públicos, portanto, é posta pelo autor como meio mais eficiente de permitir a conscientização da importância da participação direta da população na gestão desses mesmos recursos. Indica, ainda, o papel desempenhado pelo associativismo na formação de uma cultura de participação, evoluindo desde a reclamação pelo reconhecimento de direitos para assumir um caráter propositivo em relação às políticas públicas e fiscalizatório em relação à atuação dos agentes públicos. Observa o papel desempenhado pelos espaços associativos enquanto canais que se abrem diante de lacunas nos espaços oferecidos pelo próprio Estado, distinguindo entre grupos de promoção e grupos de interesse, com base em classificação de Ferrando Badía, e verificando os limites entre as estratégias “legítimas” de convencimento dos agentes políticos estatais e as estratégias “ilegítimas”, próprias do lobbyismo. Considera que a eficiência da participação popular exige a presença de uma rede associativa apta a se contrapor a práticas de natureza clientelista. Nota, ainda, o papel da participação da coletividade no controle das possibilidades de desvios no exercício do dever-poder de gestão do erário público, relacionando, assim, a responsabilidade na gestão fiscal com o controle social. Refere a presença de uma enorme gama de controles no âmbito financeiro, examinando o papel do Tribunal de Contas e do Ministério Público, bem como as respectivas limitações, confrontando-os ao controle exercido diretamente pelo povo, trazendo, por fim, as previsões abstratas de sanções para assegurarem a efetividade do desiderato da responsabilidade na gestão fiscal.

Retomando a idéia da maior efetividade da democratização das decisões em um contexto federativo, lançando como premissa básica observação de Aléxis de Tocqueville, comparando a forma de Estado dos EUA com os Estados unitários da Europa, desenvolve também teses em torno da mais pronta resposta para os problemas pela instância de poder mais próxima e, mesmo neste caso, que esta dê preferência pela oferta de condições para que a sociedade resolva por si os problemas: numa palavra, também a participação possibilitaria a concreção do princípio da subsidiariedade. Considera a descentralização das finanças como meio indispensável a dotar de uma real autonomia os entes federados locais, discutindo as características do federalismo brasileiro, trabalhando, sob o aspecto fiscal, tanto a sistemática da repartição das competências tributárias como da participação das entidades menores no produto da arrecadação das maiores. Observa, também, o papel da disciplina da distribuição das receitas pelas entidades federativas tanto no estabelecimento do equilíbrio entre estas – que não estão em relação de hierarquia umas com as outras, diversamente do que ocorre em Estados unitários descentralizados - como no conferir maior visibilidade ao Poder estatal para os cidadãos, principalmente no que tange aos Municípios. Enfatizando o controle social das finanças públicas como poderoso instrumento de aproximação entre governantes e governados, trabalha a presença destes na escolha de prioridades a serem satisfeitas mediante os recursos disponíveis, normalmente, escassos para o atendimento de todas as necessidades públicas. Menciona, ainda, dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro que permitiriam à população a supervisão direta da sociedade em relação à atividade financeira dos entes locais e debate a experiência do orçamento participativo. Discute as vicissitudes do processo de emancipação de Municípios, que, a princípio, seria a própria manifestação de um grito de independência de coletividades que manifestariam pontos aptos a constituírem uma identidade comum, distinta daquela do Município-mãe, e que ao cabo vieram a ser motivadas, antes, pela possibilidade de obtenção de transferências de recursos das entidades federadas maiores – a União e os Estados em que se localizam – e com as finanças voltadas, basicamente, à manutenção do aparato burocrático das novéis entidades muito mais do que ao benefício das populações respectivas, com o que seria necessário evitar o paradoxo em que se converteram as emancipações antes da Emenda Constitucional n. 15, que de afirmação de autonomia vinham, antes, a confirmar e reforçar a dependência em relação às autoridades maiores.

