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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Negócio fiduciário como ponte entre sistemas jurídicos

FOERSTER, Gerd. O "trust" do direito anglo-americano e os negócios fiduciários no Brasil - perspectivas de Direito Comparado (considerações do acolhimento do "trust" pelo Direito brasileiro). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.
 
A curiosidade que desperta, em meio aos que vivem no sistema de direito predominantemente legislado, acerca do funcionamento dos sistemas predominantemente baseados na inferência de regras gerais a partir da solução de problemas concretos e o movimento de homogeneização jurídica do espaço econômico denominado "globalização" tornam extremamente oportuna a publicação da versão comercial da tese de doutoramento que o autor defendeu junto à Universidade de Barcelona.
Principia a obra pela explanação das características do Common Law, indicando seu surgimento a partir da conquista pelos normandos de Guilherme I, substituindo os direitos tribais dos anglos, saxões e vikings (que se haviam imposto desde o término da presença romana na Grã-Bretanha), centralizando em torno do novo rei a administração e confiando aos Tribunais Reais de Justiça, por oposição ao direito canônico e aos costumes e cortes dos senhores locais, a elaboração do ordenamento comum a toda a Inglaterra (p. 39-40). Refere a fase inicial como marcada pela sobrevalorização das fórmulas processuais, a fim de que, das circunstâncias dos casos concretos e dos contratos, fossem inferidas as regras para a composição dos litígios (p. 43-6), indicando a formação da Equity como o juízo do Rei, com o auxílio do Chanceler, a partir do século XVI, para a correção de eventuais inadequações ou insuficiências ou injustiças aberrantes por parte das Cortes (p. 49), juízo, este, que seguiu em muito o processo canônico, dada a origem, em regra, clerical do Chanceler, e teve seu apogeu nos períodos absolutistas dos Tudors e Stuarts, tendo reduzido seu âmbito de aplicação com o fortalecimento do Parlamento (p. 51-2). Com a identificação de uma estrutura dualista como constitutiva do Direito inglês - Common Law e Equity -, apresenta como contribuições desta última a determinação da execução das obrigações de fazer previstas em cláusulas contratuais, o reconhecimento da possibilidade de vício da vontade de uma das partes em virtude de coação moral, a possibilidade de uma pessoa, proprietária, entregar a outra um bem para ser administrado em prol de um terceiro, a busca forçada do cumprimento de promessa, a subrogação no crédito daquele que pagasse obrigação alheia, a recuperação de bem deixado em depósito depois de morto o depositário, estendendo-se até a formação da lex mercatoria (p. 57-9). Aponta, em caráter subsequente, o papel que tiveram os Judicature Acts, a partir especialmente de 1875, para atribuir a todas as jurisdições inglesas a competência para a aplicação tanto do Common Law quanto da Equity, de tal sorte que esta continua a disciplinar os campos concernentes a sociedades comerciais, falências, lioquidação de heranças e aquele incorporou as regras de intervenção nos contratos, continuando a disciplinar matéria criminal, direito contratual e responsabilidade civil, por um lado, e, por outro, o ingresso de matérias que exigiram a utilização de outros critérios, como a trabalhista e previdenciária, avançando no sentido de um direito legislado se afirmar, principalmente após o New Deal, que não teria deixado de influenciar, também, o Reino Unido (p. 60-2). Traz a cotejo o papel da submissão prévia dos juízes, no sistema "romanístico", a parâmetros fixados em caráter abstrato pelo legislador, e o papel de construtores da "legal rule", a partir dos fatos da causa e das "legal rules" preexistentes, cotejando com os precedentes pertinentes, do juiz no sistema "anglo-saxão" (p. 63-6), bem como o papel mais acentuado das academias na formação dos conceitos naquele sistema em comparação com o papel mais forte dos praxistas no segundo (p. 66-8). Observa que os movimentos de integração jurídica no seio da civilização ocidental conduziriam a uma flexibilização na visão estritamente legalista nos países vinculados à "família romano-germânica", especialmente