quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Direito e a astúcia do (ir)racional através dos tempos

MARQUES, Daniela de Freitas. Os espelhos do sistema jurídico-penal - Giordano Bruno, o herege. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2011.


O texto ora comentado, embora focado na área penal, apresenta interesse para todos os ramos do Direito. Isto porque nele a Professora da Universidade Federal de Minas Gerais investiga, a bem de ver, um dos mais trágicos - no sentido etimológico do termo - aspectos do Direito, que é justamente a persistência da obsessão pela identificação e destruição do inimigo enquanto exemplo necessário à manutenção de uma dada ordem de coisas. Para tanto, decidiu examinar o processo mais invocado por quantos pretendam falar no martirológio das Ciências, em luta contra o Obscurantismo: o processo de Giordano Bruno.

A primeira parte da obra versa tanto a biografia do infortunado pensador quanto as circunstâncias pelas quais veio a cair nas mãos do Santo Ofício, bem como a condução do processo, com o emprego - entáo havido por lícito e mesmo recomendável - da tortura e sua execução, pela fogueira, no Campo de Flores, no ano de 1600. Já nesta parte, a autora vai delineando o papel desempenhado pela punição, na visão católica, como o elemento voltado a dissuadir as tentações, marcadas pela antítese do privilegiar a alguns, perseguindo a muitos, racionalmente orientada, contudo, de tal sorte que o papel das autoridades, tanto eclesiástica quanto secular, ficasse bem delineado, visível, e focada precisamente na idéia de infligir o sofrimento para a expiação do pecado, e, na visão luterana e calvinista, voltada epecialmente à expiação pelo trabalho, e ambas as visões tendo como ponto de intersecção o cárcere e a própria discriminação daquele "que não é dos nossos" como inimigo, cujo fundamento pode, exteriormente, mudar, mas não deixa de estar nas raízes de todos os sectarismos ao longo da história, inclusive dos séculos XX e XXI. Refere a origem da massa miserável que afluiu às cidades inglesas nos séculos XV e XVI, formando as vagas de desocupados e mendigos, expulsa das terras que deram lugar às pastagens, e que foi tratada como se a sua situação fosse decorrente exclusivamente de uma disposição voluntária viciosa. A ênfase na expiação pelo trabalho, no contexto protestante, não exclui, necessariamente, a pena de morte, mas somente em decorrência da rebelião contra a disciplina imposta pela própria condição da condenação original do homem a ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Trabalha o desenvolvimento da Inquisição na Espanha, em Portugal e na Itália, de tal sorte que o foco das perseguições se colocaria tanto nos diferentes - judeus, mouriscos, cristãos-novos - quanto nos dissidentes - hereges -, manifestando - especialmente depois da descoberta do Novo Mundo, para o qual o degredo implicava a perda dos referenciais para o condenado - a lógica de caráter estritamente binário, com as suas oposições, e a punição expressa em corpos dilacerados, com que a coerção se faz visível ao público, o horror enquanto o repelente, conduzindo, inclusive, ao desenvolvimento de estudos que ligavam as características físicas a dados psicológicos e mesmo mentais, que estariam na raiz tanto da fisiognomia de Lavater quanto na frenologia de Gall, na criminologia lombrosiana (que Joseph Conrad ironizaria em seu romance O agente secreto) e mesmo nas teorias eugênicas. O processo de Giordano Bruno é contextualizado, assim, como a perseguição ao dissidente, por suas idéias e ao medo da independência, porque fora do oficialismo eclesial, somente existiria o pecado e, pois, a inimizade a Deus. O medo ao pecado seria a base para a perseguição à heresia, seja no lado católico, seja no lado protestante (a autora exemplifica, aqui, com Miguel Servet, o descobridor da circulação pulmonar, levado à fogueira em pleno calvinismo). A própria idéia de subversão como inimizade a ser reprimida, como o espelho da ordem que se quer manter, a autora refere que, a despeito das comparações e diferenciações que se possam fazer entre a ilicitude herética e a ilicitude jurídica, vem atravessando os tempos, como se pode verificar nos regimes castrenses instaurados no século XX na América Latina, bem como na "caça às bruxas" do período do macartismo norte-americano, dando, assim, a figura do inimigo como essencial ao imaginário da humanidade. A partir daí, ingressa no debate do conceito de "pecado", enquanto pensamento e ação que traduz uma rebelião contra Deus, rompendo a Aliança com Este e com a sociedade dos Seus fiéis, enquanto opção realizada contra a Divindade, e vem a discutir, então, as próprias dificuldades da dogmática penal na própria escansão dos elementos do dolo e da culpa, os problemas da concepção funcionalista de um Claus Roxin, bem como a própria questão da intenção como qualificadora do pecado, haurida em Abelardo e em Pedro Lombardo, e que vem a influenciar profundamente o pensamento jurídico-penal herdeiro da tradição judaico-cristã, inclusive na diferenciação entre o criminoso e o herói. O pecado e o crime vão correndo em paralelo, assim, na visão do final do século XVI, como fundamentos para se exercer, sobre o indivíduo, o controle do pensamento e da conduta. Discute o crime e a heresia como manifestações da própria idéia do Mal, enquanto reflexo ou espelho do Bem, estabelecendo as relações entre duas importantes obras de Bodin, a Demonomania e os Seis livros da República, enquanto confluência do absolutismo e do poder de punir, fundamentados, ambos, na autoridade Divina, embora estabelecidas diferenciações entre o criminoso comum - que, mesmo sendo um regicida em potencial, poderia haver a remissão sem que a sua consciência fosse renegada, o que seria impossível para com o herege, e é a partir de tais construções, ainda que superadas com a vitória dos ideais iluministas, que se abre o caminho para a concepção do crime como uma lesão não somente à vítima concreta, mas à própria saúde do corpo estatal, o Direito enquanto expressão do sagrado, da conservação, da ordem, o crime enquanto expressão do profano, do anárquico, do inseguro, a pena de morte enquanto sacrifício do delinqüente ao restabelecimento da vontade de Deus, o controle dos seres humanos, a identificação do herege como elemento fundamental para assegurar um motivo que aglutine a sociedade em torno do Estado e para que tanto as relações políticas quanto as relações de trabalho sejam aceitas como impostas pela própria natureza das coisas: concebe-se, pois, naquele contexto, a