Debatida a relação entre o federalismo fiscal e a democracia participativa, procura-se desenvolver o conceito de controle social orçamentário, no sentido de render ele ensejo à formação de uma esfera pública não-estatal, paralela ao poder constituído, não no sentido de desestabilizar a este, mas de dar aos governados a possibilidade de um monitoramento constante da atuação dos políticos, de tal sorte que estes assumam a responsabilidade pelo atendimento a reivindicações que, a despeito de corresponderem a necessidades sentidas pela coletividade, não ingressam na agenda política tradicional. O compromisso político passa a ser, assim, com os reais anseios dos cidadãos que tragam as suas pretensões aos poderes constituídos e dele vêm a realizar a cobrança. Ainda que não haja disposição constitucional expressa acerca do controle social orçamentário, sua consagração mediante diplomas como a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto da Cidade não se mostraria, entretanto, incompatível com a consagração da democracia representativa enquanto princípio constitucional sensível, com o que a capacidade de avaliação das prioridades, no momento da decisão, ainda permanece com os Poderes Públicos: o que não pode deixar de ocorrer é a oportunidade para que as pretensões sejam apresentadas para o fim de que possam ser avaliadas e, se for o caso, incorporadas, prestando contas pelo não acatamento, dentro da linha da impossibilidade do exercício da atividade pública que não tenha como ser, pelo menos, explicado. A metodologia de trabalho, outrossim, nesta modalidade de controle, há de observar as peculiaridades de cada uma das localidades em que serão realizados os investimentos públicos. De outra parte, com o reconhecimento da essencialidade da partilha do Governo entre governantes e governados à plena realização dos direitos fundamentais e da lição de Regis Fernandes de Oliveira no sentido de que tal realização pressupõe a tomada de decisões acerca dos instrumentos e dos recursos financeiros aptos a viabilizá-los, sustenta que a participação da comunidade na eleição das prioridades vem a ser meio apto a conferir-lhes concreção, colocando-se o próprio soerguimento da “reserva do possível” no âmbito da efetiva demonstração do fato impeditivo (a ausência de recursos suficientes) ao atendimento da pretensão. A prática do controle social orçamentário vem a permitir a elevação à condição de princípio a transparência na gestão fiscal, embora já estivesse ela, de certo modo, presente em metáfora do Conde de Cavour referida em passagem de Francesco Nitti que o autor transcreve e subscreve. Recorda, outrossim, algumas dificuldades para que se mostre efetiva a participação enquanto manifestação do controle social decorrentes não só do dado de as três leis referentes à programação financeira do Estado serem de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo como também da possibilidade de abertura de créditos adicionais, de contingenciamento de verbas, da edição de leis autorizativas do remanejamento de recursos, o poder de veto a alterações operadas no seio do Legislativo, da concentração, no seio dos Ministérios e Secretarias da Fazenda, das informações concernentes às possibilidades concretas do erário, da ausência de garantia de implementação concreta das emendas, e que geram, na relação entre o Executivo e o Legislativo, uma verdadeira marca de clientelismo. E é exatamente em função destas dificuldades que se aponta para a necessidade de se consolidarem canais associativos para o fim de aumentar a capacidade de fiscalização exercitável pela sociedade, sugerindo-se, ainda, a adoção de procedimentos que permitam a utilização de índices objetivos para se poder mensurar a intensidade com que tais ou quais pretensões merecerão ser atendidas prioritariamente a outras, bem como a abertura da possibilidade de apresentação de emendas populares aos projetos de leis orçamentárias.

A seguir, vem a trabalhar a concepção da responsabilidade fiscal a partir da necessidade de superação de uma visão estritamente formalística do monitoramento das contas públicas, para se chegar, mesmo, à responsabilização caso as demandas sociais não tenham sido, efetivamente, atendidas pela destinação de recursos públicos. Esta concepção que torna a participação popular na formulação das leis financeiras básicas e na busca da responsabilização dos agentes públicos elemento essencial do conceito de “transparência fiscal” teria sido adotada por todos os países que empreenderam a implementação dos programas de ajuste fiscal e mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, a partir de meados da década de 90 do século XX. São esmiuçados os instrumentos fiscais de participação cidadã, desde as audiências públicas e a divulgação das informações acerca das despesas realizadas pelo Poder Público e das disponibilidades por todos os meios – inclusive eletrônicos – em linguagem acessível a não-iniciados, passando pelo estabelecimento de prazo mínimo para que as prestações públicas de contas fiquem à disposição dos cidadãos, a indicação das medidas tomadas para assegurar a busca de receitas suficientes para a prestação de serviços públicos e concecução de políticas por parte do Poder Público, enfatizando-se, mais, o problema das renúncias fiscais inconseqüentes. São debatidas as questões concernentes à responsabilidade dos ordenadores de despesas, enfocando as sanções previstas tanto no plano estritamente financeiro, na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, como no âmbito da probidade administrativa e dos crimes de responsabilidade, especialmente no âmbito municipal.