pela introdução do "trust" no direito interno de vários países do continente (p. 69-70). Partindo da premissa de que o direito ´produto do contexto "sócio-econômico" da sociedade em que emerge, passa a versar o "trust" a partir do instituto de que derivou, o "use", nascido no Direito feudal inglês, em que o senhor dividia a extensão conquistada entre os seus lugares-tenentes (tenants), que a possuíam mediante o pagamento de uma renda, e, por seu turno, estes mesmos lugares-tenentes concediam a seus subalternos partes das extensões que lhes cabiam, a título limitado (p. 73-4). Informa a existência de dois tipos de tenure, a situação jurídica do tenant: a free tenure, mercê da qual se podiam quantificar os serviços a serem prestados pelo vassalo ao suserano, com a possibilidade de alienação dos direitos de posse a terceiros, mediante doação, compra e venda ou permuta, e a unfree tenure, na qual não existia tal possibilidade (p. 75). Traz à colação, ainda, a noção de estate, como mensurador da intensidade do vínculo entre o proprietário e o tenant, distinguindo as primeiras quatro modalidades reconhecidas pelos Tribunais de Common Law - o fee simple estate, o fee tail estate, o life estate e o estate pur autre vie - e uma quinta modalidade desenvolvida a partir do século XIV, o leasehold estate, que mais se assemelharia a um arrendamento (p. 75-6). Aponta para um dos traços distintivos entre o direito romano-germânico, para o qual, enquanto se admitiria livremente a formação de contratos, seria exigível a tipicidade cerrada para os direitos reais, e o direito anglo-saxão, para o qual seria perfeitamente admissível a criação de direitos reais pela via convencional (p. 77-8). Desta forma, explicar-se-ia o surgimento do use, enquanto antepassado mais direto do trust, pela entrega de um bem por uma pessoa (transferor) a outra (transferee of uses) para o administrar em prol de um terceiro (plaintiff), conferida a ele força jurídica principalmente pela atuação do Chanceler (p. 78-9). A seguir, passa-se a elencar e discutir os conceitos correntes para o "trust", tanto no contexto anglo-saxão como dentre os estudiosos de contextos distintos, para optar pela conceituação de D. M. Waters, segundo a qual consistiria o instituto sob análise em uma relação triangular enre o instituidor (settlor), que transfere ao trustee a titularidade de determinado patrimônio para o gerir em favor de um beneficiário (p. 111). Passa a identificar os mais variados critérios de classificação dos trusts no Common Law, comparando-o com relações jurídicas similares, como a agency (p. 136-8), o contract (p. 138-140), o loan (p. 140), o bailment (p. 141) e a corporation (p. 142-3). A seguir, debate a presença de direitos de propriedade simultâneos entre o trustee e o beneficiary (p. 143-7). Ingressa-se nas aplicações do instituto na atualidade, salientando-se sua versatilidade ou "flexibilidade" (p. 147-8), indicando os purpose trusts, os charitable trusts, os pension trusts, os investment trusts, os security trusts, os holding trusts, os land trusts e as modalidades adotadas em jurisdições off shore, buscando, em regra, a diminuição de ônus fiscais (p. 173-5). Para se demonstrar a compatibilidade do instituto com os sistemas de Civil Law, faz-se um profundo exame dos negócios fiduciários. É trabalhada, em primeiro lugar, a fidúcia no direito romano. Ingressa-se no tratamento das instituições similares no Direito germânico medieval para, logo depois, verificar-se a aproximação não só do trust como do mortgage com os negócios fiduciários. O papel que estes desempenham no dotar as obrigações de maiores e mais efetivas garantias, respondendo à dinâmica da vida contemporânea (p. 216), é analisado à luz do Direito Comparado, procedida a conceituação e a decomposição do negócio fiduciário em seus elementos, distinguindo-se-o de institutos afins, para chegar-se à sua prática hodierna, elencando suas manifestações como venda com finalidade de garantia, venda com finalidade de gestão, venda para recomposição de patrimônio, venda com reserva de domínio, doação fiduciária, cessão fiduciária de crédito, endosso fiduciário de títulos de crédito, titularidade fiduciária de direitos de acionista, examinando o tratamento jurisprudencial do tema, para ao cabo, apontar não só para a validade, em face do Direito brasileiro, do negócio fiduciário como para a sua inconfundibilidade com o trust, e mesmo a impossibilidade de ser sucedâneo deste (p. 348-9).  