lei mais severa como a melhor, porque inspira o medo a quem não se mostre beneficiário da ordem estabelecida. Vem a caracterizar-se a heresia muito mais por se ser refratário à autoridade, ao medo que esta inspira do que à verdade, e o discurso sobre ela vem a se reproduzir na visão funcionalista do crime, fundada em uma lógica binária dos "agentes do Bem" contra os "agentes do Mal", sendo o Bem manifestado de uma, e somente uma, forma, enquanto o Mal é representado pela multiplicidade, tal qual a hidra de muitas cabeças; a onipresença do Mal no período da Contra-Reforma - contexto em que se deu o processo de Giordano Bruno - vem a ser sucedida pela mentalidade da onipresença do Império do Crime, no âmbito interno, e do Terror, no âmbito externo, no contexto em que se consideraram vitoriosos os ideais do Iluminismo. A partir daí, vão sendo examinadas as peripécias das heresias que pontilharam a história do Cristianismo, bem como o papel aparentemente paradoxal por elas desempenhado no sentido da consolidação do dogma e, no momento em que o Cristianismo se torna a religião oficial, no sentido da afirmação da própria autoridade temporal. Daí por que a caracterização da heresia vem a se tornar algo decorrente do temor de abalar as certezas da autoridade, com o que se vem a entender por que não é difícil imputar tal acusação a quem quer que seja, quer porque não aceite o cânone estabelecido sobre a Santíssima Trindade e a natureza do Cristo (como as heresias da Antiguidade), quer porque discuta o papel da Igreja e dos sacramentos (com as heresias medievais), e vem o conceito de heresia a abranger não apenas a discordância como a impossibilidade de se fazer entender, não apenas a rebeldia, em todas as suas manifestações, como também a própria posse de conhecimentos além dos alcançados pelas autoridades eclesiásticas, qual ocorreu tanto com Damião de Góis em Portugal quanto com Giordano Bruno. A idéia de uma auto-evidência dos direitos do homem somente se vem a tornar possível a partir do momento em que se vem a tratar o egoísmo enquanto motor do ser humano em busca do bem-estar, ou seja, a partir do momento em que o afã de lucro vem a ser considerado como necessário à ampliação do círculo do poder, de tal sorte que o corpo do indivíduo passa a ser visto como sagrado enquanto propriedade sua, embora tal egoísmo deva ser atenuado pela necessidade de reconhecimento desta sacralidade por parte do Outro. E o Outro, por seu turno, para se sentir estimulado ao reconhecimento, passa a ter o direito de ser reconhecido. E, por conta disto, ter-se-ia principiado o movimento de abandono da punição corporal, embora os acontecimentos desencadeados pelo atentado de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center tenha reavivado temas como a aceitabilidade da tortura como um mal menor diante da ameaça indiscriminada do terrorismo e, mesmo, a da redução das pessoas ao papel que desempenham na sociedade para que se tornem ou não os destinatários da força repressiva do Estado. A aversão à própria idéia da Multiplicidade, que somente se admitiria se fosse o estabelecimento de um bloco de idéias conformes e não várias cabeças como a hidra, também se viria a projetar na aventura européia no Novo Mundo, em que o combate da fé se traduzia pela evangelização dos gentios, que deveriam, não obstante, ser destinados também à escravização e, mesmo, à destruição - o megalomaníaco Kurtz de Coração das trevas, de Joseph Conrad, preconiza que se "exterminem todos os brutos!" -, para que o terror lhes infunda a disposição para aceitar tanto a autoridade de Deus quanto a autoridade do Rei. O degredo para o Novo Mundo, enquanto perda de referenciais, viria a ser uma das penas destinadas a hereges, feiticeiros, marranos, mouriscos, sodomitas, enfim, marginais de todos os tipos, valeria, praticamente, por uma proscrição. O Novo Mundo, para o europeu, seria o equivalente temporal do Purgatório. De outra parte, o papel da Universidade enquanto templo da ortodoxia doutrinária também viria como reforço ideológico da necessidade de se manter a constante perseguição ao herege, visto como um inimigo em guerra sem quartel. A partir daí, também, a autora empreende o estudo da função desempenhada pelo Index Librorum Prohibitorum, no que tange às possibilidades infinitas que as obras encerram, de superar não só os limites da vida humana - e, por isto mesmo, as obras de Giordano Bruno foram também levadas à fogueira -, como também de perpetuar a própria idéia da Multiplicidade, tão identificada ao Mal. Daí por que a idéia da Árvore do Conhecimento e da Árvore da Vida, presente tanto no pensamento hebreu-cabalístico (estudado a fundo por Raimundo Lúlio e por Giordano Bruno) quanto na mitologia nórdica, vem a se confrontar diretamente com o pensamento único, a Verdade única, a visão de que fora da ortodoxia não existe salvação, tão combatida pelo pensador nolano, para quem na diversidade e na infinidade estão, mesmo, as manifestações do Uno, as manifestações, pois, de Deus. Passa a examinar os fundamentos para a instituição do Santo Ofício, indicando o papel desempenhado pela forma para a caracterização do eterno sofrimento dos hereges, iniciado pela queima em vida e prolongado após a morte no Inferno, bem como os paradoxos das formas jurídicas, presentes inclusive nos tempos do constitucionalismo, da afirmação dos direitos humanos, em que até mesmo o conceito de pessoa humana vem a permanecer indefinido e cada qual se quer um absoluto. Diferencia as Inquisições portuguesa, espanhola e romana, quanto às regras de competência e aos procedimentos. Se, a partir do final do século XVII, a tese do "não conhecer o que está no alto" vem a ser substituída pelo "ousar saber", os segredos da natureza abrem espaço a que se venham a desvelar os segredos de Deus e os segredos do Império; o sistema jurídico, enquanto texto a ser interpretado, a ser objeto da ciência de Hermes - paradoxalmente, o patrono dos ladrões, o próprio exemplo clássico da negação do Direito -, vem a condicionar a manipulação de tais segredos, seja ao estabelecer os modos como se disporá da natureza, conservando-a, alterando-a ou destruindo-a, como se separarão as esferas do laico e do sagrado, como se exercerá o poder do Estado. Texto a ser interpretado por um intérprete autorizado, o magister. O primeiro delito será sempre a tentativa de tomar o lugar de Deus, como o teriam feito antes Cronos em relação a Urano e Zeus em relação a Cronos e o tentou fazer o próprio Adão em relação a Iahweh. Mesmo que, progressivamente, o mundo ocidental se tenha