Por fim, um capítulo sobre a disciplina da transparência fiscal no direito comparado, enfocando os diplomas da Nova Zelândia, da Austrália e do Reino Unido, enquanto inspiradores da filosofia da legislação voltada à tutela da responsabilidade na gestão fiscal adotada na maior parte do mundo, e da Argentina, enquanto país em desenvolvimento, em situação similar à brasileira.

A participação direta da população no exercício do Poder, vista, no início de sua discussão no Brasil, como reprodução do estado de natureza, em que o povo ia às ruas e tudo, para as paixões desenfreadas, vinha a ser permitido, passa a ser considerada, antes, como algo necessário e essencial, deixando ao largo, assim, a rotulação partidária que tantos prejuízos provocou nas reflexões sobre o tema. E esta obra é o feliz exemplo de superação de tal preconceito. Não que esteja ela isenta de observações que, longe de traduzirem indicação de defeito, vêm a indicar, apenas, abrir espaço para o debate. É de se salientar que a obra poderia ver-se enriquecida se tivesse sido objeto de suas reflexões não só a contribuição de Paulo Bonavides (cuja Teoria da democracia participativa, de 2003, é referencial obrigatório) e de Washington Peluso Albino de Souza (com suas reflexões sobre a economia concertada, datadas já do início da década de 70, no seu artigo Direito Econômico do planejamento e retomada tanto no seu Direito Econômico, de 1980, como nas sucessivas edições de suas Primeiras linhas de Direito Econômico), como também a jurisprudência, inclusive, dos Tribunais Superiores a respeito do tema da participação no exercício do Poder Público – limitado que está apenas a dois julgados do Excelso Pretório do início da década de 90 (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 854/RS e medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 821/RS), quando não só ele (medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.217/RS; medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.381/RS) como mesmo o Superior Tribunal de Justiça trouxeram uma riquíssima contribuição neste particular, quanto à compreensão da democracia participativa à luz do ordenamento constitucional brasileiro -. Talvez se explique a omissão pela matriz doutrinária seguida pelo autor, que tem os seus marcos fixados pelas reflexões apresentadas por Manoel Gonçalves Ferreira Filho em seu A democracia possível, no âmbito do Direito Constitucional, por Juarez Freitas, no âmbito da Filosofia do Direito, e por Régis Fernandes de Oliveira, no âmbito do Direito Financeiro. De qualquer sorte, não há espaço para a indiferença em relação a esta obra.

