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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O necessário resgate dos direitos fundamentais

NASCIMENTO, Filippe Augusto dos Santos. Direitos fundamentais e sua dimensão objetiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016.

Nos tempos atuais, em que cada vez mais se procura, em nome de promessas não cumpridas pela democracia, de um lado, promover uma relativização dos direitos fundamentais ou, no máximo, somente reconhecer como tais aqueles que se enquadram como "direitos civis e políticos", o autor, Defensor Público Federal e Mestre pela Universidade Federal do Ceará, traz um aporte digno de reflexão, confrontando, ainda, as proposições abstratas da teoria com as construções realizadas pelos Tribunais na resolução dos embates concretos de interesses. Num primeiro momento, causa uma certa estranheza para quantos, como é o caso do próprio resenhista, estão acostumados com a terminologia dos manuais de teoria geral do Direito a expressão "dimensão objetiva dos direitos fundamentais", tendo em vista a famosa distinção entre o "direito subjetivo" enquanto posição jurídica ativa, ou enquanto interesse juridicamente protegido, e o "direito objetivo", enquanto a disciplina em abstrato das relações jurídicas, a que se referem, inclusive, expressões como "fontes do Direito", "ramos do Direito", "Direito Positivo". Entretanto, a estranheza se supera, tendo em vista que se trata de identificar o papel dos direitos fundamentais para além do caráter de atendimento a pretensões dos respectivos titulares, sejam eles um sujeito individual, um sujeito coletivo ou um sujeito difuso. O texto trabalha a noção de “dimensão objetiva dos direitos fundamentais” enquanto concretização dos valores objetivamente consagrados e, a partir da ideia de “dimensão objetiva”, realiza a construção no sentido de reduzir a margem de indeterminação da atuação dos Poderes Públicos, tornando, antes, como parâmetro de validade para qualquer das manifestações destes, a aptidão para não frustrar ou para melhor realizar os “direitos fundamentais”. Aponta como derivações da “dimensão objetiva” a eficácia vinculante, a eficácia irradiante e a eficácia processual participativa. Temas como a necessidade de parâmetros objetivos na compatibilização de valores aparentemente antagônicos, como é o caso da valorização do trabalho em face da liberdade de iniciativa (p. 79-80), do exercício de competências como o fomento da produção agrícola compatibilizando-o com a valorização do trabalho e com a proteção do meio ambiente (p. 116), do reconhecimento da presença do poder mesmo em relações que se travam entre particulares, de tal sorte que se irradia a questão dos direitos fundamentais para elas, o papel do processo de caráter objetivo como apto a ofertar parâmetros para a efetividade da Constituição como um todo, e da abertura à participação de quantos se sintam aptos a contribuírem para que o processo objetivo alcance a decisão mais justa em termos de realização de tais valores. A presença destes temas, hoje, em que a Racionalidade passa a precisar de defesa, em um trabalho como o ora resenhado, independentemente de se não o subscrever "in totum" - o resenhista, por exemplo, não se encontra dentre os que consideram os princípios e regras como espécies do gênero "norma", e sim dentre os que os tratam, tradicionalmente, como instrumentos hermenêuticos em relação aos textos normativos -, vem a apresentar-se como de leitura obrigatória, ante a excelência da argumentação, a profundidade da pesquisa jurisprudencial e a qualidade da bibliografia utilizada.

sábado, 9 de julho de 2016

A ante-sala da globalização na obra de Epitácio Pessoa

FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; MIALHE, Jorge Luís; JOB, Ulisses da Silveira [org.]. Epitácio Pessoa e a Codificação do Direito Internacional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2013.

O caso de Epitácio Pessoa, que praticamente ocupou todos os cargos públicos que se põem à disposição do bacharel em Direito no Brasil, e de seu Projeto de Código de Direito Internacional Público, interessou a este grupo de estudiosos, que organizou esta coletânea a partir da seguinte estrutura: o significado e a repercussão da obra do homenageado, a obra em si e a respectiva biografia. A contribuição para a História do Direito Internacional Público e a compreensão desta contribuição brasileira veio a ser o mote da respectiva confecção.

Marcílio Toscano Franca Filho, ao emitir pronunciamento "à guisa de introdução: algumas questões preliminares e metodológicas", analisa a biografia e o papel desempenhado, nas múltiplas facetas de sua vida pública, por Epitácio Pessoa, e situa a importância de se conhecer e discutir o Projeto de Código de Direito Internacional Público por ele elaborado em 1911, num contexto em que cada vez mais se internacionalizam as relações jurídico-econômicas (p. 32-3).

O primeiro estudo, da lavra de Alessandra Correia Lima Macedo Franca, sobre "a jurisdição, a imunidade dos Estados e o espaço da relatividade: do código à rede", examina as vicissitudes da parêmia "par in parem non habet imperium", partindo de uma concepção de imunidade jurisdicional absoluta, assinalando no Projeto de Código de Direito Internacional Público uma das primeiras tentativas de disciplinar o assunto, passando pela distinção entre "atos de império" e "atos de gestão", encaminhando-se para os casos de exceção à regra imunitária, como é o caso das "Regras de Hamburgo", urdidas em 1891, pelo Instituto de Direito Internacional, o dissenso das legislações acerca da extensão da imunidade em sede trabalhista, a caracterização da execução forçada como espaço de resistência da imunidade absoluta e a dificuldade da aplicação ou não aplicação desta em face dos direitos humanos, diante do debate que se trava entre universalistas e relativistas neste campo.

Alice Rocha da Silva examina o modo como se procurou equacionar "a responsabilidade internacional do Estado no Projeto de Epitácio Pessoa", salientando a tendência à ampliação da área a ser coberta por tal sistema de responsabilização, especialmente diante do aumento do espectro dos direitos humanos, a importância da disciplina da responsabilidade na mitigação do estado de indeterminação nas relações internacionais, a evolução das bases da responsabilidade, a equiparação dos estrangeiros aos nacionais para o efeito de acesso à ordem jurídica interna em cada Estado, os casos em que a guerra civil poderia render ensejo à responsabilidade, a exigência de esgotamento dos recursos do direito interno, o modo de se operar a reparação dos danos e a imputação, ao Poder Central, da responsabilidade pelos atos das entidades locais, no contexto dos Estados Federais no âmbito internacional.

"Os prisioneiros de guerra no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa" ocupam a atenção de Érika Seguchi, que os situa no contexto da mitigação da atrocidade do conflito armado, olhos postos tanto no Direito da Convenção de Genebra como no Direito da Convenção de Haia. Aponta para a influência desta última na sistematização feita por Epitácio Pessoa, com a definição do conceito de "prisioneiro de guerra", da respectiva identidade, da submissão respectiva às leis, ordens e regulamentos vigentes no espaço dominado pelos captores, a questão do sustento dos prisioneiros, do trabalho que lhe pode e que não lhe pode ser exigido, do tratamento a ser dado em caso de tentativa de fuga, a prestação de assistência religiosa e por entidades humanitárias, sobre a centralização das informações acerca das vicissitudes dos prisioneiros, inclusive óbitos, salientando, ainda, a influência dos artigos redigidos pelo jurista brasileiro na atuação da Agência Internacional dos Prisioneiros de Guerra, criada pela Cruz Vermelha Internacional em 1914.

Eugênio Vargas Garcia faz a narrativa da experiência de "Epitácio Pessoa diplomata: de Versalhes ao Catete", quando o protagonista desta coletânea, ao participar da Conferência de Paz subsequente à I Guerra, em 1919, entrou em tratativas com o Presidente Woodrow Wilson, dos EUA, para a obtenção do reconhecimento da dívida da Alemanha decorrente do confisco do produto da venda de sacas de café estocadas em portos europeus e da incorporação de navios alemães apreendidos à marinha mercante brasileira, além de acompanhar da formação da Liga das Nações e de ser eleito, ainda em missão diplomática, para a Presidência do Brasil.

Fredys Orlando Sorto, ao comentar "a condição da pessoa humana no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", indica, na obra deste, este ponto mais conforme à doutrina tradicional do Direito Internacional Público, que somente reconhecia personalidade aos entes dotados da capacidade de fazer a guerra e celebrar tratados, isto é, os Estados, e contrasta-o à evolução doutrinária que, principalmente diante do desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, reconhece a personalidade no âmbito internacional também aos indivíduos.

Gustaaf Janssens, ao comentar a relação pessoal entre o Presidente Epitácio Pessoa e o rei belga Albert I, bem como a solidariedade prestada pelo Brasil à Belgica em 1914 quando do ataque perpetrado pela Alemanha e o estabelecimento de parcerias comerciais que renderam ensejo à recuperação do reino europeu, salienta o traço comum aos dois governantes quanto à preferência pelas soluções da concórdia e da conformidade ao Direito, e aos esforços por que por meios pacíficos se resolvessem as controvérsias internacionais.

Já Gustavo Ferreira Ribeiro, a quem coube examinar "o comércio internacional no Projeto de Código de Epitácio Pessoa", contextualiza o Brasil no comércio internacional na transição do século XIX para o século XX, quando era exportador, principalmente, de café, ensaiando diversificação no que toca, por exemplo, à borracha, a experiência brasileira em tratados bilaterais de amizade, comércio e navegação,bem como de participação nas Conferências Pan-Americanas (1889-1890, 1901-1902, 1906, 1910, 1923 e 1928) e a mudança do eixo diplomático brasileiro de Londres para Washington durante a gestão, à frente o Ministério das Relações Exteriores, do Barão do Rio Branco, quando foi cometida a Epitácio Pessoa a tarefa de confeccionar o Código, orientando a disciplina do comércio internacional, principiando pelo tratamento da "liberdade de trânsito", ressalvando o poder dos Estados disciplinarem, como bem lhes aprouvesse, o comércio uns com os outros, a liberdade de comércio marítimo, desde que respeitadas as disposições de natureza fiscal, sanitária e policial, a medida do tratamento igualitário entre nacionais e estrangeiros, a uniformização de pesos e medidas, apontando para a semelhança com as soluções albergadas no GATT.