feito menos mágico e mais sério, não há como negar que conceitos básicos como culpa, livre-arbítrio, expiação se encontrariam no pensamento teológico católico, substituindo a vingança privada pela concentração do poder de coação na autoridade constituída e que, a partir da noção do herege como o inimigo da fé, vem a ser construída a noção do criminoso como o inimigo da sociedade, de tal sorte que se pode dizer que o herege se vem a colocar como o elemento humano de transição entre o poder espiritual e o poder temporal, agente do demônio indigno de qualquer piedade. A identificação do herege e do criminoso têm em comum a referência a uma autoridade estabelecida, a uma autoridade que se tem como a portadora da Verdade revelada - o Verbo que se impõe, ainda que sob a forma de texto legislativo -. Em seguida, realiza-se o cotejo entre as obras de Giordano Bruno e seu contemporâneo Francisco Suárez. Este, embora jesuíta, abriria caminho para a laicização do Direito fora do próprio contexto da Reforma protestante, ao apontar para a impossibilidade de a lei humana - que ele distinguia da lei natural - disciplinar atos puramente internos, veio a abrir caminho para a distinção entre o Direito e a Moral, considerada a grande contribuição do iluminismo para a Filosofia e a Ciência do Direito, bem como ao tratar o poder político uma outorga de Deus ao povo, para que este o outorgasse ao governante, marcando novo passo na construção do contratualismo. Giordano, sem ter sido teólogo ou jurista, reditando conceitos platônicos acerca do mundo, da alma e da escolha individual desta em relação ao seu destino, atingiria os fundamentos do dogma, do mesmo modo que as instituições humanas, sem o seu sistema punitivo e sua constante justificação e legitimação pelos sábios competentes, ruiriam, de tal sorte que se vem a realizar, no âmbito do funcionalismo penal que viceja, o próprio retorno à pena enquanto vingança, dado que mesmo quando não haja a esperança de reeducação do condenado, este vem a sofrer as desagradáveis conseqüências de sua conduta. A partir daí, entende-se por que, a despeito de provocar o riso do adulto em face dos "desatinos infantis" a perseguição a bruxas e hereges durante a Idade Moderna, a mesma disposição que em relação à necessidade de uma punição atroz aos que se encontravam na conspiração contra Deus se apresente, nos tempos atuais, quanto aos clamores de penas mais duras e um sistema penal menos benéfico a quem se mostre merecedor das reprovações do Judiciário e, principalmente, da mídia, apontado como um perigo para a própria sobrevivência da humanidade. Não é nem tanto a conduta em si que será objeto de punição, mas sim o dado de ela haver sido praticada em tais ou quais circunstâncias, de nada valendo um arrependimento sincero, quando o que interessa é a recomposição da ordem, abalada pelo menor desvio, qual ocorrido com Actéon, caçador que, ao divisar, por acidente, a casta Deusa da Caça no banho, foi por esta transformado em cervo e somente se contentou a Deusa depois que os próprios cães que o acompanhavam à caçada o despedaçaram. Daí a exclamação que parece resumir toda a angústia que inspira a obra resenhada: "não percebem as pessoas? Os direitos fundamentais nascem no Estado absolutista - ou seja, no Estado e na Igreja que assolavam as mentes, dominavam os espíritos e supliciavam os corpos. Direito é Maya. Direito é ilusão. O suicídio não é proibido, mas a vida é um bem humano indisponível. O patrimônio é bem jurídico disponível, mas o crime de furto é crime de ação penal pública incondicionada. O consentimentó é irrelevante em determinados crimes, cuja tutela são valores humanos - cambiáveis como vôos de pássaros ou nuvens no céu. Há a liberdade de ensino, mas os docentes estão presos ao programa tradicional e à leitura de textos fundamentais. Há a liberdade de convicção, mas os símbolos religiosos estão presentes nos espaços públicos e, no Estado laico, proíbe-se o uso do chador. Proíbe-se a clonagem humana, e a proibição apazigua as consciências. Razões de Política Criminal, razões de Estado, razoabilidade e proporcionalidade nas decisões tomadas., dirão uns e outros. Mentira! Grita o inconformado espírito" (p. 267). Na raiz da heresia, estaria o pecado original, a soberba, que, entretanto, não deixaria de acometer aos próprios juízes, auto-investidos na condição de gládios de Deus sobre a terra (muito pode aprender o jurista com a leitura do conto Gladius Dei, de Thomas Mann), e a suprema ironia se apresenta a partir do dato de que são representantes de uma cultura toda fundada no enaltecimento de um personagem condenado como criminoso - o próprio Jesus de Nazaré -. A virtude, quando não dissimulada, vem a ser perseguida como negação do maior fundamento para a presença do aparelho coercitivo: a idéia de que ela seria inatingível, não fosse o temor da danação, tanto temporal quanto Eterna. Daí por que, para ser virtuosa, realmente, tem de ser discreta, silenciosa, não deixar rastros, o pensamento individual, independente, somente pode ser expresso a partir da identificação de sua conformidade a determinado padrão coletivo de respeitabilidade. A alegada proscrição da mentira e do engodo vem a ser confrontada com o emprego constante das ficções pelo Direito, cuja história se vem a confundir, mesmo, com a da justificação do Poder. A idéia de um corpo universal, representado no Estado e pela Igreja, com poderes sobre o corpo particular, representado pelo súdito e pelo fiel, conduz também ao debate acerca do que se entenda como bens disponíveis e indisponíveis, sobretudo diante da necessidade de que as relações de poder se instaurem, seja no âmbito político, seja no âmbito religioso, seja no âmbito econômico. O universal com disposição sobre o particular, estabelecendo a medida da forma como determinante da essência de atos, fatos e pessoas, o herege, o incréu, o outro, enfim, como o "algo" a ser proscrito, como todas as manifestações subversivas, o riso - o declínio do Bobo da Corte com o início da Idade Moderna é um exemplo claro -.Daí se vem a entender por que a obsessão pela "correção" e pelo puritanismo se disseminam, e o desejo da punição exemplar de tudo o que seja desviante se apodera dos corações, embora seja justamente a partir dos desvios que todo o pensamento jurídico, pretensamente sério, vem a avançar - ele avança a partir da sua negação, do mesmo modo que a teologia avança na busca de argumentos para reforçar a fé pela negação do herege - e o porquê de serem tão próximas as representações de despersonalização dos hereges e dos crimnosos.



