domingo, 12 de julho de 2009

EM BUSCA DE UMA NOÇÃO RACIONAL DE JUSTIÇA À LUZ DAS TEORIAS DA EVOLUÇÃO

FERNANDEZ, Atahualpa. Direito, evolução, racionalidade e discurso jurídico – a "realização do Direito" sob a perspectiva das dinâmicas evolucionárias. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.

Um dos problemas que mais vêm atormentando os juristas é justamente o problema da possibilidade de uma concepção racional de justiça. Com efeito, um parâmetro de justiça que seja uniforme para todos, que tenha a previsibilidade necessária à convivência social é o desiderato de todos os grupos sociais.
Um esforço bastante positivo deve ser visto na obra de fôlego ora resenhada. A partir das teorias evolucionistas, principalmente de Darwin, o autor, membro do Ministério Público do Trabalho, procura reconstituir o conceito de "natureza humana", abandonado desde o século XIX, para o fim de, excluindo todo relativismo e toda metafísica, tratar o direito como técnica adaptativa,decorrente de uma característica básica do ser humano, que seria um mecanismo cerebral que seria responsável pela formação de um instinto de reciprocidade. Tal instinto, que o levaria a ser norteado, em cada uma das situações que vivencia, pela idéia de contrato, fez com que se tornasse possível a vida em sociedade, segundo o autor, pela possibilidade de se preverem e interpretarem, reciprocamente, as ações praticadas por cada um dos integrantes desta mesma sociedade, o que é indispensável à própria sobrevivência do homem na Terra. É assim que se criam e estabelecem relações, de sorte a informarem cada decisão a ser tomada pelos indivíduos. É com base nestes pressupostos que o autor sustentará a excelência do sistema jurídico republicano-democrático enquanto o mais necessário à manutenção da sobrevivência do ser humano enquanto tal, bem como o papel da construção do discurso jurídico, na tentativa de se impedir a interferência arbitrária de um indivíduo na esfera de outros, conferindo, assim, racionalidade a cada decisão que se tome, quando ela tenha efeitos jurídicos.

A obra ora resenhada é de incomensurável valor. E quem o diz é justamente um dos que se alinham entre os relativistas que o autor combate com tanto zelo. Com efeito, ainda não me consegui convencer de que ao Direito se possam aplicar os mesmos pressupostos metodológicos das Ciências Naturais, notadamente a biologia, e que tais pressupostos não sejam suficientes a justificar, inclusive, a tese da superioridade de uns povos em relação a outros, de umas culturas em relação a outras, de umas tábuas de valores em face de outras - postura que, a bem de ver, Jhering esposou nas primeiras páginas do seu Espírito do Direito Romano -.
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Entretanto, polemizar cada uma das proposições do autor exigiria a elaboração não de um, mas vários livros, o que, desde logo, mostra a riqueza do material trabalhado. De outra parte, isto não me impede de manifestar minha concordância com o autor em alguns aspectos essenciais e outros pontuais de seu pensamento. Dentre os aspectos essenciais, chamo a atenção para a crítica que se faz ao isolacionismo em que o jurista resolveu se encastelar, desconhecendo que não há sentido em um enunciado normativo que não incida sobre um fato passível de verificação empírica e que, por vezes, esta verificação exige o concurso dos conhecimentos vinculados a outras ciências. Um aspecto pontual com que concordo é o da situação-limite enquanto algo que nos coloca, freqüentemente, na impossibilidade de se tomar a melhor decisão: "seria igualmente estúpido que nosso ancestral hominídeo, perseguido por um predador, se pusesse a pensar qual era a melhor árvore a subir: mais vale equivocar-se que ser devorado" (p. 206). Mas, como dito, dentro do meu relativismo, hei que relativizar, inclusive, a minha postura pessoal, com o que admito que posso não estar objetivamente a adotar a melhor posição, mas é a posição que me parece a melhor. E, de qualquer sorte, dentro dos pressupostos de que o autor partiu, o trabalho traz grandes contribuições tanto para o pensamento jurídico quanto para a própria epistemologia.

HERMENÊUTICA, TOLERÂNCIA E ISLAM

FERREIRA, Odim Brandão. Laiaali, ou a universalidade do problema hermenêutico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001.
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A queda das Torres Gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001 provocou, no Mundo Ocidental, entre outras coisas, uma renovação da percepção do Oriente Médio islâmico como o grande inimigo dos avanços que a civilização cristã propiciou à humanidade. Um surto de intolerância começou a se espalhar pelo mundo e o estereótipo do árabe como um ser fanático, incapaz de raciocinar, de meditar, um ser furioso, desejoso de matar o maior número de pessoas possível para conquistar um espaço no Paraíso islâmico veio a ser plantado pelos meios de comunicação. Tem sido necessária uma longa explicação para demonstrar que árabe não é sinônimo de muçulmano, até porque existem muçulmanos que não são árabes, como é o caso dos afegãos, dos armênios, dos iranianos e dos turcos, e existem árabes que não são muçulmanos, como é o caso dos maronitas, nome que se dá aos árabes fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana. Mas ainda resta um outro estereótipo: o pensamento muçulmano teria este caráter de monolitismo? O muçulmano seria um homem que abdicou da capacidade de pensar por si mesmo?
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O livro do Dr. Odim Brandão Ferreira, ilustrado membro do Ministério Público Federal, ajuda a desvanecer tais preconceitos. Escrito antes da ocorrência de tais sucessos, narra, a partir de um manuscrito medieval elaborado na Península Ibérica hoje preservado no Rio de Janeiro, a discussão, perante um Califa, travada entre representantes dos quatro ramos religiosos mais importantes no Islam, acerca dos preceitos do Corão. Desde a linha exegética tradicional,literal, até a busca da chamada lógica do razoável aparecem na discussão que se trava ao longo desta pequena-grande brochura, revelando que o problema da hermenêutica é universal e que, em razão disto mesmo, não se pode tratar as ciências cujo objeto é referente a valores como as ciências naturais, com o que não existe uma resposta certa dada a priori para os problemas jurídicos, assim como no âmbito da religião. A resposta certa será aquela que a autoridade investida de poderes para tanto dirá que é certa e, ainda assim, sujeita a cometer erros. Assim como a controvérsia em matéria religiosa não pode ser apta a levar à conclusão de que quem esposa tal ou qual interpretação seja o que recebeu a iluminação divina e os demais são ímpios, também não se pode dizer que tal ou qual interpretação, no âmbito jurídico, seja a correta. A correção derivará, antes, da unidade de referencial básico e não do resultado que sealcançar.
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E, posta a questão da universalidade do problema hermenêutico pela obra ora resenhada, bem se vê que a questão da tolerância vai muito além de uma atitude mental em relação a tábuas de valores, para adentrar, mesmo, a consideração do outro como integrante do gênero humano. Mais que ubi homo, ibi ius, a questão maior que se coloca é ubi homo, ibi interpretatio. E, destarte, os brocardos avessos à atividade interpretativa (o famoso in claris cessat interpretatio), na realidade, mostram-se, mesmo, avessos à faculdade mais própria do ser humano, que é a de procurar dar um sentido aos dados que se lhe apresentam.