Em seguida, verificam-se as instituições fiduciárias assimiláveis ao trust no Direito Comparado, iniciando-se pela substituição fideicomissária, nascida no Direito das Sucessões e muito discutida após a vitória dos ideais da Revolução Francesa, mantida, entretanto, em virtude da existência de temperamentos, como a temporariedade, a herança legítima e a registrabilidade das transações sobre imóveis, identificando várias possibilidades de contribuição do instituto à implementação do trust no Brasil. A Comissão Mercantil é também estudada em minúcia, e chega-se à conclusão da parca possibilidade de adaptação para o efeito de implementação do trust (p. 430). A alienação fiduciária em garantia, tanto em sua feição originária, posta pela Lei 4.728, de 1965, até chegar à respectiva extensão aos bens imóveis pela Lei 9.514, de 1997, vista como inspirada no trust é esmiuçada para se demonstrar que, a despeito de semelhanças em termos de finalidade prática, de facilitar o acesso ao crédito para a aquisição de bens, há diferenças estruturais (p. 436-7). Realiza-se, ainda, o exame acerca do mandato em causa própria, cujo repúdio inicial veio a dar lugar à aceitação para que se flexibilizasse a possibilidade de transferência de títulos representativos de direitos obrigacionais, com a aglização dos negócios, e chega-se à conclusão de que o aludido instituto estaria longe de constituir, ante os debates travados, base para a adoção do trust (p. 511). Procede-se ao exame das características da gestão de negócios, na qual, embora identificadas semelhanças com uma das modalidades do trust, o constructive trust, não se considera nela presente um alicerce para a introdução do instituto entre nós (p. 522). Trata-se, depois, das semelhanças ao trustee dos agentes fiduciários no mercado de capitais. Pelo aspecto da possibilidade das fundações administrarem bens com a finalidade de beneficiar a terceiros, examinam-se eventuais aproximações delas ao trust, chegando-se à conclusão de que a complexidade do regime delas poderia, especialmente pela necessidade de fiscalização do pelo Ministério Público, inviabilizar a própria adoção do trust. Ao cabo, são esmiuçadas as alternativas para a respectiva implementação no Direito brasileiro.
A obra é extremamente rica em detalhes e, como dito na introdução da presente resenha, vem mui oportunamente, até mesmo pelo estabelecimento de pontes entre sistemas jurídicos diferentes para o fim de demonstrar o próprio esmaecimento das distinções entre eles. O respectivo valor, contudo, não implica integral concordância com várias dentre as proposições, a iniciar-se pelo prático entusiasmo com o Common Law, quando a principal vantagem do Civil Law, assinalada mesmo por um cultor das tradições inglesas tão típico como Jeremy Bentham, está na mais fácil calculabilidade, vez que a previsão em abstrato dos comandos permite saber-se, com maior segurança, as consequências das condutas que se praticarem. Também a taxatividade legal dos direitos reais, no que pese atender a uma expectativa de maiores garantias para o cumprimento das obrigações, precisamente pelo caráter de sujeição passiva oponível a todo o ser humano pelo respectivo titular é que se considera, no âmbito do Civil Law, como mais apta a proteger a liberdade de cada indivíduo. O entusiasmo com a lex mercatoria também não é compartilhado pelo resenhista, que já publicou textos a seu respeito, nos quais demonstrou que a própria liberdade individual demanda, para que seja adequadamente protegida, a existência de interesses indisponíveis, sob pena de cada ser humano valer apenas pela função econômica que desempenhe. Interessa, outrossim, a obra não somente ao Direito Civil, como também ao Direito Econômico, já que se apresenta a possibilidade da adoção do instituto como um dos meios para a atração de capitais estrangeiros, viabilizando cada vez mais as trocas internacionais, além da possibilidade de este instrumento  negocial ser apto a definir a capacidade de os seus partícipes conformarem as relações de mercado.