Como se pode ver, trata-se de obra fundamental, justamente neste período em que surgem, pulando daqui e dali, os novidadeiros que julgam estarem a corrigir soluções que lhes parecem excessivamente brandas ou permissivas na legislação - especialmente quando o sujeito passível de sofrer a restrição não é "um dos nossos", ao contrário do que ocorre com "os nossos", que "deveriam ser libérrimos", em relação aos quais qualquer exigência do cumprimento de deveres legais soa como uma opressão -. A presença do dogma, com toda a carga de impositividade e limitação que a palavra contém, no corpo dos conceitos jurídicos e, principalmente, no Direito Penal, é dissecada e apontada a cada página. O processo de Giordano Bruno, além da sua significação histórica, assume, no que interessa aos juristas, uma significação metafórica. Simultaneamente, fato histórico, problema jurídico (os referenciais axiológicos que presidiram cada ato do processo) e metáfora (dos problemas que ainda hoje vêm a acometer quantos têm de resolver questões jurídicas, para além dos respectivos preconceitos e predisposições). E o autor de Interpretação jurídica e estereótipos não poderia deixar de referir encomiasticamente esta obra. Não somente, como antes dito, aos penalistas, embora a autora concentre suas pesquisas nesta área do Direito: a razão de ser do direito ao trabalho, vista pelos economistas da Escola de Chicago como uma simples manifestação de demagogia para negar a sempiterna verdade de que o desemprego é sempre fruto de uma decisão livre e viciosa, vem estampada, inclusive, pela experiência dos tempos de Henrique VIII, mostrando que a exclusão de grandes massas da própria condição de sujeitos de direitos e deveres não teve o efeito esperado de tornar mais segura a situação dos beneficiários do sistema, antes veio a informar aos excluídos da existência de uma guerra a ser sustentada. A própria questão do pensamento único a que se referiu Margareth Thatcher, ao ser ofertado o fundamento ideológico para as políticas denominadas "neoliberais" que se levaram a cabo, mediante o desmonte do aparato constitucional do Estado Social, no correr da década de 90 do século XX e que tiveram a sua exaustão assinalada pela crise de 2008. Do mesmo modo que a eliminação dos hereges não eliminou as heresias, somente fez com que se modificassem as formas de questionar a própria autoridade - se, num momento, são os albigenses, no outro, são os luteranos -. E emerge, aqui, um material extraordinário para quantos se voltem com seriedade à temática dos Direitos Humanos. Alguém, provavelmente, diria que a autora, ao invés de criticar os conceitos construídos ao longo de séculos e, mesmo, de milênios para assegurar a sobrevivência da sociedade, deveria, caso os entendesse - com mostra que entende - inadequados para as finaldiades proclamadas, prescrever a terapêutica. Aqui, responder-se-ia que prescrever terapêutica sem o diagnóstico adequado seria temeridade, seria, mesmo, o caminho para agravar a situação do doente, ao invés de o tratar. A ficção pode ser útil, muitas vezes, mas quem a emprega, independentemente da sua utilidade, deve estar ciente de que está lidando com a ficção.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O planejamento econômico para além do emocionalismo