Ao dedicar-se João Carlos Jarochinski Silva ao estudo sobre "a guerra civil no Código de Epitácio Pessoa", aponta para a tentativa de se estabelecer um parâmetro para a disciplina das relações com terceiros países em tais contextos, sobretudo considerando as experiências de conflagrações vivenciadas pelo protagonista da coletânea, buscando, em primeiro lugar, evitar a definição normativa do conceito de guerra civil, bem como os deveres de não intervenção dos Estados estrangeiros, regulando, ainda, o reconhecimento do estado de beligerância, de tal modo que são atraídas, em relação aos revoltosos, as disposições relacionadas ao direito da guerra.

"O reconhecimento da beligerância no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa" é explorado por Jorge Luís Mialhe, ao situar tal conceito no contexto da preocupação de estabelecer regras de conduta para a guerra, minimizando, assim, os seus efeitos colaterais, sobretudo em relação às populações civis, indicando os precedentes internacionais de tentativa de codificação do Direito Internacional Público, salientando a contribuição epitaciana, bem como a atualidade do conceito de beligerância, no mínimo, para que mesmo a guerra civil não se converta no teatro em que vigora a regra segundo a qual tudo é permitido contra o vencido, trazendo ainda os problemas atuais do procedimento e dos efeitos do reconhecimento deste estado.

A contribuição de Lilian Castillo volta-se aos direitos e deveres dos Estados no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa, assinalando a influência, neste, dos conceitos desenvolvidos por Johann Kaspar Bluntschli, embora avançando em domínios sequer cogitados por este último, como a alusão a um direito dos Estados proverem a respectiva conservação e prosperidade e o dever respectivo de não utilizarem símbolos de outros, marcando o Projeto, como um todo, diante das soluções adotadas em termos de Tratados, como demonstrativo de um sólido conhecimento do Direito Internacional e de uma efetiva capacidade de inovar.

Liliana Lyra Jubilut, ao comentar "o conceito de soberania: modificações e responsabilidade", trabalha a evolução teórica deste fundamento do Direito Internacional Público, a partir do século XVI, e da evolução de sua compreensão na prática das relações internacionais desde a Paz de Westfália, realiza a análise da variação das limitações a que se pretendeu submeter a soberania nos âmbitos interno e externo, bem como do tratamento procedido pelo Projeto Epitácio Pessoa às noções de "domínio reservado", "não intervenção", "igualdade entre os Estados" e "responsabilidade", examinando, a seguir, a evolução do Direito Internacional Privado no pós Segunda Guerra, com a criação da ONU, o período da Guerra Fria e a contínua preocupação em não se estabelecer sinonímia entre "soberania" e "onipotência" (p. 265), no que permaneceria atual a preocupação do homenageado.

Luciana Pessanha Fagundes examina os "rituais de hospitalidade e encenações da história: visitas de Chefes de Estado no Governo de Epitácio Pessoa (1919-1922)", partindo do pressuposto de que visitas desta natureza teriam como escopo a construção de alianças, e analisa o que significaram elas num contexto de consolidação de uma política externa brasileira voltada aos EUA, bem como os próprios acordos comerciais firmados com a Bélgica - de que teria sido também decorrência a instalação, em 1921, da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira - e o fortalecimento dos vínculos de amizade com Portugal, então ainda combalido pela crise que, em 1926, iria render ensejo ao protagonismo de um Oliveira Salazar.

Marcelo D. Varella, ao versar o "Direito Humanitário no início do século XX e a codificação de Epitácio Pessoa", salienta que esta, não obstante não tivesse, no particular, inovado, tomou posição em temas polêmicos à época, como a proteção da população civil, as garantias desta e dos servidores públicos nos territórios ocupados, os direitos dos feridos e do pessoal ligado à prestação dos serviços de saúde, os direitos e deveres em relação aos territórios ocupados, de tal sorte que a sua ousadia consistiria em trazer tais posições para o "corpus" sistematizador.

O estudo "sobre a linha: o Código de Epitácio, o tema da fronteira e o Direito Internacional do Espaço", de Marcílio Toscano Franca Filho, examina o problema da delimitação territorial da soberania a partir da compreensão geométrica da linha e de sua função, separando superfícies, não desempenhando papel diverso no que tange à superfície onde se exerce a autoridade estatal, para perscrutar, a seguir, de que modo foram as questões concernentes aos requisitos para a demarcação e delimitação de fronteiras, bem como para o respectivo desaparecimento, foram equacionadas no Projeto Epitácio.

Ao discorrer sobre o tratamento da "propriedade intelectual no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa", salienta Maria Edelvacy P. Marinho as características peculiares do bem imaterial, a expansão da proteção deste para além das fronteiras dos Estados, a distinção, neste campo, entre a concorrência das legislações entre si e a cooperação internacional, a inserção da temática no artigo 278 do Projeto, pressupondo a distinção dos regimes de propriedade industrial, de um lado, e de propriedade artística e literária, de outro, a modificação da metodologia de elaboração dos Códigos de Direito Internacional Público (a cargo de Epitácio Pessoa) e de Direito Internacional Privado (a cargo de Lafayette Rodrigues Pereira), em 1912, que conduziu a que a matéria viesse a ser versada, mais tarde, no Código Bustamante.

Matheus de Oliveira Lacerda, ao comentar "a codificação do Direito Internacional Público: a materialização do padrão realista jurídico-pragmático da política externa brasileira", discute as origens do panamericanismo, o pragmatismo brasileiro na condução de sua política externa em meio a potências militarmente mais poderosas, e o papel desta prática na elaboração do Projeto Epitácio Pessoa.

Cabe a Rogério Duarte Fernandes dos Passos versar "a estruturação da nacionalidade e a condição jurídica dos nacionais e estrangeiros à luz do Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", retomando as noções de nacionalidade e cidadania, mostrando o tratamento particularizado da questão da nacionalidade em relação à pessoa humana, aos navios e aeronaves, aos efeitos decorrentes da cessão territorial, à situação da mulher casada e dos filhos menores, à proteção diplomática, à responsabilidade dos nacionais por fatos verificados no exterior, à condição jurídica do estrangeiro, bem como dos problemas relacionados à aquisição de bens imóveis por pessoas jurídicas de direito público estrangeiras.

Rui Décio Martins versa, em pormenor,  o tema do nascimento dos Estados para os efeitos do Direito Internacional Público, até hoje carecedor de uma disciplina procedimental específica, regrado somente pela prática consuetudinária, no estudo intitulado "Dos Estados. Reconhecimento. Ontem e hoje".

Salem Hikmat Nasser e Adriane Sanctis de Brito, ao estudarem a "unidade, fragmentação e regimes jurídicos: narrativas de hoje e de Pessoa", examinam a busca da sistematização mediante o Projeto, em especial, como uma aspiração voltada a reduzir as colisões presentes em um contexto de relações jurídicas disciplinadas de modo fragmentário.

A contribuição, no tocante às relações internacionais, de "Rui, Epitácio e Fernando Henrique: do Brasil para o mundo" é dissecada minuciosamente por Susana Camargo Vieira.

"Epitácio Pessoa e o Direito Internacional americano" é o texto que cabe a Ulysses da Silveira Job, contextualizando a elaboração do Projeto em meio a uma identidade das Américas que se pretendia afirmar ante a comunidade internaciona, respeitando os princípios e valores presentes já em tratados preexistentes e harmonizando-os num texto único, adiantando-se a seu tempo em várias nuanças, como o status da mulher casada, medidas concernentes à circulação física, disciplina das soluções pacíficas de controvérsias internacionais, terminando por um comentário à sua atuação em questões de interesse americano.

Os "apontamentos do Direito dos Tratados no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa",  a cargo de Valério de Oliveira Mazzuoli, encerram esta primeira parte, salientando a influência do Projeto, neste campo, sobre a Convenção de Havana de 1928, bem como os pontos que vieram a ser superados, em especial no tocante à forma e à validade dos Tratados, com a evolução do Direito Internacional.

A seguir, é reproduzido o Projeto comentado nos estudos anteriormente resenhados.

Por fim, o retrato pessoal do jurista e político a que esta obra é dedicada, com a nota bibliográfica assinada por Joyce Sant'Anna Simões e Renato José Ramalho Alves, bem como fotografias ligadas à sua atuação no âmbito das relações internacionais.


Num momento em que se discutem temas como a permanência da distinção entre civilização e barbárie, da necessidade ou da superação da era das codificações, dos abalos que a própria ideia de soberania sofre diante da homogeneização jurídica do espaço econômico, a que se dá o nome de globalização, em que povos ocupantes de espaços territoriais buscam, por um lado, o reconhecimento e, por outro, comparecem forças não ligadas a nenhum Estado que se tornam atores impensados aos tempos em que se celebrou a Paz de Westfália, uma obra como a presente mais que se justifica, como uma das grandes contribuições brasileiras na tentativa de reduzir o quanto de arbitrário que ainda existe no âmbito das relações internacionais.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Verdade, direito, autoridade - as grandes tensões constitucionais

HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado constitucional. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.