sábado, 15 de janeiro de 2011

"Franchising": o contrato como instrumento de política econômica

REDECKER, Ana Cláudia. Franquia empresarial. São Paulo: Memória Jurídica, 2002.


Um dos preconceitos mais comuns em sede de Direito Econômico - em parte, pelas reflexões em torno deste ramo do Direito se terem desenvolvido a partir do momento em que se passou, no Ocidente, a admitir como necessária a atuação do Estado no domínio econômico - é a presença da restrição do conceito de "política econômica" à atuação estatal. Quando se examinam determinadas espécies contratuais surgidas, justamente, com o objetivo de propiciar o enfrentamento de determinados riscos, diminuindo custos, propiciando a conquista de novos mercados, bem se vê que a restrição não se justifica, embora, evidentemente, isto não implique a substituição sonhada por Pashukanis dos ramos do Direito que se ocupam precipuamente do contrato - especialmente o Direito Civil e o Direito Empresarial - pelo Direito Econômico.



A autora, após o exame da evolução do concepção dos contratos a partir do liberalismo, com as transformações verificadas ao longo do século XX com a atuação cada vez mais presente do Estado no domínio econômico, aponta para a criação do franchising - ou franquia empresarial - como instrumento apto a permitir a expansão da rede de distribuição de produtos e serviços com o menor aumento possível de custos próprios, a partir da experiência de conceituada empresa voltada à fabricação de máquinas de costura, por volta de 1850, nos EUA, mediante a cessão de marca, produtos, técnica de venda a varejo e know how, tendo sido seguido o exemplo por empresas voltadas à indústria automobilística e ao engarrafamento de refrigerantes, passando, após a 2ª Grande Guerra, a desempenhar o papel de permitir a maior acessibilidade ao mercado de trabalho por parte não só de ex-combatentes como dos demais interessados. Indica como principal dificuldade para a adoção da franquia comercial na Europa o potencial de permitir a dominação de mercado, quando utilizada de modo impróprio. Examinando o desenvolvimento desta modalidade negocial no Brasil, refere o seu nascimento a partir da prática mercantil e das tentativas de estabelecer uma disciplina legislativa - que vieram, afinal, a desaguar na Lei 8.955, de 1994 -, sobretudo pela capacidade de, pelo estabelecimento de parceria entre as empresas, o franqueador organizar toda uma política de realização, pelos franqueados, do comércio a varejo ou a retalho de seus produtos ou a prestação de serviços. É procedida, ainda, a análise dos aspectos jurídicos da elaboração do contrato, chamando-se a atenção para o dado de que o livre consentimento no que tange às cláusulas vem a ceder espaço para o princípio da adesão, vez que as condições são estabelecidas previamente pelo franqueador, de tal sorte que este impõe sua política negocial ao franqueado, que, mesmo totalmente atrelado àquela, vem a receber, em contrapartida, a assistência, a experiência e a proteção do franqueador, participando de um sistema voltado à circulação planificada de bens e serviços. Enfatiza, a seguir, o papel que tem a informação para o candidato a franqueado, "carente com freqüência de experiência profissional e ansioso por ingressar nesta cadeia já estabelecida no mercado" (p. 82), sendo este o fundamento para que o artigo 3º da Lei 8.955, de 1994, tenha feito preceder a celebração do contrato, sob pena de nulidade, de uma circular de oferta de franquia. Ao final, discute a aplicação dos princípios gerais dos contratos, especialmente o da boa fé, ao versado no texto e, especialmente, as possibilidades e limites de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.