sábado, 9 de maio de 2009

RAZÃO E EMOÇÃO NO OFÍCIO JUDICANTE

NOGUEIRA, Roberto Wanderley. Justiça acidental: nos bastidores do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.
Racionalmente fazendo profissão de fé democrática, a sociedade atomizada em corporativismos, em que as posições de poder acabam se encarnando nos indivíduos que compõem os grupos sociais respectivos e afloram a cada vez que cada um pretenda fazer valer a sua vontade sobre a do seu adversário: tal, em última análise, a idéia-força desta obra, versão comercial de dissertação apresentada à Universidade Federal de Pernambuco. Sujeitos às vicissitudes próprias da condição humana, os juízes, no Brasil, não podem ser considerados exceção a esta regra, de acordo com os dados coligidos pelo autor, Magistrado Federal, que vão desde a atitude do julgador perante os jurisdicionados e os processos até as questões propriamente administrativas e corporativas. Na Teoria geral da política, Norberto Bobbio lembra o postulado da teoria da argumentação segundo o qual "a conduta que precisa ser justificada é aquela não-conforme as regras". Entretanto, numa sociedade em que os valores da cultura escravagista fincaram raízes no inconsciente coletivo, conforme o sujeito que adote a conduta, ser-lhe-á exigida ou não justificativa. Disto, em última análise, é que trata o texto ora resenhado. Não conta o texto, evidentemente, com adesão do ora resenhante em todos os pontos: o efeito vinculante, por exemplo, não me parece uma tentativa de amesquinhar a liberdade de convencimento do julgador acerca dos fatos, mas sim a busca de se assegurar o tratamento igualitário para as questões que sejam iguais, evitando que aspectos contingentes venham a contribuir para a própria insegurança dos cidadãos acerca do que podem e do que não podem fazer, do que devem e do que não devem fazer. Mas, em muito, pode contribuir para o estudo do problema do voluntarismo na aplicação do direito e, portanto, da própria questão da possibilidade do convívio social, com a afirmação das prerrogativas próprias do sujeito de direito a todos os seres humanos.

UM ALERTA CONTRA O VOLUNTARISMO

KEMMERICH, Clóvis Juarez. O direito processual na Idade Média. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 2006.
O interesse prático desta obra em que se examina a evolução do processo na Europa desde a queda de Roma ao fim da Guerra dos Cem Anos avulta, eis que hoje voltam discursos que sustentam ser a ineficiência do Estado apta a autorizar os cidadãos a fazerem justiça por suas próprias mãos. A partir do retorno, com o fim da Antiguidade, da admissão da vingança privada, substituível por uma indenização, julgada por uma assembléia popular, em que existiam feitos que, pelo fato de o réu haver sido pego em flagrante, estava proibido de se defender, em que a instrução, freqüentemente, tinha efeitos decisórios, como é o caso dos ordálios, do duelo, em que a disciplina procedimental visava precipuamente a eficientização do exercício da força sobre aquele que viesse a padecê-la, passando pelo renascimento verificado no século XII, quando as glosas ao Direito Romano buscaram, a um só tempo, ofertar maior segurança às partes - limitação do arbítrio - e o fortalecimento da autoridade do príncipe, tornando-o livre da lei humana e fazendo da sua vontade a lei, vem a explicar o porquê da admissão da tortura como meio de prova, o papel desempenhado pelo juramento, e traz também o gérmen - a partir do julgamento de Adão - da tese esboçada por Durantis, no século XIII (mais tarde encampada por Thomas More), segundo a qual mesmo o demônio mereceria as garantias legais (p. 162). O livro contém passagens notáveis, como no momento em que mostra que sem o respeito ao devido processo legal, o poder se converte em medida da moralidade em si e por si, e com tal pressuposto ficam justificados inclusive "ataques preventivos" (p. 30), a falibilidade do resultado dos ordálios como instrumento de reconstituição da verdade dos fatos (p. 70), principalmente ante as exigências de segurança para o comércio que se ia desenvolvendo à margem dos feudos (p. 118), o caráter de lei conferido ao que agradasse ao príncipe (p. 74 e 144), a centralização no Papa do poder jurisdicional em matéria religiosa, a partir de Gregório VII (p. 102), o trabalho desenvolvido pelos canonistas para o efeito de demonstrar a ortodoxia do abandono das fórmulas introduzidas pelos bárbaros germânicos (p 104), o embate entre os místicos - defensores dos ordálios, em que o julgamento decorreria de fatores estranhos ao controle humano e, portanto, da vontade de Deus - e os dialéticos, defensores do contraditório exercido pela demonstração lógica (p. 127), a contribuição da revalorização do Direito Romano para a judicialização da execução, que aos inícios da Idade Média era levada a cabo pessoalmente pelo credor (p. 56 e 138-137), a possibilidade, deferida ao Papa, de condenar, nos crimes "notórios" contra a religião, sem processo (p. 148-150), em suma, demonstrando, por outras palavras, a experiência histórica de situações cujos efeitos foram tais que se as abandonou, mas que uma sociedade assustada em um mundo que praticamente perdeu as suas referências ressuscita o homem amedrontado da Idade Média. Como se vê, o texto do Mestre em Direito Processual pela UFRGS, em realidade, mais que um estudo de processo e um estudo de história, muito bem fundamentado ao longo de sua exposição, traduz um alerta para todos nós, que vemos trazerem à vida cadáveres insepultos cuja negação foi responsável pela criação do Estado de Direito em todas as suas manifestações. A idéia de se legitimar a exclusão de direitos, ao argumento da suposta ausência de virtude do padecente ou de este ser uma ameaça aos homens de bem, como se tal não fosse a preparação da redução do círculo dos beneficiários da ordem jurídica é bem uma ilustração de uma das frases aparentemente acacianas que se contêm na obra ora resenhada, merecedora de todo acatamento (p. 26): "a ignorância da história e a falta de comparação entre as diversas doutrinas são causas freqüentes de incidência em erros já superados por outros estudiosos".