Nos tempos atuais, quando se fala dos debates em torno de "Comissões da Verdade", esquecimentos, memórias, terrorismos, resistências, justificativas e não justificativas, pertinência ou impertinência do juízo moral comum à política, é de intuitiva oportunidade a obra do Professor da Universidade de Bayreuth questionando o papel da "Verdade" enquanto valor no campo político-constitucional, diante de uma tradição que, pelo menos desde Platão, tomava a "mentira" como um dos meios úteis para manter a tranquilidade na polis. A diferença entre a produção científica, que tem compromisso com a verdade, sempre e sempre, e o exercício do poder - seja no âmbito de um Estado, seja no âmbito de uma grande companhia -, que tem compromisso com a conveniência, ao ponto de a mentira poder ser tida como útil, não é recente: Nicolau Maquiavel, quando o Papa era Alexandre VI, embora tivesse sido mais explícito n' O príncipe, mais não fez que aprofundar uma passagem do Livro III da República, de Platão.
 
Para o enfrentamento do tema, o Prof. Häberle rastreia a presença da palavra "verdade" nos textos legislativos, notadamente a Lei Fundamental de Bonn e as Constituições dos Länder, ligando-a a questões como a educação, a livre pesquisa científica, ao registro imparcial das sessões parlamentares, passando, logo em seguida, ao tema - que será recorrente ao longo da obra, mediante comparações com as comissões congêneres na Europa do Leste, na África do Sul, na Guatemala e no Haiti - do estabelecimento, por ato do Secretário-Geral da ONU, em 1992, de comissão da verdade em El Salvador, composta por membros de diferentes nações, para apurar a prática de crimes contra a humanidade durante a guerra civil e assegurar o processo de transição para a democracia (p. 41-2), discutindo a questão do papel das comissões parlamentares de inquérito enquanto meios de apuração da verdade ou armas de luta política, salientando a importância que o dado de haver em maio de 1993 o candidato a Primeiro-Ministro do Partido Social-Democrata sido pilhado em falta com a verdade perante um órgão desta natureza teve na renúncia respectiva, comparando este último fato com o escândalo Watergate, ocorrido nos EUA (p. 44-5). Refere, em termos de Direito Comparado, as Constituições do Reino da Suécia de 1809, da Turquia de 1982 e da Grécia de 1975 (p. 45). No âmbito dos textos legislativos ordinários, trabalha-se basicamente a legislação processual, em matéria de prova (p. 46-8), bem como o direito canônico (p. 49-50), e as questões que se colocam no Direito Internacional Público, sobretudo quando se trate das condutas que se têm como permitidas ou não em guerra, especialmente na obra de Grotius (p. 51-2), e as influências dos debates da verdade no âmbito interno constitucional dos Estados na disciplina do Direito dos Tratados, na Convenção das Nações Unidas sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, no Preâmbulo da Convenção da UNESCO e também no da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (p. 54-5). Segue referindo a descrição do papel que o engodo desempenha no contexto do totalitarismo feita por Vaclav Havel, pondo o compromisso de cada qual com a verdade como a expressão da co-responsabilidade com o destino do todo e com a própria integridade do espaço público (p. 56), passando pela indicação dos momentos em que a verdade comparece como um valor, a partir do Antigo Testamento, e no âmbito da teologia cristã (p. 59), para indicar as aproximações e os afastamentos entre as noções filosóficas - a distinção entre as verdades da fé e da filosofia, cara aos discípulos de Averróis (p. 63) e que, modo certo, resolveu o problema de os Doutores da Igreja reportarem-se a autoridades não cristãs, embora tenha preparado o terreno para a cisão entre a religião e a filosofia (p. 67) - ou científicas - o processo de Galileu Galilei é mencionado, bem como a sua reabilitação pelo Papa João Paulo II (p. 62) -, o compromisso kantiano com a verdade como um dever absoluto e a discussão posta tanto por Hegel quanto por Popper (pensador que mais influiu no pensamento do autor ora resenhado - nota do resenhista) e Habermas (p. 64-6). Toma a questão da inacessibilidade à verdade "em si mesma", substituindo-se-a pela "busca da verdade" a partir da visão de um Wilhelm von Humboldt, bem como do niilismo de um Paul Feyerabend e do ceticismo de um Friedrich Nietzsche (p. 66-7), para, logo em seguida, versar o papel da verdade nas artes, sobretudo na poesia, na música e na pintura, evocando Schiller, Uhland, Theodor Storm, Goethe e Shakespeare (p. 71-92), em relação à primeira, Wolfgang Amadeus Mozart, especificamente em razão da famosa fala de Pamina ("A verdade, ainda que dizê-la seja um crime!") em A flauta mágica, o pianista Alfred Brendel, Ludwig van Beethoven e Richard Strauss (70-1), em relação à segunda, e a alegoria de Friedrich Holder (p. 70), em relação à terceira. São trazidas, logo depois, reflexões sobre a instalação das comissões da verdade para a apuração dos fatos ocorridos na Alemanha Oriental, os problemas relacionados à concorrência de pretensões de grupos distintos em face das propriedades privadas a serem restituídas (p. 94), a superação do próprio problema do "recalque coletivo" ocorrido a partir de 1945, as manifestações de nostalgia do regime da Alemanha Oriental nos anos 1993-1994 (p. 97), que tornaram, no ver do autor, imperiosa a instalação de tais comissões e a edição de leis de transparência. Aponta, outrossim, como caminhos percorridos no constitucionalismo da Europa do Leste, após a queda do Muro de Berlim (p. 99), o estabelecimento de cláusulas protetoras do pluralismo, como a interdição de que se punam, em nome de uma cosmovisão oficial, as livres convicções de cada qual (p. 100), como a adoção do pluralismo partidário (p. 100-1), como o dever fundamental dos ocupantes de cargos públicos com a verdade, como a circunscrição da palavra final sobre as verdades científicas aos eruditos - presente na Constituição da Hungria, e que não deixa de provocar no autor resenhado uma estranheza, qualificando tal providência como "W. von Humboldt em 'salsa húngara pós-comunista'" - (p. 101), como a proibição da monopolização das fontes de informação e dos meios de comunicação de massa, seja pelos particulares, seja pelo Estado, como a interdição a prejulgamento nos processos e a garantia do direito à prova (p. 102), como a interdição a que se confundam o Estado e o partido (p. 102-3). Toma-se o protótipo do Estado constitucional aquele que arreda os modelos totalitários de quaisquer cores, as "pretensões fundamentalistas de verdade", os monopólios de informação e as visões de mundo imutáveis, não se estabelecendo sobre verdades preordenadas, mas na eterna busca da verdade (p. 105). Mesmo tendo a falseabilidade das proposições como critério da verdade, mesmo tendo-se a verdade como um dado poliédrico, um diamante com brilho por todos os lados, isto não significa a adoção de um relativismo à plena, pois o Estado constitucional se autonegaria, por exemplo, ao admitir a instauração do totalitarismo, ou se não existissem as denominadas cláusulas pétreas, ou "garantias de eternidade" (p. 106-7), e dá o investimento na educação como meio eficaz para dar concreção a esses limites, e isto somente pode estar vinculado ao desiderato da busca da verdade, meio de conexão das três liberdades intelectuais fundamentais, quais sejam, a liberdade de religião, a liberdade das artes e a liberdade das ciências (p. 108-9). Tal desiderato somente se pode executar com a criação de um ambiente propício para tanto, e isto somente se pode dar no seio de uma sociedade pluralista, embora a própria investigação da verdade possa, por motivos éticos, comportar limites, como é o caso da proibição da obtenção de informações mediante o uso de tortura ou de meios voltados ao embotamento da consciência do interrogando (p. 112). Colocam-se, a seguir, as questões da verdade no seio da democracia pluralista, pelas tensões que se estabelecem na formação da opinião pública, seja pela questão da oposição entre a formação da maioria e a "verdade em si mesma" (quantidade/qualidade), a origem da lei na autoridade e não na verdade, a questão da concorrência das versões no que tange à atuação dos meios de comunicação, que se caracterizaria por uma luta pública das ideias, somente factível à plena em existindo certa igualdade no acesso a eles (p. 113-4), ressaltando a ênfase do debate na Alemanha no zelo jornalístico na apuração dos fatos e na efetividade do direito de resposta (p. 115), bem como na delimitação do excessivo poder de mercado das televisões privadas (p. 117). A questão da proibição constitucional da mentira e, ao mesmo tempo, da possibilidade de se incidir no erro até que seja demonstrado e da mentira em estado de necessidade, seja pelo silêncio, seja pela expressão inverídica em si mesma, quando se esteja no contexto ditatorial ou totalitário (118-120). Também entra em discussão o papel das "ficções jurídicas" enquanto meios de operacionalizar determinados valores jurídicos (p. 121-2). Ainda assim, a busca da verdade se coloca como um "valor cultural" em contraposição ao totalitarismo e vem a, cada vez mais, conectar-se à temática dos direitos humanos (p. 123-4). A partir daí, encaminha-se para a questão do que importe, para o jurista, em relação à temática da verdade, trabalhando as regiões "cultural", ligada às interpretações e projetos de mundo de cada qual, e a "política", que estaria ligada à presença do "outro" e o respeito por sua liberdade, propostas por Rüdiger Safranski, com mitigações que se colocariam em termos de uma política de direitos fundamentais que conduziria ao estabelecimento das condições para que a verdade vicejasse (p. 125-6). Destarte, o jurista, mesmo de posse do conhecimento da discussão filosófica acerca da verdade, valeria tomar em consideração o dado de que o problema da verdade se colocaria a partir das premissas postas no interior de cada uma das ciências. Para o Direito, ao lado da proibição da mentira em relação à dignidade da pessoa humana, por decorrência desta mesma dignidade, cada qual teria o direito à busca da verdade, e isto pressuporia tanto a não-violência (o que seria assegurado pelo monopólio estatal da força) "quanto a tolerância, cultura, proteção à natureza e também às gerações futuras", sem que o Estado pretenda "curar" a possibilidade do fracasso e do erro (p. 128).  A seguir, anexa-se o balanço realizado pelo autor cinco anos após as reflexões anteriores terem sido publicadas na Alemanha, referindo especialmente o trabalho das comissões da verdade constituídas na África do Sul em relação ao apartheid, na República Federal da Alemanha, no que tange à atuação da Stasi, na Polônia, com sua Lei de Transparência, na Republica Tcheca e na Itália, bem como na América Latina, as questões do emprego das mentiras como estratégia governamental, evocando os casos de Gorbatchov, de François Mitterrand e de Clinton, o tema relacionado com o papel da mídia, distinguindo-se entre a verdade jornalística e a verdade judiciária. Coloca-se, também, a questão das falsificações no âmbito da produção científica para o fim de obtenção de recursos financeiros, o crescimento das discussões filosóficas e jurídico-filosóficas acerca da verdade entre 1995 e 2001, o estabelecimento de quatro caminhos para se chegar ao conhecimento da verdade em relação aos antigos regimes comunistas.