Várias reflexões aos estudiosos de todos os ramos do Direito rende ensejo esta obra. Aos juseconomistas, o papel da franquia como instrumento de conquista de mercados e dos seus abusos como meio de dominação destes, como instrumento de fortalecimento do poder econômico tanto do franqueador como do próprio franqueado, e ainda como uma resposta da própria realidade econômica ao modelo ideal dos agentes de mercado atuando em concorrência, em pé de igualdade, vem a se colocar à toda evidência, e não é por menos que ele foi tomado em consideração por Washington Peluso Albino de Souza em texto publicado na década de 70 sobre as teorias dos contratos e o Direito Econômico, encartado no livro Lições de Direito Econômico, publicado em 2002 por Sérgio Fabris Editor.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O DENOMINADO “DIREITO ANTITRUSTE” NA ORDEM ECONÔMICA

GOMES, Carlos Jacques Vieira. Ordem econômica constitucional e direito antitruste. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.

O autor, mestre em Direito pela Universidade de Brasília, concebendo o Direito Econômico como conjunto de regras e princípios voltados à implementação de políticas sociais e econômicas, destaca o direito antitruste como a parcela daquele ramo do Direito voltada à implementação de políticas públicas voltadas ao controle, preventivo ou repressivo, do exercício do poder econômico. Manifestando preferência pela denominação "direito antitruste" ao invés de "direito da concorrência", o texto procura identificar as relações entre o controle do abuso do poder econômico e os princípios que embasam a ordem econômica, na realização dos seus escopos econômicos e sociais. O referencial teórico do autor está na Análise econômica do Direito, o que explica a ênfase em conceitos como eficiência econômica e na própria regra da razão, cuja adoção pela jurisprudência norte-americana muito deve a Richard Posner, corifeu daquela escola.

A obra se mostra profundamente interessante, pelos dados que aporta para o exame da repressão ao abuso do poder econômico em face da Constituição Econômica como um todo.

Esposando a distinção estabelecida por Pierre Devolvé entre princípios jurídico-econômicos liberais e intervencionistas e aplicando-a aos desdobramentos do artigo 170 da Constituição Federal, o autor considera que o controle do exercício abusivo do poder econômico está voltado, efetivamente, à implementação de políticas públicas voltada não só à tutela da livre iniciativa e da livre concorrência, mas também à promoção do pleno emprego, à tutela da soberania nacional, à defesa do consumidor, enfim, à realização dos princípios da ordem econômica.

Considera, mais, que o controle do exercício do poder econômico é que constituiria a base constitucional da ação antitruste e não a tutela da livre concorrência, dado que, a seu ver, a livre concorrência implicaria a ausência do poder econômico (a rigor, o que ela implicaria, na realidade, seria a igualdade de forças entre os agentes econômicos) e, por outro lado, se fosse nela que se embasasse a ação antitruste, todos os atos concentracionistas, mesmo que não se mostrassem abusivos, estariam vedados.

Ainda, toma em consideração o dado de que a menção posta no § 4º do artigo 173 da Constituição Federal é de caráter puramente exemplificativo e não taxativo, pois, do contrário, estariam permitidas formas de abuso que não tivessem por escopo aqueles declinados no aludido dispositivo, e não se poderia conceber que exatamente o uso para além dos limites jurídicos pudesse ficar ao largo da atividade repressora.

Distingue, ainda, entre o controle preventivo e o controle repressivo do abuso do poder econômico.

Aponta, como escopos econômicos da ação antitruste, a defesa da concorrência, a tutela da eficiência econômica, a tutela do consumidor e a proteção às empresas de pequeno porte.