CONSTITUCIONALISMO E RESQUÍCIOS DO SAGRADO

CUNHA, Paulo Ferreira da. Anti-Leviatã – Direito, política e Sagrado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2005.

A riqueza da obra sob comentário torna uma tarefa de Sísifo a elaboração de uma síntese cabível no curto espaço de uma resenha. A laicização do Estado não impede que o autor, Professor da Universidade do Porto, funde sua obra na presença do Sagrado no Direito, desde o culto às formas pelas quais ele se manifesta passando pela caracterização do Direito como técnica, ciência e arte, a sacralização dos direitos, com especial destaque para as polêmicas em torno da propriedade e da igualdade, os desafios das ideologias, do sacrário do constitucionalismo europeu, o problema das bandeiras como expressão pictórica da soberania, a ambigüidade do etnocentrismo no exame da formação da nação. O título replica ao pensamento hobbesiano, que visara banir a sacralidade buscando um fundamento racional para a obediência universal à autoridade estatal. A obra explora dados em relação aos quais reina um temeroso tollitur quaestio – os elementos do Sagrado no pensamento jurídico-político, o esgotamento dos modelos ideológicos puros, nos quais se enquadra o “politicamente correto”, o tratamento das cores e formas como expressão da Soberania nas bandeiras - e, só por isto, mostra-se de consulta indispensável. Note-se que reconhecer o mérito não implica adesão do resenhista, cujo juspositivismo é novamente proclamado, a todos os pontos, especialmente os essencialmente comprometidos com o jusnaturalismo de cunho tomista, abertamente professado pelo autor. Mas isto é questão de mera divergência de posições que não compromete, em absoluto, a importância e o mérito da obra.

LEGISLAÇÃO, INFORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria da legislação – formação e conhecimento da lei na idade tecnológica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.

Hoje em dia, parece não haver controvérsia quanto a traduzir uma ficção jurídica destinada a assegurar o cumprimento da lei o disposto no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, quanto a ser ela de conhecimento obrigatório. Entretanto, a sua caracterização como expressão da vontade geral tem-se buscado, conforme a célebre sentença de Rousseau, o mais possível, aproximar da realidade, com a participação popular direta na sua formação. Com o aumento da eficiência dos meios de comunicação, nos últimos tempos, particularmente pela INTERNET, a possibilidade de se dar conhecimento da legislação em tempo mais curto, e também de uma participação mais efetiva, com a superação das barreiras de comunicação, com a troca de informações, torna-se maior, mas, paradoxalmente, em face de um grande contingente de excluídos, que não teriam acesso sequer à energia elétrica, indispensável para o funcionamento dos computadores, torna-se um real desafio a própria universalização destas oportunidades. Estes temas traduzem a preocupação central da obra que a Profa. Fabiana de Menezes Soares apresentou a exame, para a obtenção do título de Doutora, perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, e que hão de chamar a atenção de todo jurista que esteja voltado àquela atitude de verificar a constante adequação dos conceitos aos fatos observados, ao invés de forçar o enquadramento dos fatos em conceitos que, muitas vezes, sobrevivem apenas por força da tradição. Conheço-a desde o início do seu curso na Casa de Afonso Pena, em 1987, e vejo nesta obra a realização do potencial que já então mostrava a característica do verdadeiro jurista, que, ao invés de sair a inventar teses por mero deleite intelectual, desprezando todo um patrimônio cultural construído ao longo de séculos ou a construir altares reverenciando fanaticamente a alguns monstros sagrados, procurava testar a solidez de cada proposição, até que chegasse ao ponto que a satisfizesse – Fabiana gostava de fazer perguntas difíceis, e gosta de se lançar a resolver problemas difíceis -. Claro que não há total convergência de posicionamentos entre o resenhante e a autora da obra resenhada, a começar pelos referenciais teóricos – a influência hegeliana que marca várias das passagens é um ponto em que não estamos de acordo -, mas isto não impede o reconhecimento do valor da obra em questão, da excelência da fundamentação, do estilo leve e agradável – o que é raro no jurista do século XX – e, por outro lado, do pleno acordo que temos em relação à participação como um valor, superando a concepção puramente coativista do Direito.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