Nem todas as proposições contidas nesta obra contam com a minha adesão: o conceito de "ideologia" que nela se contém é empregado no sentido que a tradição mannheimiana denomina "forte", o de uma distorção da realidade voltada a fundamentar as relações de poder, quando me parece, justamente pela falibilidade humana, mais adequado o sentido "fraco", o de uma cosmovisão dominante - independentemente de suas virtudes e defeitos - em determinado meio social, a que se opõe a "utopia", que é a cosmovisão que aspira a tornar-se dominante. Por sinal, o sentido "forte" de "ideologia" traduz um dos traços de aproximação entre visões de mundo que se pretendem francamente antagônicas, a saber, a dos tributários do "materialismo histórico" e a dos herdeiros do Colóquio de Mont Pélérin. Também não conta com minha adesão o viés popperiano do autor, vez que o referencial weberiano me parece mais adequado à materialização do escopo iluminista de busca da verdade. Estes e outros pequenos senões não lhe comprometem o mérito, entretanto. Os cultores de todos os ramos do Direito têm muito a se abeberar nesta obra.  Para o juseconomista, a sua importância não se coloca somente em termos do papel que a informação tem como matéria prima da decisão em geral, e da decisão econômica em particular, seja de investir, seja de consumir, necessitando, pois, de dados verdadeiros para que os resultados sejam os mais próximos daquilo que se pretende ou do papel da ciência enquanto responsável pelo aperfeiçoamento da técnica e, portanto, pela necessidade de seus resultados se mostrarem confiáveis na solução dos problemas que se propõe a resolver, e tampouco no que tange às questões concernentes à disciplina da atuação da mídia enquanto setor da atividade empresarial. Com efeito, basta recordar que o artigo 174 da Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como característica do plano econômico o ser "indicativo" para o setor privado e "vinculante" para o setor público, traduzindo a indicação o rumo a ser imprimido pelo Poder Público à política econômica que adotar, dando os referenciais, pois, ao particular para orientar a respectiva atividade econômica. Por outro lado, tem-se discutido, em relação ao próprio funcionamento do mercado, a assimetria de informações enquanto elemento perturbador do equilíbrio entre os agentes econômicos a ser devidamente enfrentado pelo Poder Público. A própria reflexão em torno da revolta dos fatos econômicos contra a lei - recordando, aqui, o clássico publicado por Gaston Morin em 1920 -, impondo solução que, mesmo aparentemente antagônica à literalidade do comando isolado, confira efetividade ao ordenamento jurídico como um todo, qual ocorreu logo após a I Guerra, levando Justus Wilhelm Hedemann a identificar os limites do Direito Civil clássico e a proclamar o nascimento de um Direito Econômico, e a urdidura, pelo pioneiro deste no Brasil, Professor Washington Peluso Albino de Souza, da regra da primazia da realidade social, aponta, em si mesma, para os limites da operacionalidade das ficções. Embora estes temas não tenham sido tratados na obra ora resenhada, pode ela perfeitamente servir como ponto de partida para uma discussão racional deles e de quaisquer outros que, por vezes, têm a respectiva compreensão desviada pelo partidarismo.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Direito e a astúcia do (ir)racional através dos tempos

MARQUES, Daniela de Freitas. Os espelhos do sistema jurídico-penal - Giordano Bruno, o herege. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2011.


O texto ora comentado, embora focado na área penal, apresenta interesse para todos os ramos do Direito. Isto porque nele a Professora da Universidade Federal de Minas Gerais investiga, a bem de ver, um dos mais trágicos - no sentido etimológico do termo - aspectos do Direito, que é justamente a persistência da obsessão pela identificação e destruição do inimigo enquanto exemplo necessário à manutenção de uma dada ordem de coisas. Para tanto, decidiu examinar o processo mais invocado por quantos pretendam falar no martirológio das Ciências, em luta contra o Obscurantismo: o processo de Giordano Bruno.