SCOTT, Paulo Henrique da Rocha. Direito Constitucional Econômico - Estado e normalização da economia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000.


Poucos segmentos constitucionais são examinados com tão pouca serenidade, com tanto sectarismo, opondo "populistas" a "elitistas", "estatizantes" a "privatizadores", quanto a Constituição Econômica. Por esta razão, quando vêm a lume obras como esta, do Prof. Paulo Henrique Rocha Scott - versão comercial da dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul -, fugindo à militância e buscando, antes, compreender a opção feita pelo constituinte, ao definir as funções do Estado na economia e, especificamente, o planejamento, quantos sejam preocupados com a produção científica no Direito têm todos os motivos para receberem uma lufada de esperança.
O texto principia indicando o campo do ser - os dados da economia - que será tomado como conteúdo da norma jurídica, ao discutir os conceitos de "atividade econômica", "ordem econômica" e "política econômica", para ingressar, então, nas cosmovisões que inspiram a elaboração dos Textos Constitucionais - a ideologia constitucionalmente adotada -, identificando o modo como o econômico vem a comparecer nas Constituições brasileiras, até chegar à vigente Constituição de 1988, centrando suas atenções no artigo 174, no qual são enumeradas as funções econômicas do Estado, destacando dentre elas o planejamento enquanto procedimento de racionalização da economia, no sentido de promover a redução - sem eliminar, porquanto tal desiderato se lhe afigura utópico, com base nas experiências planificadoras em contextos estranhos ao capitalismo embasado fundamentalmente na iniciativa privada - da álea no âmbito econômico, aclarando, ainda, o aspecto janiforme que assume o plano, determinante para o Poder Publico, indicativo para o setor privado. Segue indicando a articulação entre o planejamento e as demais funções do Estado, quer balizando a normatização e a regulação da economia, quer ofertando critérios para a fiscalização tanto da atividade do particular quanto a atuação do Poder Público, quer pela presença do incentivo enquanto meio de engajar o particular na execução de políticas definidas no plano. Vem, afinal, a enfatizar a racionalidade como elemento nuclear da função planejadora, transcendendo a racionalidade econômica do liberalismo, tendo como critérios para sua aferição tanto os princípios e fundamentos da ordem econômica quanto os princípios e objetivos fundamentais da República, e versa o problema da legitimidade do plano enquanto expressão desta mesma racionalidade, no sentido de que, ao mesmo tempo que tem de inspirar a confiança dos agentes que na sua execução se vão engajar, não pode vir a ser convertido em meio de privatização do espaço público, em que toda a coletividade se venha a submeter à pura conveniência dos titulares do poder econômico.
A simples descrição, pois, do conteúdo é suficiente para atestar o valor da obra, elaborada fora do compromisso com teses defendidas em juízo ou com a militância político-partidária, buscando, antes e acima de tudo, o aclaramento dos conceitos mediante os quais oferece o constituinte os elementos para a solução dos conflitos de interesses que se manifestam na sociedade a que se dirige. Faço uma forte ressalva ao título, pois não se me afigura correto falar em um Direito Constitucional Econômico: o que se tem, mesmo, é o tratamento do Direito Econômico em uma das suas fontes, a mais importante no âmbito do Direito interno, que é a Constituição. Mas, independente disto, é uma obra de grandes méritos, que enaltece tanto o autor como a Universidade que lhe veio a outorgar o título.