TRIBUTAÇÃO, MITO E REALIDADE

Tipke, Klaus & Lang, Joachim. Direito Tributário. Trad. Luís Dória Furquim. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,2008, v. 1, 765 p.

Para os cultores da Filosofia do Direito, do Direito Constitucional, do Direito Internacional, do Direito Comunitário e do Direito Econômico, além, é claro, dos voltados ao Direito Tributário, é auspicioso que a tradução desta obra, considerada um clássico, venha a lume no Brasil, ainda mais nos tempos que correm, em que há uma grita generalizada contra a tributação, enquanto uma atividade que comprometeria, supostamente, a eficiência do funcionamento da economia baseada na livre iniciativa. A multiplicidade de informações prestadas com riqueza de detalhes, aprofundando cada um dos temas, torna extremamente difícil a elaboração de resenha para este livro - no qual não existe, sem qualquer hipérbole, nenhuma palavra irrelevante - dos dois eminentes Professores da Universidade de Colônia, Alemanha. Com efeito, a partir da constatação de que, dentre todos os ramos do Direito, o Direito Tributário seria o que se mostraria mais marcado pelo encontro do particular com o Estado, e somente poderia ser concebido enquanto parte de um ordenamento jurídico de orientação liberal, por pressupor a propriedade privada garantida como direito individual. O tratamento do Direito Tributário em sua dimensão constitucional, bem como nos contextos internacional e comunitário, a identificação dos princípios gerais que norteariam a disciplina, bem como a opção clara pela Teoria Sistemática de Canaris como a que asseguraria maior coerência da edição e aplicação da legislação tributária com os princípios do Estado de Direito e do Estado Social, os problemas gerados em relação à legitimação dos gravames tributários a ponto de criarem no imaginário popular a percepção dos delitos fiscais como "delitos de cavalheiro", a possibilidade do uso extrafiscal do tributo encontrando como limites a preservação do mínimo existencial e da propriedade privada, a inferência do princípio da capacidade contributiva do princípio da igualdade geral e a incompatibilidade com tal princípio da tese fisiocrática do imposto único, o tratamento dos tributos no contexto do Estado Federal, os cânones hermenêuticos adequados à temática tributária, o início do exame dos tributos em espécie a partir das dificuldades com a fixação do montante passível de tributação no que tange ao imposto de renda são alguns dos temas que vêm versados nesta obra, com a necessária profundidade, contribuindo para o esclarecimento de conceitos e a dissolução de preconceitos acerca da matéria. Cabe, agora, uma palavra sobre a tradução levada a cabo pelo Prof. Luís Dória Furquim. A rigor, a despeito de determinadas questões como a identificação do Wirtschaftsrecht - Direito da Economia -, conjunto de todas as normas jurídicas de conteúdo econômico em cada um dos ramos do Direito, com o Direito Econômico, que é ramo do Direito autônomo, cujas normas se inserem, contudo, no Direito da Economia, ela é, além de primorosa, um trabalho hercúleo, quer pelo volume de páginas traduzido, quer pela preocupação em manter a atualidade dos conceitos ali presentes, quer pela preocupação com a fidelidade ao ponto de urdir neologismos (como "jusestatalidade", para referir a qualidade inerente ao Estado de Direito) para ofertar maior correspondência às idéias originais do texto, que deve ser valorizado, no mínimo, por quantos desejem fazer uma investigação séria em sede de Direito Comparado, vencendo as barreiras idiomáticas.