A primeira parte da obra versa tanto a biografia do infortunado pensador quanto as circunstâncias pelas quais veio a cair nas mãos do Santo Ofício, bem como a condução do processo, com o emprego - entáo havido por lícito e mesmo recomendável - da tortura e sua execução, pela fogueira, no Campo de Flores, no ano de 1600. Já nesta parte, a autora vai delineando o papel desempenhado pela punição, na visão católica, como o elemento voltado a dissuadir as tentações, marcadas pela antítese do privilegiar a alguns, perseguindo a muitos, racionalmente orientada, contudo, de tal sorte que o papel das autoridades, tanto eclesiástica quanto secular, ficasse bem delineado, visível, e focada precisamente na idéia de infligir o sofrimento para a expiação do pecado, e, na visão luterana e calvinista, voltada epecialmente à expiação pelo trabalho, e ambas as visões tendo como ponto de intersecção o cárcere e a própria discriminação daquele "que não é dos nossos" como inimigo, cujo fundamento pode, exteriormente, mudar, mas não deixa de estar nas raízes de todos os sectarismos ao longo da história, inclusive dos séculos XX e XXI. Refere a origem da massa miserável que afluiu às cidades inglesas nos séculos XV e XVI, formando as vagas de desocupados e mendigos, expulsa das terras que deram lugar às pastagens, e que foi tratada como se a sua situação fosse decorrente exclusivamente de uma disposição voluntária viciosa. A ênfase na expiação pelo trabalho, no contexto protestante, não exclui, necessariamente, a pena de morte, mas somente em decorrência da rebelião contra a disciplina imposta pela própria condição da condenação original do homem a ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Trabalha o desenvolvimento da Inquisição na Espanha, em Portugal e na Itália, de tal sorte que o foco das perseguições se colocaria tanto nos diferentes - judeus, mouriscos, cristãos-novos - quanto nos dissidentes - hereges -, manifestando - especialmente depois da descoberta do Novo Mundo, para o qual o degredo implicava a perda dos referenciais para o condenado - a lógica de caráter estritamente binário, com as suas oposições, e a punição expressa em corpos dilacerados, com que a coerção se faz visível ao público, o horror enquanto o repelente, conduzindo, inclusive, ao desenvolvimento de estudos que ligavam as características físicas a dados psicológicos e mesmo mentais, que estariam na raiz tanto da fisiognomia de Lavater quanto na frenologia de Gall, na criminologia lombrosiana (que Joseph Conrad ironizaria em seu romance O agente secreto) e mesmo nas teorias eugênicas. O processo de Giordano Bruno é contextualizado, assim, como a perseguição ao dissidente, por suas idéias e ao medo da independência, porque fora do oficialismo eclesial, somente existiria o pecado e, pois, a inimizade a Deus. O medo ao pecado seria a base para a perseguição à heresia, seja no lado católico, seja no lado protestante (a autora exemplifica, aqui, com Miguel Servet, o descobridor da circulação pulmonar, levado à fogueira em pleno calvinismo). A própria idéia de subversão como inimizade a ser reprimida, como o espelho da ordem que se quer manter, a autora refere que, a despeito das comparações e diferenciações que se possam fazer entre a ilicitude herética e a ilicitude jurídica, vem atravessando os tempos, como se pode verificar nos regimes castrenses instaurados no século XX na América Latina, bem como na "caça às bruxas" do período do macartismo norte-americano, dando, assim, a figura do inimigo como essencial ao imaginário da humanidade. A partir daí, ingressa no debate do conceito de "pecado", enquanto pensamento e ação que traduz uma rebelião contra Deus, rompendo a Aliança com Este e com a sociedade dos Seus fiéis, enquanto opção realizada contra a Divindade, e vem a discutir, então, as próprias dificuldades da dogmática penal na própria escansão dos elementos do dolo e da culpa, os problemas da concepção funcionalista de um Claus Roxin, bem como a própria questão da intenção como qualificadora do pecado, haurida em Abelardo e em Pedro Lombardo, e que vem a influenciar profundamente o pensamento jurídico-penal herdeiro da tradição judaico-cristã, inclusive na diferenciação entre o criminoso e o herói. O pecado e o crime vão correndo em paralelo, assim, na visão do final do século XVI, como fundamentos para se exercer, sobre o indivíduo, o controle do pensamento e da conduta. Discute o crime e a heresia como manifestações da própria idéia do Mal, enquanto reflexo ou espelho do Bem, estabelecendo as relações entre duas importantes obras de Bodin, a Demonomania e os Seis livros da República, enquanto confluência do absolutismo e do poder de punir, fundamentados, ambos, na autoridade Divina, embora estabelecidas diferenciações entre o criminoso comum - que, mesmo sendo um regicida em potencial, poderia haver a remissão sem que a sua consciência fosse renegada, o que seria impossível para com o herege, e é a partir de tais construções, ainda que superadas com a vitória dos ideais iluministas, que se abre o caminho para a concepção do crime como uma lesão não somente à vítima concreta, mas à própria saúde do corpo estatal, o Direito enquanto expressão do sagrado, da conservação, da ordem, o crime enquanto expressão do profano, do anárquico, do inseguro, a pena de morte enquanto sacrifício do delinqüente ao restabelecimento da vontade de Deus, o controle dos seres humanos, a identificação do herege como elemento fundamental para assegurar um motivo que aglutine a sociedade em torno do Estado e para que tanto as relações políticas quanto as relações de trabalho sejam aceitas como impostas pela própria natureza das coisas: concebe-se, pois, naquele contexto, a lei mais severa como a melhor, porque inspira o medo a quem não se mostre beneficiário da ordem estabelecida. Vem a caracterizar-se a heresia muito mais por se ser refratário à autoridade, ao medo que esta inspira do que à verdade, e o discurso sobre ela vem a se reproduzir na visão funcionalista do crime, fundada em uma lógica binária dos "agentes do Bem" contra os "agentes do Mal", sendo o Bem manifestado de uma, e somente uma, forma, enquanto o Mal é representado pela multiplicidade, tal qual a hidra de muitas cabeças; a onipresença do Mal no período da Contra-Reforma - contexto em que se deu o processo de Giordano Bruno - vem a ser sucedida pela mentalidade da onipresença do Império do Crime, no âmbito interno, e do Terror, no âmbito externo, no contexto em que se consideraram vitoriosos os ideais do Iluminismo. A partir daí, vão sendo examinadas as peripécias das heresias que pontilharam a história do Cristianismo, bem como o papel aparentemente paradoxal por elas desempenhado no sentido da consolidação do dogma e, no momento em que o Cristianismo se torna a religião oficial, no sentido da afirmação da própria autoridade temporal. Daí por que a caracterização da heresia vem a se tornar algo decorrente do temor de abalar as certezas da autoridade, com o que se vem a entender por que não é difícil imputar tal acusação a quem quer que seja, quer porque não aceite o cânone estabelecido sobre a Santíssima Trindade e a natureza do Cristo (como as heresias da Antiguidade), quer porque discuta o papel da Igreja e dos sacramentos (com as heresias medievais), e vem o conceito de heresia a abranger não apenas a discordância como a impossibilidade de se fazer entender, não apenas a rebeldia, em todas as suas manifestações, como também a própria posse de conhecimentos além dos alcançados pelas autoridades eclesiásticas, qual ocorreu tanto com Damião de Góis em Portugal quanto com Giordano Bruno. A idéia de uma auto-evidência dos direitos do homem somente se vem a tornar possível a partir do momento em que se vem a tratar o egoísmo enquanto motor do ser humano em busca do bem-estar, ou seja, a partir do momento em que o afã de lucro vem a ser considerado como necessário à ampliação do círculo do poder, de tal sorte que o corpo do indivíduo passa a ser visto como sagrado enquanto propriedade sua, embora tal egoísmo deva ser atenuado pela necessidade de reconhecimento desta sacralidade por parte do Outro. E o Outro, por seu turno, para se sentir estimulado ao reconhecimento, passa a ter o direito de ser reconhecido. E, por conta disto, ter-se-ia principiado o movimento de abandono da punição corporal, embora os acontecimentos desencadeados pelo atentado de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center tenha reavivado temas como a aceitabilidade da tortura como um mal menor diante da ameaça indiscriminada do terrorismo e, mesmo, a da redução das pessoas ao papel que desempenham na sociedade para que se tornem ou não os destinatários da força repressiva do Estado. A aversão à própria idéia da Multiplicidade, que somente se admitiria se fosse o estabelecimento de um bloco de idéias conformes e não várias cabeças como a hidra, também se viria a projetar na aventura européia no Novo Mundo, em que o combate da fé se traduzia pela evangelização dos gentios, que deveriam, não obstante, ser destinados também à escravização e, mesmo, à destruição - o megalomaníaco Kurtz de Coração das trevas, de Joseph Conrad, preconiza que se "exterminem todos os brutos!" -, para que o terror lhes infunda a disposição para aceitar tanto a autoridade de Deus quanto a autoridade do Rei. O degredo para o Novo Mundo, enquanto perda de referenciais, viria a ser uma das penas destinadas a hereges, feiticeiros, marranos, mouriscos, sodomitas, enfim, marginais de todos os tipos, valeria, praticamente, por uma proscrição. O Novo Mundo, para o europeu, seria o equivalente temporal do Purgatório. De outra parte, o papel da Universidade enquanto templo da ortodoxia doutrinária também viria como reforço ideológico da necessidade de se manter a constante perseguição ao herege, visto como um inimigo em guerra sem quartel. A partir daí, também, a autora empreende o estudo da função desempenhada pelo Index Librorum Prohibitorum, no que tange às possibilidades infinitas que as obras encerram, de superar não só os limites da vida humana - e, por isto mesmo, as obras de Giordano Bruno foram também levadas à fogueira -, como também de perpetuar a própria idéia da Multiplicidade, tão identificada ao Mal. Daí por que a idéia da Árvore do Conhecimento e da Árvore da Vida, presente tanto no pensamento hebreu-cabalístico (estudado a fundo por Raimundo Lúlio e por Giordano Bruno) quanto na mitologia nórdica, vem a se confrontar diretamente com o pensamento único, a Verdade única, a visão de que fora da ortodoxia não existe salvação, tão combatida pelo pensador nolano, para quem na diversidade e na infinidade estão, mesmo, as manifestações do Uno, as manifestações, pois, de Deus. Passa a examinar os fundamentos para a instituição do Santo Ofício, indicando o papel desempenhado pela forma para a caracterização do eterno sofrimento dos hereges, iniciado pela queima em vida e prolongado após a morte no Inferno, bem como os paradoxos das formas jurídicas, presentes inclusive nos tempos do constitucionalismo, da afirmação dos direitos humanos, em que até mesmo o conceito de pessoa humana vem a permanecer indefinido e cada qual se quer um absoluto. Diferencia as Inquisições portuguesa, espanhola e romana, quanto às regras de competência e aos procedimentos. Se, a partir do final do século XVII, a tese do "não conhecer o que está no alto" vem a ser substituída pelo "ousar saber", os segredos da natureza abrem espaço a que se venham a desvelar os segredos de Deus e os segredos do Império; o sistema jurídico, enquanto texto a ser interpretado, a ser objeto da ciência de Hermes - paradoxalmente, o patrono dos ladrões, o próprio exemplo clássico da negação do Direito -, vem a condicionar a manipulação de tais segredos, seja ao estabelecer os modos como se disporá da natureza, conservando-a, alterando-a ou destruindo-a, como se separarão as esferas do laico e do sagrado, como se exercerá o poder do Estado. Texto a ser interpretado por um intérprete autorizado, o magister. O primeiro delito será sempre a tentativa de tomar o lugar de Deus, como o teriam feito antes Cronos em relação a Urano e Zeus em relação a Cronos e o tentou fazer o próprio Adão em relação a Iahweh. Mesmo que, progressivamente, o mundo ocidental se tenha feito menos mágico e mais sério, não há como negar que conceitos básicos como culpa, livre-arbítrio, expiação se encontrariam no pensamento teológico católico, substituindo a vingança privada pela concentração do poder de coação na autoridade constituída e que, a partir da noção do herege como o inimigo da fé, vem a ser construída a noção do criminoso como o inimigo da sociedade, de tal sorte que se pode dizer que o herege se vem a colocar como o elemento humano de transição entre o poder espiritual e o poder temporal, agente do demônio indigno de qualquer piedade. A identificação do herege e do criminoso têm em comum a referência a uma autoridade estabelecida, a uma autoridade que se tem como a portadora da Verdade revelada - o Verbo que se impõe, ainda que sob a forma de texto legislativo -. Em seguida, realiza-se o cotejo entre as obras de Giordano Bruno e seu contemporâneo Francisco Suárez. Este, embora jesuíta, abriria caminho para a laicização do Direito fora do próprio contexto da Reforma protestante, ao apontar para a impossibilidade de a lei humana - que ele distinguia da lei natural - disciplinar atos puramente internos, veio a abrir caminho para a distinção entre o Direito e a Moral, considerada a grande contribuição do iluminismo para a Filosofia e a Ciência do Direito, bem como ao tratar o poder político uma outorga de Deus ao povo, para que este o outorgasse ao governante, marcando novo passo na construção do contratualismo. Giordano, sem ter sido teólogo ou jurista, reditando conceitos platônicos acerca do mundo, da alma e da escolha individual desta em relação ao seu destino, atingiria os fundamentos do dogma, do mesmo modo que as instituições humanas, sem o seu sistema punitivo e sua constante justificação e legitimação pelos sábios competentes, ruiriam, de tal sorte que se vem a realizar, no âmbito do funcionalismo penal que viceja, o próprio retorno à pena enquanto vingança, dado que mesmo quando não haja a esperança de reeducação do condenado, este vem a sofrer as desagradáveis conseqüências de sua conduta. A partir daí, entende-se por que, a despeito de provocar o riso do adulto em face dos "desatinos infantis" a perseguição a bruxas e hereges durante a Idade Moderna, a mesma disposição que em relação à necessidade de uma punição atroz aos que se encontravam na conspiração contra Deus se apresente, nos tempos atuais, quanto aos clamores de penas mais duras e um sistema penal menos benéfico a quem se mostre merecedor das reprovações do Judiciário e, principalmente, da mídia, apontado como um perigo para a própria sobrevivência da humanidade. Não é nem tanto a conduta em si que será objeto de punição, mas sim o dado de ela haver sido praticada em tais ou quais circunstâncias, de nada valendo um arrependimento sincero, quando o que interessa é a recomposição da ordem, abalada pelo menor desvio, qual ocorrido com Actéon, caçador que, ao divisar, por acidente, a casta Deusa da Caça no banho, foi por esta transformado em cervo e somente se contentou a Deusa depois que os próprios cães que o acompanhavam à caçada o despedaçaram. Daí a exclamação que parece resumir toda a angústia que inspira a obra resenhada: "não percebem as pessoas? Os direitos fundamentais nascem no Estado absolutista - ou seja, no Estado e na Igreja que assolavam as mentes, dominavam os espíritos e supliciavam os corpos. Direito é Maya. Direito é ilusão. O suicídio não é proibido, mas a vida é um bem humano indisponível. O patrimônio é bem jurídico disponível, mas o crime de furto é crime de ação penal pública incondicionada. O consentimentó é irrelevante em determinados crimes, cuja tutela são valores humanos - cambiáveis como vôos de pássaros ou nuvens no céu. Há a liberdade de ensino, mas os docentes estão presos ao programa tradicional e à leitura de textos fundamentais. Há a liberdade de convicção, mas os símbolos religiosos estão presentes nos espaços públicos e, no Estado laico, proíbe-se o uso do chador. Proíbe-se a clonagem humana, e a proibição apazigua as consciências. Razões de Política Criminal, razões de Estado, razoabilidade e proporcionalidade nas decisões tomadas., dirão uns e outros. Mentira! Grita o inconformado espírito" (p. 267). Na raiz da heresia, estaria o pecado original, a soberba, que, entretanto, não deixaria de acometer aos próprios juízes, auto-investidos na condição de gládios de Deus sobre a terra (muito pode aprender o jurista com a leitura do conto Gladius Dei, de Thomas Mann), e a suprema ironia se apresenta a partir do dato de que são representantes de uma cultura toda fundada no enaltecimento de um personagem condenado como criminoso - o próprio Jesus de Nazaré -. A virtude, quando não dissimulada, vem a ser perseguida como negação do maior fundamento para a presença do aparelho coercitivo: a idéia de que ela seria inatingível, não fosse o temor da danação, tanto temporal quanto Eterna. Daí por que, para ser virtuosa, realmente, tem de ser discreta, silenciosa, não deixar rastros, o pensamento individual, independente, somente pode ser expresso a partir da identificação de sua conformidade a determinado padrão coletivo de respeitabilidade. A alegada proscrição da mentira e do engodo vem a ser confrontada com o emprego constante das ficções pelo Direito, cuja história se vem a confundir, mesmo, com a da justificação do Poder. A idéia de um corpo universal, representado no Estado e pela Igreja, com poderes sobre o corpo particular, representado pelo súdito e pelo fiel, conduz também ao debate acerca do que se entenda como bens disponíveis e indisponíveis, sobretudo diante da necessidade de que as relações de poder se instaurem, seja no âmbito político, seja no âmbito religioso, seja no âmbito econômico. O universal com disposição sobre o particular, estabelecendo a medida da forma como determinante da essência de atos, fatos e pessoas, o herege, o incréu, o outro, enfim, como o "algo" a ser proscrito, como todas as manifestações subversivas, o riso - o declínio do Bobo da Corte com o início da Idade Moderna é um exemplo claro -.Daí se vem a entender por que a obsessão pela "correção" e pelo puritanismo se disseminam, e o desejo da punição exemplar de tudo o que seja desviante se apodera dos corações, embora seja justamente a partir dos desvios que todo o pensamento jurídico, pretensamente sério, vem a avançar - ele avança a partir da sua negação, do mesmo modo que a teologia avança na busca de argumentos para reforçar a fé pela negação do herege - e o porquê de serem tão próximas as representações de despersonalização dos hereges e dos crimnosos.