Como seus escopos sociais, indica a valorização do trabalho, o pleno emprego e a redução das desigualdades regionais.

Como escopos políticos, indica a soberania econômica, o interesse nacional e a integração dos mercados regionais.

Indica, ainda, exemplos concretos no que tange às possibilidades de se atender a cada um dos escopos referidos.

É de ser salientado, entretanto, que em muitos pontos não encontra convergência com o signatário da presente resenha, porquanto dá ao Direito Econômico um objeto muito amplo - a política educacional, que, em si mesma, não constitui capítulo da política econômica, embora ninguém a exclua do conceito de política social, acaba sendo incluída como objeto do Direito Econômico -, e, por outro lado, ainda não conseguiu este resenhante superar as razões que o levam a não admitir o direito antitruste – principalmente quando se tem em vista a realidade da experiência da unificação da Alemanha, cuja política se deu num sentido de estimular a concentração empresarial, num rumo bem diverso, portanto, daquele seguido nos EUA -, bem como as que o conduzem a algumas incompatibilidades com a Análise econômica do Direito.

Por outro lado, nota-se que somente em se adotando uma concepção mais ampliativa do conceito de abuso do poder econômico, para além da tutela da concorrência – como, de nossa parte, fazemos – é que se poderá concordar com o asserido acerca de se voltar a ação estatal voltada a reprimi-lo à concreção de todos os princípios da ordem econômica, a cada vez que a situação de pujança econômica vier a atingir objetivos incompatíveis com os valores constitucionalmente albergados.

A distinção, outrossim, entre escopos econômicos, escopos sociais e escopos políticos não me parece das mais adequadas, porque, ao cabo, implica negar que as questões concernentes ao trabalho e ao desequilíbrio regional constituam objeto de política econômica – o que não é verdade, dado que o trabalho é, tradicionalmente, um dos fatores da produção, e que o desequilíbrio regional tem fortíssimas relações com a própria integração dos mercados regionais -, e, por outra parte, termina por descaracterizar o econômico enquanto manifestação do social e as decisões econômicas enquanto manifestação de poder, logo, políticas. Mas tal distinção, entretanto, é compreensível, dado que se costuma considerar que o interesse da economia é absolutamente estranho, em si mesmo, ao bem-estar social e seria algo que se oporia à política.
Mas estas divergências não chegam a afetar o valor da obra em si mesma, que está a pedir exame e debate em cada uma das proposições.

REGULAÇÃO E CONCORRÊNCIA

FONSECA, Antônio [org.]. Limites jurídicos da regulação e defesa da concorrência. Porto Alegre/Brasília: Sérgio Antônio Fabris/Fundação Pedro Jorge - Escola Superior do Ministério Público da União, 2003.

Mais uma importante contribuição traz o editor Sérgio Antônio Fabris para o preenchimento das lacunas existentes no Brasil quanto à bibliografia dedicada ao estudo do Direito Econômico. Efetivamente, conta títulos valiosos dedicados a esta disciplina - do Prof. Werter Faria (Constituição Econômica - liberdade de iniciativa e concorrência, Direito da concorrência e contrato de distribuição), do Prof. Washington Peluso Albino de Souza (Lições de Direito Econômico), do Dr. Sérgio Ribeiro Muylaert (Estado, empresa pública, mercado), do Prof. Paulo Henrique da Rocha Scott (Direito Constitucional Econômico: Estado e normatização da economia), do Prof. Fernando S. Fabris (Concentrações empresariais e o mercado relevante) e ainda a obra coletiva Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional - estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Washington Peluso Albino de Souza -.
A obra coletiva que estou a resenhar - fruto da atuação do organizador, membro do Ministério Público Federal e Professor da UnB junto à pós-graduação desta instituição de ensino superior - merece o título de valiosa.