sábado, 10 de julho de 2010

O AUSPICIOSO RETORNO DO DICIONÁRIO DA FUNDAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITO ECONÔMICO

FUNDAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITO ECONÔMICO. Novo dicionário de Direito Econômico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010, 493 p.
Após seu esgotamento em 1972, o Dicionário da Fundação Brasileira de Direito Econômico tinha a sua reedição aguardada, com as contribuições que grandes nomes do pensamento jurídico brasileiro, alguns não mais entre nós, haviam ofertado no esclarecimento dos conceitos a ela referentes. Iniciados os trabalhos de coleção dos verbetes de atualização e de articulação com os já existentes em 1987, vem, finalmente, a lume esta edição, com o acréscimo de nove autores aos vinte e três originários. Ao lado de textos com valor intemporal, como os referentes ao conceito de Direito Econômico, da autoria do Prof. Washington Peluso Albino de Souza, ou de Estruturalismo, da autoria do saudoso Irmão Anchises Bretas, aparecem verbetes voltados aos conceitos que têm sido agitados nos últimos tempos, como os referentes à Lex mercatoria, de autoria do Dr. Paulo Peretti Torelly, e às Reformas globalizantes, de autoria do saudoso Dr. Luiz Vicente de Vargas Pinto. A pluralidade de visões marcando o exame de cada um dos temas, de tal sorte que, por vezes, mais de um autor redige um verbete sobre ele, faz com que, mesmo não sendo tão completa como se desejaria, esta obra venha a prestar um serviço a quantos pretendam saber quais as questões fundamentais com que lida o tratamento jurídico da política econômica.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Lei de Falências e a busca da eficiência

BATTELLO, Sílvio Javier [org.]. Principais controvérsias na nova Lei de Falências. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008.

Esta obra, produto das discussões na Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio grande do Sul, tem como ponto de intersecção entre seus textos uma tentativa levada a cabo no âmbito do Common Law no sentido de tomar a eficiência econômica como parâmetro principal na solução dos problemas jurídicos, debruçando-se especificamente sobre a nova disciplina da crise econômico-financeira das empresas.

O primeiro capítulo, assinado por Elenise Peruzzo dos Santos, a partir da retomada do debate em torno do valor dos Princípios normativo, discute a dimensão que guardou a nova Lei Falimentar fidelidade àqueles já tradicionais, como a par conditio creditorum (com suas derrogações parciais com o estabelecimento das preferências, com ênfase especial nas disposições protetivas do trabalhador), a celeridade como fator inibidor dos "custos sociais" e eliminador de incertezas que comprometem o cálculo do resultado das Transações, a publicidade, como condição para uma concreção dos anteriores, em que albergou e novos, como uma empresa da preservação, a respectiva viabilidade e a maximização do valor dos bens do falido, concluindo pela necessidade de ponderação entre os tradicionais e os novéis princípios, de tal sorte que o crédito, em sua função multiplicadora, venha a ser protegido e se impeça o perecimento de empresas viáveis.

O segundo capítulo, de autoria de Stefania Eugênia Baricchello, a partir do referencial da Análise Econômica do Direito, procura identificar os aspectos em que a eficiência econômica seria promovida pela legislação falimentar, tratando a esta como instrumento de “regulação indireta” dos mercados, por não procurar organizar ou disciplinar estes, mas disciplinar procedimentos para “intervir no seu funcionamento espontâneo”, apontando para o seu papel no estabelecimento de uma cooperação entre os credores das diferentes classes, aumentando as expectativas de retorno do capital investido e instaurando um ambiente de negócios sadio, buscando maior segurança nas negociações e a valorização dos ativos, principalmente pela criação de mecanismos como a recuperação extrajudicial, como meio mais flexível e menos custoso para remediar as situações de desequilíbrio, a outorga à recuperação judicial de maior abrangência quanto ao universo de credores e de maior margem de negociação que as existentes na concordata do regime do Decreto-lei 7.661, de 1945, a posição de preeminência dada aos créditos com garantia em face dos créditos fiscais e dos trabalhistas superiores a 150 salários mínimos, de tal sorte que se fortalecem os contratos firmados antes da configuração da insolvência.

O terceiro capítulo, elaborado por Hernán Demartini, debate a natureza jurídica da recuperação extrajudicial, enquanto inovação da Lei 11,101, de 2005, buscando retirar ao máximo do Estado uma solução empresarial da crise, para se a outorgar, aos agentes do mercado, discutindo, especificamente, os seus requisitos, traduzindo ato negocial plurilateral, sujeito, contudo, a condição suspensiva em relação a sua eficácia, qual seja, a homologação judicial.

O quarto capítulo coube a Elenise Peruzzo dos Santos, e versa sobre a situação das instituições finnceiras na aplicação da nova lei, partindo, em primeiro lugar, da identificação das atividades próprias destas instituições, com ênfase especial para a atividade de fomento da economia como um todo, mediante a celebração de contratos que são delas privativos, como os financiamentos vinculados às cédulas de crédito rural, industrial e comercial, o factoring, o desconto, o adiantamento sobre contrato de câmbio, passando para o papel do crédito na capacidade de a empresa sobreviver no mercado e da abertura significativa para a recuperação das empresas em crise mediante a possibilidade de concessão de financiamentos, quando estas se mostrassem viáveis, por decorrência, sobretudo, da alteração da ordem de preferência na satisfação dos créditos, reduzindo o risco de inadimplência e, conseqüentemente, a taxa de juros.