Como se pode ver, trata-se de obra fundamental, justamente neste período em que surgem, pulando daqui e dali, os novidadeiros que julgam estarem a corrigir soluções que lhes parecem excessivamente brandas ou permissivas na legislação - especialmente quando o sujeito passível de sofrer a restrição não é "um dos nossos", ao contrário do que ocorre com "os nossos", que "deveriam ser libérrimos", em relação aos quais qualquer exigência do cumprimento de deveres legais soa como uma opressão -. A presença do dogma, com toda a carga de impositividade e limitação que a palavra contém, no corpo dos conceitos jurídicos e, principalmente, no Direito Penal, é dissecada e apontada a cada página. O processo de Giordano Bruno, além da sua significação histórica, assume, no que interessa aos juristas, uma significação metafórica. Simultaneamente, fato histórico, problema jurídico (os referenciais axiológicos que presidiram cada ato do processo) e metáfora (dos problemas que ainda hoje vêm a acometer quantos têm de resolver questões jurídicas, para além dos respectivos preconceitos e predisposições). E o autor de Interpretação jurídica e estereótipos não poderia deixar de referir encomiasticamente esta obra. Não somente, como antes dito, aos penalistas, embora a autora concentre suas pesquisas nesta área do Direito: a razão de ser do direito ao trabalho, vista pelos economistas da Escola de Chicago como uma simples manifestação de demagogia para negar a sempiterna verdade de que o desemprego é sempre fruto de uma decisão livre e viciosa, vem estampada, inclusive, pela experiência dos tempos de Henrique VIII, mostrando que a exclusão de grandes massas da própria condição de sujeitos de direitos e deveres não teve o efeito esperado de tornar mais segura a situação dos beneficiários do sistema, antes veio a informar aos excluídos da existência de uma guerra a ser sustentada. A própria questão do pensamento único a que se referiu Margareth Thatcher, ao ser ofertado o fundamento ideológico para as políticas denominadas "neoliberais" que se levaram a cabo, mediante o desmonte do aparato constitucional do Estado Social, no correr da década de 90 do século XX e que tiveram a sua exaustão assinalada pela crise de 2008. Do mesmo modo que a eliminação dos hereges não eliminou as heresias, somente fez com que se modificassem as formas de questionar a própria autoridade - se, num momento, são os albigenses, no outro, são os luteranos -. E emerge, aqui, um material extraordinário para quantos se voltem com seriedade à temática dos Direitos Humanos. Alguém, provavelmente, diria que a autora, ao invés de criticar os conceitos construídos ao longo de séculos e, mesmo, de milênios para assegurar a sobrevivência da sociedade, deveria, caso os entendesse - com mostra que entende - inadequados para as finaldiades proclamadas, prescrever a terapêutica. Aqui, responder-se-ia que prescrever terapêutica sem o diagnóstico adequado seria temeridade, seria, mesmo, o caminho para agravar a situação do doente, ao invés de o tratar. A ficção pode ser útil, muitas vezes, mas quem a emprega, independentemente da sua utilidade, deve estar ciente de que está lidando com a ficção.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Políticas públicas, reserva do possível e Constituição

COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e controle de juridicidade - vinculação às normas constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010.




A obra que ora se resenha tem origem na dissertação de mestrado defendida pela autora, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e vem a trazer uma contribuição ao debate de vários temas polêmicos que se vão descortinando na paisagem que circunda o caminho por ela trilhado, em relação a esta preocupação dos limites e possibilidades da concreção do Estado de Direito, tal como desenhado pelos Textos Constitucionais contemporâneos. O tema escolhido me é dos mais caros, tendo em vista que foi exatamente sobre ele que elaborei minha tese de doutoramento.




O texto principia por inserir a preocupação com o controle das políticas públicas no contexto do denominado "neoconstitucionalismo", que, a partir de "elementos metodológico-formais" - normatividade, superioridade e centralidade da Constituição no ordenamento jurídico como um todo - e materiais - "incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais" e o acolhimento nestes de proposições aparentemente conflitivas -, buscaria ofertar uma resposta às experiências totalitárias e autoritárias do século XX, refletindo sobre o papel da Constituição no sistema do direito positivo - sobre o qual se digladiam as vertentes substancialista e procedimentalista -, manifestando a preocupação com a sua efetividade. Destaca a contribuição de Konrad Hesse, comparando com o pensamento de Hermann Heller, no esforço de aproximação da Constituição jurídica da "Constituição real"; a ampliação da jurisdição constitucional como conseqüência da imunização dos direitos fundamentais às contingências das maiorias nos Parlamentos; o desenvolvimento de novos métodos de hermenêutica voltando-se sobretudo às disposições concernentes a prestações positivas e aos conflitos aparentes entre princípios ou entre regras. É a partir de tais premissas que se balizarão a formulação e a execução de políticas públicas.