ORDENAMENTOS JURÍDICOS EM CONCORRÊNCIA

Wegner, Gerhard. Instituições nacionais em concorrência. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2007.
Os tempos que ora correm, em que se pretende a superação das soberanias estatais em prol da conversão do mundo em um grande mercado regulado exclusivamente pelo que os agentes econômicos decidirem livremente em seus contratos – a denominada lex mercatoria - , mostram a oportunidade da publicação desta obra do eminente Professor da Universidade de Erfurt. O problema da convivência de diferentes tipos de regulamentação da economia entre os Estados participantes da União Européia e seus efeitos sobre a concorrência entre os agentes econômicos no âmbito daquela Comunidade Internacional, e, fora desta, no âmbito das relações internacionais econômicas, rastreando as discussões que se travaram no âmbito dos foros internacionais acerca dos limites e possibilidades do estabelecimento de uma autoridade que assegurasse a concorrência internacional, as relações que se estabelecem entre os produtos e serviços migrando de uma concorrência baseada exclusivamente nas características intrínsecas a eles para uma concorrência entre regimes jurídicos, os efeitos das regulamentações tanto na restrição às possibilidades de decisão dos agentes econômicos como no subministrar elementos para a tomada de decisões, tais são alguns dos temas que são versados nesta obra, que dialoga constantemente com as teses do denominado Ordoliberalismo, corrrente de pensamento jurídico e econômico voltada a adaptar a visão liberal clássica aos tempos posteriores à II Guerra, reagindo ao intervencionismo, na qual se destacam nomes como Walter Eucken e Friedrich August von Hayek. A questão da adequação da concorrência entre as instituições exteriores ao mercado, de tal sorte que umas podem ser mais conformes às preferências dos destinatários dos ordenamentos do que outras, revela, aqui, no pensamento do autor que ora se resenha, uma outra faceta da relação entre a economia e o Direito, no sentido de que esta mesmo passa a ser visto como um artigo de consumo – os agentes econômicos buscam os ordenamentos que se mostrem menos restritivos em questões como relações trabalhistas, consumo, meio ambiente, os consumidores, por seu turno, encontram na regulamentação uma possibilidade maior de obterem as informações acerca dos bens e serviços a serem adquiridos -, o que, modo certo, não deixa de trazer outros temas recorrentes, como o da tendência da concorrência entre instituições se colocar em sentido oposto à da concorrência econômica, ou seja, se esta tende à concentração, aquela tende à perpetuação e, por outro lado, a própria negociação em torno do ordenamento a ser escolhido para reger as transações realizadas no mercado, como tem sido comum nos contratos internacionais dotados de cláusula de arbitragem. Claro que, de certo modo, não deixa de se mostrar algo chocante o tratamento dos ordenamentos jurídicos como artigos de consumo, postos à negociação no mercado: contudo, não se pode negar que tal ponto de vista, dentre os juristas, sequer constitui novidade, porquanto na doutrina do Direito Internacional Privado tem sido recorrente a tese da possibilidade de as partes escolherem o ordenamento jurídico que deverá reger a solução das controvérsias que se instaurarem em torno de seus contratos. Por outro lado, a tendência a perpetuação da concorrência entre os ordenamentos jurídicos – não só as vicissitudes do MERCOSUL como as da própria União Européia ilustram tal assertiva – vem a traduzir um contraditor nada desprezível à idéia de homogeneização do espaço jurídico econômico que se pretende nominar como globalização. Em suas oitenta e oito páginas, a obra vem a se mostrar uma das mais vivas explicitações do acerto da frase de Bobbio quanto a não ser bastante sustentar a prevalência do econômico para merecer a qualificação de marxista. Em que pese a concisão, vários temas são versados na obra ora resenhada, como se pôde ver, abrindo caminhos para um sem-número de pesquisas para quantos tenham interesse nos temas da concorrência, da globalização e da formação de Comunidades Econômicas.