O quinto capítulo, da lavra de Márcia Sílvia Stanton, discute a exigibilidade da certidão negativa ou positiva com efeitos de negativa como condição para a homologação da recuperação judicial, como instrumento que, a seu ver, seria incompatível com a própria intenção da lei, que pospôs o crédito fiscal aos créditos com garantia, para permitir a mais ágil recuperação das empresas que se mostrassem viáveis, permitindo-lhes o atendimento de sua função social, argumentando, ainda, com os inúmeros privilégios processuais do Fisco na perseguição ao seu crédito, tratando como contrária tal exigência - que se coloca para o atendimento em sentido positivo do pedido de recuperação judicial - aos princípios de razoabilidade e proporcionalidade, quando haja forma menos gravosa de atender aos interesses do Fisco à disposição das partes.

O sexto capítulo incumbiu a Ney Caminha Monteiro Júnior, e nele é examinado o papel do administrador judicial, enquanto amálgama das antigas figuras do síndico e do comissário, que deverá auxiliar o julgador na condução dos processos regulados na nova lei falimentar, onde, para a aferição da capacidade de administrar a empresa em crise e permitir a realização plena do ativo, a experiência e a idoneidade de quem desempenhar tal múnus, fiscalizando o processo, a transparência e a comunicação entre os sujeitos que nele comparecem, serão fundamentais.

O sétimo capítulo, da lavra de Lisandra Coletti Lisboa, examina a configuração dos atos falenciais na nova lei concursal, salientando, sob o aspecto processual, a ampliação das hipóteses em que admissível o depósito elisivo em face da disciplina anterior, as situações em que, mercê do descumprimento do plano de recuperação judicial (cujos requisitos, possibilidades e limites são detalhadamente escandidos), além dos atos falenciais que já eram previstos no revogado Decreto-lei 7.661, de 1945.

O oitavo capítulo, de autoria do organizador da coletânea, Sílvio Javier Battello, volta-se ao exame das falências que envolvem mais de um ordenamento jurídico, trabalhando desde a questão da competência para deflagrá-las, até os poderes de credores e síndicos estrangeiros, inclusive no que tange à habilitação dos créditos, apontando, ainda, para os problemas decorrentes da necessidade de homologação dos atos decisórios perante os Tribunais Superiores, indicando, numa realidade em que os ordenamentos se entre comunicam, a imposição de que se simplifique a recepção dos atos que reconhecem a presença da situação falimentar como um fator de segurança do crédito.

Como se vê, a tônica da coletânea é a compatibilização entre o procedimento concursal e a eficiência econômica, que, por mais que nos pareça algo restrito, tem a grande virtude de demonstrar a insuficiência do enfoque estritamente privatista, do castigo à inadimplência, que muitas vezes preside o exame da matéria falimentar e, de outra parte, vem a reforçar a tese da íntima relação entre a matéria processual e a política econômica, ainda que não se chegue à configuração de um Direito Processual Econômico. Tendo em vista o tema da minha tese de doutoramento, esta comprovação empírica não poderia deixar de ser recebida com alvíssaras pelo signatário da presente resenha.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Políticas públicas, reserva do possível e Constituição

COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e controle de juridicidade - vinculação às normas constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010.




A obra que ora se resenha tem origem na dissertação de mestrado defendida pela autora, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e vem a trazer uma contribuição ao debate de vários temas polêmicos que se vão descortinando na paisagem que circunda o caminho por ela trilhado, em relação a esta preocupação dos limites e possibilidades da concreção do Estado de Direito, tal como desenhado pelos Textos Constitucionais contemporâneos. O tema escolhido me é dos mais caros, tendo em vista que foi exatamente sobre ele que elaborei minha tese de doutoramento.




O texto principia por inserir a preocupação com o controle das políticas públicas no contexto do denominado "neoconstitucionalismo", que, a partir de "elementos metodológico-formais" - normatividade, superioridade e centralidade da Constituição no ordenamento jurídico como um todo - e materiais - "incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais" e o acolhimento nestes de proposições aparentemente conflitivas -, buscaria ofertar uma resposta às experiências totalitárias e autoritárias do século XX, refletindo sobre o papel da Constituição no sistema do direito positivo - sobre o qual se digladiam as vertentes substancialista e procedimentalista -, manifestando a preocupação com a sua efetividade. Destaca a contribuição de Konrad Hesse, comparando com o pensamento de Hermann Heller, no esforço de aproximação da Constituição jurídica da "Constituição real"; a ampliação da jurisdição constitucional como conseqüência da imunização dos direitos fundamentais às contingências das maiorias nos Parlamentos; o desenvolvimento de novos métodos de hermenêutica voltando-se sobretudo às disposições concernentes a prestações positivas e aos conflitos aparentes entre princípios ou entre regras. É a partir de tais premissas que se balizarão a formulação e a execução de políticas públicas.