Tomando os direitos fundamentais como fim último das políticas públicas, refere a presença, ao lado dos direitos civis e políticos, dos direitos sociais (englobando neste conceito tanto os direitos sociais stricto sensu, como os direitos econômicos e culturais), expondo, em relação a estes últimos, o problema da respectiva eficácia muitas vezes depender de uma ação estatal que demande toda a criação de uma estrutura burocrática e de recursos financeiros, de tal sorte que se relativizaria, embora não ao ponto de se conduzir, necessariamente, tal situação à sua inexigibilidade.




Em seguida, versa o despertar do interesse do pensamento jurídico pela temática das políticas públicas a partir do momento em que o ideal da "Constituição sintética" típico do século XIX vem a ser substituído pela inserção, no Texto Máximo, da previsão de fins a serem atingidos pelos Poderes constituídos, de tal sorte que amplos setores que antes só poderiam ter contato com a ordem jurídica na condição de infratores venham a ser alcançados na condição de sujeitos de direito. Tendo presente a inexistência de direitos sem custos - ainda que se trate dos clássicos "direitos de liberdade" -, aponta para o dado de que, a despeito da ampla liberdade assegurada ao poder constituído para a alocação dos recursos, escassos para o atendimento de todas as demandas que se fazem ao Poder Público, existiria um limitador para além do qual não poderia ir a amplitude decisória, que seria justamente a realização da dignidade da pessoa humana, entendida esta na acepção kantiana.




A vinculação das políticas públicas à realização do projeto posto no Texto Constitucional parte do pressuposto da adoção, em maior ou menor grau, da tese do caráter dirigente que tal Texto assume nos tempos atuais, com a redução, no seio do constitucionalismo contemporâneo, da margem de discricionariedade dos Poderes constituídos na definição de objetivos políticos, postos os fins e, muitas vezes, os próprios meios, em caráter permanente, na Constituição. Embora ainda presente uma certa liberdade de conformação, para que as instâncias democráticas, ao se alternarem no poder, implementem os programas pelos quais foram investidos, e não se invista o Judiciário na condição de substituto das instâncias eletivas, a verificação da ultrapassagem dos balizamentos postos constitucionalmente, o descumprimento efetivo da Constituição pelas omissões, o atendimento das escolhas já feitas pelo Legislativo e pelo Executivo passa a ser objeto do controle jurisdicional, de tal sorte que são fixados os seguintes objetos sobre os quais este vem a incidir: (a) controle do estabelecimento de metas pelo Poder Executivo e Legislativo (não se confundindo com o estabelecimento de metas por parte do Judiciário como substituto dos outros dois); (b) o resultado final das politicas em determinado setor; (c) o atendimento aos percentuais constitucionalmente vinculados para a implementação de determinadas políticas, como as de educação, saúde e desenvolvimento da ciência e tecnologia; (d) a concretização das metas fixadas pelo próprio Governo; (e) a aferição da eficiência mínima na utilização dos recursos destinados à implementação das políticas públicas. O uso de tais parâmetros é exemplificado por julgado da Corte Constitucional da África do Sul sobre o direito de moradia, no qual o Governo daquele país foi condenado pela ausência de um programa de moradias apto a concretizar tal direito, assegurado na Constituição respectiva, sem que isto implicasse condenar o Poder Público a ofertar casa de moradia a cada habitante.




A simples descrição dos temas versados em cada capítulo revela, por si só, a indispensabilidade desta obra, sobretudo diante de discursos voltados à deslegitimação do Welfare State. Particularmente importante a passagem em que escande a obra de Sunstein & Holmes a respeito dos custos dos direitos, demonstrando, empiricamente, que um Estado liberal não seria, necessariamente, mais "barato" que um Estado intervencionista (p. 99), desmontando, assim, uma das falácias que tiveram largo curso durante a última década do século XX e a primeira década do século XXI. O exemplo invocado, da Corte Constitucional Sul-Americana, traz um dos mais ricos temas do Direito Econômico, que é justamente a política relativa ao setor habitacional, que no Brasil, no século XX, oscilou sensivelmente entre o assegurar moradia e o estimular a construção civil, e lança luzes sobre a concreção do direito à moradia enquanto direito social acrescido ao rol posto no artigo 6º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 26. Claro que existem pontos de divergência: não me parece, por exemplo, superado o positivismo, propriamente dito, quando se toma a Constituição enquanto parâmetro para solucionar os conflitos de interesse, mesmo em relação a políticas públicas, tendo em vista que a Constituição, seja no que tange a disposições expressas, seja no que tange ao que nela está implícito, e que se infere mediante os princípios, integra o direito positivo: o que, para mim, está superado é o prisma exclusivamente legalista, que no Brasil muitas vezes fez com que o Texto Constitucional fosse desprezado em nome da normatividade de inferior hierarquia. Também não identifico a eficiência com a economicidade, dado que compreendo esta, na mesma linha que o Prof. Washington Peluso Albino de Souza, a partir de Max Weber, enquanto linha de maior vantagem. Mas, de qualquer sorte, a importância do tema e os méritos do trabalho aí estão, para que sejam debatidas as questões nele postas, sem que se possa ficar indiferente a qualquer das passagens nele contidas.

domingo, 16 de agosto de 2009

O CONSTITUCIONALISMO ENTRE A RACIONALIDADE E A BARBÁRIE

KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado – os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.

Um dos mais referidos constitucionalistas da atualidade, o Prof. Martin Kriele, finalmente vem a se tornar acessível a um maior público de língua portuguesa, graças à primorosa tradução que se vem a resenhar.

Pela investigação das origens de conceitos como os de legitimidade, soberania, absolutismo, das raízes do Estado Constitucional, especialmente no que tange à divisão de poderes, aos direitos humanos, às vicissitudes da liberdade individual – tanto política quanto econômica – enquanto valor, à dignidade enquanto mediador das aparentes contradições entre liberdade e igualdade, das origens do parlamentarismo, da revalorização do ideal democrático no século XX, o autor concretiza a premissa anunciada nas páginas 58-9: “o conteúdo normativo das instituições reconhecidamente legítimas é melhor perceptível a partir de sua história, para ser exato, a partir da história da luta ideológica conduzida em torno da fundação e da implementação dessas instituições”. Pleno de atualidade o aviso que formula, outrossim, em relação às críticas às instituições constitucionais: “se o crítico não compreende as razões para essas instituições, então existe o perigo de que ele destrua uma instituição para a qual existam boas razões e que, dessa forma, não proporciona o desenvolvimento mas sim o retrocesso. Este é o destino fatal dos movimentos, os quais avançam com grande convicção, mas diminutos conhecimentos sobre a alteração ou a dissolução das instituições constitucionais, as quais são resultado de lutas seculares e comportam boas razões despercebidas pelos críticos. Essas críticas progressivas simuladas, as quais não se encontram no ápice do problema, residem, normalmente, no âmbito dos sabichões independentes ou dos sabichões sectários. No entanto, ao conseguir desencadear um movimento de massas, elas também podem produzir efeitos políticos” (p. 60). Na discussão dos conceitos em sua formação, verifica a respectiva consistência a partir do estado do conhecimento da época em que formulados, bem como as condições que levaram aos seus questionamentos, especialmente na primeira metade do século XX - o que faz desta obra muito mais do que um simples ensaio de história do constitucionalismo europeu, para permitir, mesmo, a apreensão dos conceitos por este urdidos -. As limitações da compreensão racionalista do Estado são expostas com clareza, compreensão esta que, se não é destruída, vem, contudo, a ser mitigada pela força dos interesses polarizados num dado momento e, por isto mesmo, a preservação da idéia de Estado de Direito tem reforçado o seu papel de preservação da paz e da liberdade humana: “bons e maus argumentos convencem da mesma forma àqueles cujos preconceitos e interesses lhes são proveitosos. [...] Se opiniões políticas remetem, amplamente, de forma ideológica a interesses, essa situação turva o ideal puro da razão, as não o destrói. A natureza intelectual da pessoa, como a natureza em si, é débil, mas não sem força para a renovação e reavivamento. Em razão disso, a verdade possui uma certa capacidade mágica de ‘ser evidente’, o que torna sua força de convencimento independente do interesse. Com isso sua força de convencimento vai além do círculo das pessoas diretamente interessadas na exatidão do argumento. Quando o interesse é muito forte contra o poder de convencimento do argumento, quando, por exemplo, em uma situação político-partidária polarizada não se quer fazer concessões ao opositor, isso produz uma estupidez que bloqueia o efeito convincente da verdade. Através do apelo aos efeitos estúpidos, pode-se enganar todas as pessoas durante um tempo e alguns a longo prazo, mas não todos o tempo todo” (p. 354).

Nunca como nos tempos que ora correm – e não é por menos que o autor ainda elaborou um posfácio tomando em consideração o terrorismo pós-Guerra Fria enquanto desafio a ser enfrentado pelo constitucionalismo, para se evitarem retrocessos – se mostrou tão plena de operacionalidade a distinção platônica entre o conhecimento e a opinião a que, em última análise, se reporta esta obra em todo tempo. A preocupação com a perda de espaço da racionalidade é um dos principais dados que unem o resenhista - confira-se Advocacia Pública e Direito Econômico - o encontro das águas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 206-208 - ao autor ora resenhado.

domingo, 9 de agosto de 2009

POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERESSE TRANSINDIVIDUAL

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas - parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, 238 p.