No presente momento, em que um certo modismo em torno das agências de regulação vem conduzindo um discurso laudatório por parte de alguns juristas encantados com tudo o que se faz no estrangeiro e em que a reflexão parece banida em nome do objetivo de nos mostrarmos dignos de sermos chamados "juristas de primeiro mundo" - mentalidade colonial que não foi extirpada apesar do 7 de setembro de 1822 -, os trabalhos que compõem o volume ora resenhado traduz uma honrosa exceção, contribuindo para acicatar esta atividade que tende à atrofia: falo da reflexão, do debate, da angústia por não se encontrar a solução definitiva para absolutamente nada.

O estudo introdutório, de autoria do organizador da obra, Professor Antônio Fonseca, toca no problema da liberdade de iniciativa, posta como fundamento da República no inciso IV do artigo 1º e assegurada como direito fundamental pelo artigo 170, caput, ambos da Constituição Federal brasileira de 1988, assegurado o desenvolvimento da concorrência como mecanismo de funcionamento daquela e a regulação, para possibilitar o equilíbrio entre o uso público dos bens ofertados, por um lado, e a eficiência econômica, por outro.

O texto da Dra. Débora Capp enfrenta o tema do papel do direito de propriedade industrial no contexto da defesa da concorrência - notadamente numa época em que esta tem de ser pensada num plano que extrapassa os limites das fronteiras dos Estados soberanos -, assinalando especificamente a função social com que os grava a Constituição de 1988 como desdobramento do princípio da supremacia do interesse público ante o interesse individual, para centrar suas atenções nos problemas que circundam especificamente a patenteabilidade dos produtos farmacêuticos, por dizerem respeito a interesses coletivos maiores, como a saúde, a cultura e o meio ambiente.

Já o trabalho da Dra. Jaqueline Mainel Rocha versa, a partir da constatação de que, com a privatização e a transferência da execução de atividades que tradicionalmente se consideravam típicamente serviços públicos à iniciativa privada, emergiu a necessidade de o Poder Público exercer o que a doutrina denomina, hoje, regulação, a adequada compreensão desta sem a acrítica importação de conceitos provenientes de sistemas jurídicos diversos, só se pode fazer a partir da utilização do conceito de discricionariedade técnica, em que mediante, os critérios ofertados pelas diversas especialidades em que se manifesta o conhecimento técnico-científico, a autoridade oferta a melhor solução no completar os parâmetros postos na regra atributiva de competência para normatizar as relações jurídicas concernentes ao setor regulado.

O Dr. Leonardo de Brito Seixas Neves enfrenta o tema do conflito de atribuições entre o Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, delimitando o campo de atuação de ambas as autarquias, uma, de defesa da concorrência, a outra, de regulação do sistema financeiro nacional, explicitando as competências para dirimir os conflitos de atribuições entre órgãos integrantes de Poderes diversos, cometida ao Judiciário, e para dirimir os conflitos de atribuições entre órgãos integrantes da estrutura de um mesmo Poder, cometida ao Chefe respectivo, olhos postos, ainda, na solução posta no Parecer GM 020, da Advocacia Geral da União, concernente à competência exclusiva do Banco Central em se tratando da apreciação de atos de concentração relativos ao Sistema Financeiro Nacional.

O Prof. Antônio Fonseca examina o delicado tema dos acordos de cooperação - designados pelo anglicismo pool - e suas finalidades, assinalando a necessidade da disciplina e fiscalização por parte das autoridades antitruste e reguladora, quando for o caso, centrando sua atenção nos pólos petroquímicos e, mais especificamente, no Pólo Petroquímico Sul - integrantes de um setor antes em regime de monopólio público, entregue à iniciativa privada sem preocupações com a concorrência -, tratando-os como uma universalidade de direito.

A obra finda com um comentário a três decisões do CADE concernentes a temas de concentração de empresas em setores regulados, a saber, setor financeiro e telecomunicações, extremando as atuações de defesa de concorrência e de regulação, bem como a necessidade de uma atuação integrada entre as autoridades encarregadas de uma e de outra tarefa.