Tomando os direitos fundamentais como fim último das políticas públicas, refere a presença, ao lado dos direitos civis e políticos, dos direitos sociais (englobando neste conceito tanto os direitos sociais stricto sensu, como os direitos econômicos e culturais), expondo, em relação a estes últimos, o problema da respectiva eficácia muitas vezes depender de uma ação estatal que demande toda a criação de uma estrutura burocrática e de recursos financeiros, de tal sorte que se relativizaria, embora não ao ponto de se conduzir, necessariamente, tal situação à sua inexigibilidade.




Em seguida, versa o despertar do interesse do pensamento jurídico pela temática das políticas públicas a partir do momento em que o ideal da "Constituição sintética" típico do século XIX vem a ser substituído pela inserção, no Texto Máximo, da previsão de fins a serem atingidos pelos Poderes constituídos, de tal sorte que amplos setores que antes só poderiam ter contato com a ordem jurídica na condição de infratores venham a ser alcançados na condição de sujeitos de direito. Tendo presente a inexistência de direitos sem custos - ainda que se trate dos clássicos "direitos de liberdade" -, aponta para o dado de que, a despeito da ampla liberdade assegurada ao poder constituído para a alocação dos recursos, escassos para o atendimento de todas as demandas que se fazem ao Poder Público, existiria um limitador para além do qual não poderia ir a amplitude decisória, que seria justamente a realização da dignidade da pessoa humana, entendida esta na acepção kantiana.




A vinculação das políticas públicas à realização do projeto posto no Texto Constitucional parte do pressuposto da adoção, em maior ou menor grau, da tese do caráter dirigente que tal Texto assume nos tempos atuais, com a redução, no seio do constitucionalismo contemporâneo, da margem de discricionariedade dos Poderes constituídos na definição de objetivos políticos, postos os fins e, muitas vezes, os próprios meios, em caráter permanente, na Constituição. Embora ainda presente uma certa liberdade de conformação, para que as instâncias democráticas, ao se alternarem no poder, implementem os programas pelos quais foram investidos, e não se invista o Judiciário na condição de substituto das instâncias eletivas, a verificação da ultrapassagem dos balizamentos postos constitucionalmente, o descumprimento efetivo da Constituição pelas omissões, o atendimento das escolhas já feitas pelo Legislativo e pelo Executivo passa a ser objeto do controle jurisdicional, de tal sorte que são fixados os seguintes objetos sobre os quais este vem a incidir: (a) controle do estabelecimento de metas pelo Poder Executivo e Legislativo (não se confundindo com o estabelecimento de metas por parte do Judiciário como substituto dos outros dois); (b) o resultado final das politicas em determinado setor; (c) o atendimento aos percentuais constitucionalmente vinculados para a implementação de determinadas políticas, como as de educação, saúde e desenvolvimento da ciência e tecnologia; (d) a concretização das metas fixadas pelo próprio Governo; (e) a aferição da eficiência mínima na utilização dos recursos destinados à implementação das políticas públicas. O uso de tais parâmetros é exemplificado por julgado da Corte Constitucional da África do Sul sobre o direito de moradia, no qual o Governo daquele país foi condenado pela ausência de um programa de moradias apto a concretizar tal direito, assegurado na Constituição respectiva, sem que isto implicasse condenar o Poder Público a ofertar casa de moradia a cada habitante.




A simples descrição dos temas versados em cada capítulo revela, por si só, a indispensabilidade desta obra, sobretudo diante de discursos voltados à deslegitimação do Welfare State. Particularmente importante a passagem em que escande a obra de Sunstein & Holmes a respeito dos custos dos direitos, demonstrando, empiricamente, que um Estado liberal não seria, necessariamente, mais "barato" que um Estado intervencionista (p. 99), desmontando, assim, uma das falácias que tiveram largo curso durante a última década do século XX e a primeira década do século XXI. O exemplo invocado, da Corte Constitucional Sul-Americana, traz um dos mais ricos temas do Direito Econômico, que é justamente a política relativa ao setor habitacional, que no Brasil, no século XX, oscilou sensivelmente entre o assegurar moradia e o estimular a construção civil, e lança luzes sobre a concreção do direito à moradia enquanto direito social acrescido ao rol posto no artigo 6º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 26. Claro que existem pontos de divergência: não me parece, por exemplo, superado o positivismo, propriamente dito, quando se toma a Constituição enquanto parâmetro para solucionar os conflitos de interesse, mesmo em relação a políticas públicas, tendo em vista que a Constituição, seja no que tange a disposições expressas, seja no que tange ao que nela está implícito, e que se infere mediante os princípios, integra o direito positivo: o que, para mim, está superado é o prisma exclusivamente legalista, que no Brasil muitas vezes fez com que o Texto Constitucional fosse desprezado em nome da normatividade de inferior hierarquia. Também não identifico a eficiência com a economicidade, dado que compreendo esta, na mesma linha que o Prof. Washington Peluso Albino de Souza, a partir de Max Weber, enquanto linha de maior vantagem. Mas, de qualquer sorte, a importância do tema e os méritos do trabalho aí estão, para que sejam debatidas as questões nele postas, sem que se possa ficar indiferente a qualquer das passagens nele contidas.