Muitos dentre os dogmas do constitucionalismo clássico, fortemente influenciados pela doutrina do Direito Administrativo, no sentido da caracterização das questões políticas, por vezes, têm levado os estudiosos a verdadeiro estado de perplexidade, considerando os próprios pressupostos teóricos do Estado de Direito, voltado a reduzir ao máximo o espaço da vontade puramente subjetiva de quem exerce o poder público. Por outro lado, o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais rendeu ensejo a que se viesse a falar na necessidade de uma atuação positiva do Estado, inclusive mediante a formulação de políticas, para o fim de sua implementação. Por esta razão, procurando enfrentar as objeções habituais, o autor, Promotor de Justiça na Comarca de Natal/RN, traz a sua experiência pessoal para o debate acadêmico e centra o debate nos modos como as políticas publicas podem ser controladas, quer no que tange à formulação, quer no que tange à execução, quer no que tange, mesmo, à respectiva transparência. Sem deixar de referir os mecanismos de controle político e social, máxime tendo em vista os progressos da idéia da democracia participativa, aponta para os limites e possibilidades do controle jurisdicional, com especial destaque para a ação civil pública. Refutando o surrado argumento de que os direitos individuais não ultrapassam a noção de direitos de defesa, que apenas exigem a conduta negativa do Estado, bem como o próprio argumento falaz dos custos como obstáculos para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, e delimitando adequadamente os pontos que, efetivamente, traduziriam o domínio reservado dos Poderes providos em caráter eletivo, reforçando sua argumentação com exemplos da própria legislação recente, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus artigos 48 e 49, enfatizando o caráter normativo da Constituição como base de seu raciocínio, trata-se de obra cuja leitura se torna obrigatória, a despeito, evidentemente, de alguns pontos passíveis de debate que não empanam o mérito da obra, como, por exemplo, ao considerar que a possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas seria decorrência da superação do positivismo e não, tão-somente, do legalismo privatista típico da Escola de Exegese, uma vez que em asserções como esta vem revelado um inconsciente compromisso com a tese de que a Constituição não integraria o direito positivo. Mas, como dito, não se tem empanado o mérito da obra e, mais do que isto, vem ela como um auxílio ao bacharel formado para o praxismo burocrático e que, por vezes, ao se deparar com um problema que escapa aos velhos formulários, vem a cair num estado de perplexidade e não consegue descobrir sequer a formulação da questão jurídica pertinente, quanto mais a solução mais adequada. Todos os motivos, pois, para se receber alvissareiramente esta obra e quantas se dediquem a este tema, na constante busca da redução do espaço do arbítrio.
O tema, em relação ao Direito Econômico, mostra-se de grande relevância, considerando tratar este precisamente das medidas de política econômica, tanto no que tange à forma pela qual vêm elas a ser implementadas - medidas provisórias, leis, decretos-leis, decretos - como no que tange aos parâmetros constitucionais para sua implementação e, ainda, os efeitos sobre as situações jurídicas já definidas. Embora se entenda tradicionalmente que se trata de domínio reservado aos Poderes "Políticos", o fato é que tais medidas, para serem implementadas, têm, necessariamente, de vir à luz mediante algum ato jurídico, e, se ao Judiciário é vedado ingressar no mérito das medidas, no sentido de se dizer se elas são "boas" ou "más", o controle da respectiva juridicidade não está a ele interditado. Por outro lado, dentro da linha que adotei em minha tese de doutoramento (Direito Econômico - aplicação e eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001), a partir da doutrina de Washington Peluso Albino de Souza e Ronaldo Cunha Campos, não existe somente a política econômica pública, porquanto o particular também formula e põe em prática medidas como as fusões, incorporações, as joint ventures e tantos outros expedientes para a conquista de mercados e enfrentamentos - e, mesmo, eliminação - da concorrência -, sem contar com o dado de que, no seio da política econômica pública, não são somente o Executivo e o Legislativo que as formulam e executam, porquanto o Judiciário, ao firmar jurisprudência em torno do meio mais adequado para conferir maior celeridade à cobrança de determinados créditos ou mesmo quando adota a política de auto-restrição não deixa de o fazer.
Bem se vê, pois, o quanto se vai reduzindo a aparente estranheza das relações entre o Direito Processual e o Direito Econômico, ainda que não se marche para um Direito Processual Econômico, quando se verifica a recorrência do enfrentamento deste tema.

domingo, 12 de julho de 2009

HERMENÊUTICA, TOLERÂNCIA E ISLAM

FERREIRA, Odim Brandão. Laiaali, ou a universalidade do problema hermenêutico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001.
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A queda das Torres Gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001 provocou, no Mundo Ocidental, entre outras coisas, uma renovação da percepção do Oriente Médio islâmico como o grande inimigo dos avanços que a civilização cristã propiciou à humanidade. Um surto de intolerância começou a se espalhar pelo mundo e o estereótipo do árabe como um ser fanático, incapaz de raciocinar, de meditar, um ser furioso, desejoso de matar o maior número de pessoas possível para conquistar um espaço no Paraíso islâmico veio a ser plantado pelos meios de comunicação. Tem sido necessária uma longa explicação para demonstrar que árabe não é sinônimo de muçulmano, até porque existem muçulmanos que não são árabes, como é o caso dos afegãos, dos armênios, dos iranianos e dos turcos, e existem árabes que não são muçulmanos, como é o caso dos maronitas, nome que se dá aos árabes fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana. Mas ainda resta um outro estereótipo: o pensamento muçulmano teria este caráter de monolitismo? O muçulmano seria um homem que abdicou da capacidade de pensar por si mesmo?
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O livro do Dr. Odim Brandão Ferreira, ilustrado membro do Ministério Público Federal, ajuda a desvanecer tais preconceitos. Escrito antes da ocorrência de tais sucessos, narra, a partir de um manuscrito medieval elaborado na Península Ibérica hoje preservado no Rio de Janeiro, a discussão, perante um Califa, travada entre representantes dos quatro ramos religiosos mais importantes no Islam, acerca dos preceitos do Corão. Desde a linha exegética tradicional,literal, até a busca da chamada lógica do razoável aparecem na discussão que se trava ao longo desta pequena-grande brochura, revelando que o problema da hermenêutica é universal e que, em razão disto mesmo, não se pode tratar as ciências cujo objeto é referente a valores como as ciências naturais, com o que não existe uma resposta certa dada a priori para os problemas jurídicos, assim como no âmbito da religião. A resposta certa será aquela que a autoridade investida de poderes para tanto dirá que é certa e, ainda assim, sujeita a cometer erros. Assim como a controvérsia em matéria religiosa não pode ser apta a levar à conclusão de que quem esposa tal ou qual interpretação seja o que recebeu a iluminação divina e os demais são ímpios, também não se pode dizer que tal ou qual interpretação, no âmbito jurídico, seja a correta. A correção derivará, antes, da unidade de referencial básico e não do resultado que sealcançar.
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E, posta a questão da universalidade do problema hermenêutico pela obra ora resenhada, bem se vê que a questão da tolerância vai muito além de uma atitude mental em relação a tábuas de valores, para adentrar, mesmo, a consideração do outro como integrante do gênero humano. Mais que ubi homo, ibi ius, a questão maior que se coloca é ubi homo, ibi interpretatio. E, destarte, os brocardos avessos à atividade interpretativa (o famoso in claris cessat interpretatio), na realidade, mostram-se, mesmo, avessos à faculdade mais própria do ser humano, que é a de procurar dar um sentido aos dados que se lhe apresentam.

sábado, 9 de maio de 2009

RAZÃO E EMOÇÃO NO OFÍCIO JUDICANTE

NOGUEIRA, Roberto Wanderley. Justiça acidental: nos bastidores do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.
Racionalmente fazendo profissão de fé democrática, a sociedade atomizada em corporativismos, em que as posições de poder acabam se encarnando nos indivíduos que compõem os grupos sociais respectivos e afloram a cada vez que cada um pretenda fazer valer a sua vontade sobre a do seu adversário: tal, em última análise, a idéia-força desta obra, versão comercial de dissertação apresentada à Universidade Federal de Pernambuco. Sujeitos às vicissitudes próprias da condição humana, os juízes, no Brasil, não podem ser considerados exceção a esta regra, de acordo com os dados coligidos pelo autor, Magistrado Federal, que vão desde a atitude do julgador perante os jurisdicionados e os processos até as questões propriamente administrativas e corporativas. Na Teoria geral da política, Norberto Bobbio lembra o postulado da teoria da argumentação segundo o qual "a conduta que precisa ser justificada é aquela não-conforme as regras". Entretanto, numa sociedade em que os valores da cultura escravagista fincaram raízes no inconsciente coletivo, conforme o sujeito que adote a conduta, ser-lhe-á exigida ou não justificativa. Disto, em última análise, é que trata o texto ora resenhado. Não conta o texto, evidentemente, com adesão do ora resenhante em todos os pontos: o efeito vinculante, por exemplo, não me parece uma tentativa de amesquinhar a liberdade de convencimento do julgador acerca dos fatos, mas sim a busca de se assegurar o tratamento igualitário para as questões que sejam iguais, evitando que aspectos contingentes venham a contribuir para a própria insegurança dos cidadãos acerca do que podem e do que não podem fazer, do que devem e do que não devem fazer. Mas, em muito, pode contribuir para o estudo do problema do voluntarismo na aplicação do direito e, portanto, da própria questão da possibilidade do convívio social, com a afirmação das prerrogativas próprias do sujeito de direito a todos os seres humanos.