COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas públicas e controle de juridicidade - vinculação às normas constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2010.
A obra que ora se resenha tem origem na dissertação de mestrado defendida pela autora, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e vem a trazer uma contribuição ao debate de vários temas polêmicos que se vão descortinando na paisagem que circunda o caminho por ela trilhado, em relação a esta preocupação dos limites e possibilidades da concreção do Estado de Direito, tal como desenhado pelos Textos Constitucionais contemporâneos. O tema escolhido me é dos mais caros, tendo em vista que foi exatamente sobre ele que elaborei minha tese de doutoramento.
O texto principia por inserir a preocupação com o controle das políticas públicas no contexto do denominado "neoconstitucionalismo", que, a partir de "elementos metodológico-formais" - normatividade, superioridade e centralidade da Constituição no ordenamento jurídico como um todo - e materiais - "incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais" e o acolhimento nestes de proposições aparentemente conflitivas -, buscaria ofertar uma resposta às experiências totalitárias e autoritárias do século XX, refletindo sobre o papel da Constituição no sistema do direito positivo - sobre o qual se digladiam as vertentes substancialista e procedimentalista -, manifestando a preocupação com a sua efetividade. Destaca a contribuição de Konrad Hesse, comparando com o pensamento de Hermann Heller, no esforço de aproximação da Constituição jurídica da "Constituição real"; a ampliação da jurisdição constitucional como conseqüência da imunização dos direitos fundamentais às contingências das maiorias nos Parlamentos; o desenvolvimento de novos métodos de hermenêutica voltando-se sobretudo às disposições concernentes a prestações positivas e aos conflitos aparentes entre princípios ou entre regras. É a partir de tais premissas que se balizarão a formulação e a execução de políticas públicas.
Tomando os direitos fundamentais como fim último das políticas públicas, refere a presença, ao lado dos direitos civis e políticos, dos direitos sociais (englobando neste conceito tanto os direitos sociais stricto sensu, como os direitos econômicos e culturais), expondo, em relação a estes últimos, o problema da respectiva eficácia muitas vezes depender de uma ação estatal que demande toda a criação de uma estrutura burocrática e de recursos financeiros, de tal sorte que se relativizaria, embora não ao ponto de se conduzir, necessariamente, tal situação à sua inexigibilidade.
Em seguida, versa o despertar do interesse do pensamento jurídico pela temática das políticas públicas a partir do momento em que o ideal da "Constituição sintética" típico do século XIX vem a ser substituído pela inserção, no Texto Máximo, da previsão de fins a serem atingidos pelos Poderes constituídos, de tal sorte que amplos setores que antes só poderiam ter contato com a ordem jurídica na condição de infratores venham a ser alcançados na condição de sujeitos de direito. Tendo presente a inexistência de direitos sem custos - ainda que se trate dos clássicos "direitos de liberdade" -, aponta para o dado de que, a despeito da ampla liberdade assegurada ao poder constituído para a alocação dos recursos, escassos para o atendimento de todas as demandas que se fazem ao Poder Público, existiria um limitador para além do qual não poderia ir a amplitude decisória, que seria justamente a realização da dignidade da pessoa humana, entendida esta na acepção kantiana.
A vinculação das políticas públicas à realização do projeto posto no Texto Constitucional parte do pressuposto da adoção, em maior ou menor grau, da tese do caráter dirigente que tal Texto assume nos tempos atuais, com a redução, no seio do constitucionalismo contemporâneo, da margem de discricionariedade dos Poderes constituídos na definição de objetivos políticos, postos os fins e, muitas vezes, os próprios meios, em caráter permanente, na Constituição. Embora ainda presente uma certa liberdade de conformação, para que as instâncias democráticas, ao se alternarem no poder, implementem os programas pelos quais foram investidos, e não se invista o Judiciário na condição de substituto das instâncias eletivas, a verificação da ultrapassagem dos balizamentos postos constitucionalmente, o descumprimento efetivo da Constituição pelas omissões, o atendimento das escolhas já feitas pelo Legislativo e pelo Executivo passa a ser objeto do controle jurisdicional, de tal sorte que são fixados os seguintes objetos sobre os quais este vem a incidir: (a) controle do estabelecimento de metas pelo Poder Executivo e Legislativo (não se confundindo com o estabelecimento de metas por parte do Judiciário como substituto dos outros dois); (b) o resultado final das politicas em determinado setor; (c) o atendimento aos percentuais constitucionalmente vinculados para a implementação de determinadas políticas, como as de educação, saúde e desenvolvimento da ciência e tecnologia; (d) a concretização das metas fixadas pelo próprio Governo; (e) a aferição da eficiência mínima na utilização dos recursos destinados à implementação das políticas públicas. O uso de tais parâmetros é exemplificado por julgado da Corte Constitucional da África do Sul sobre o direito de moradia, no qual o Governo daquele país foi condenado pela ausência de um programa de moradias apto a concretizar tal direito, assegurado na Constituição respectiva, sem que isto implicasse condenar o Poder Público a ofertar casa de moradia a cada habitante.
A simples descrição dos temas versados em cada capítulo revela, por si só, a indispensabilidade desta obra, sobretudo diante de discursos voltados à deslegitimação do Welfare State. Particularmente importante a passagem em que escande a obra de Sunstein & Holmes a respeito dos custos dos direitos, demonstrando, empiricamente, que um Estado liberal não seria, necessariamente, mais "barato" que um Estado intervencionista (p. 99), desmontando, assim, uma das falácias que tiveram largo curso durante a última década do século XX e a primeira década do século XXI. O exemplo invocado, da Corte Constitucional Sul-Americana, traz um dos mais ricos temas do Direito Econômico, que é justamente a política relativa ao setor habitacional, que no Brasil, no século XX, oscilou sensivelmente entre o assegurar moradia e o estimular a construção civil, e lança luzes sobre a concreção do direito à moradia enquanto direito social acrescido ao rol posto no artigo 6º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 26. Claro que existem pontos de divergência: não me parece, por exemplo, superado o positivismo, propriamente dito, quando se toma a Constituição enquanto parâmetro para solucionar os conflitos de interesse, mesmo em relação a políticas públicas, tendo em vista que a Constituição, seja no que tange a disposições expressas, seja no que tange ao que nela está implícito, e que se infere mediante os princípios, integra o direito positivo: o que, para mim, está superado é o prisma exclusivamente legalista, que no Brasil muitas vezes fez com que o Texto Constitucional fosse desprezado em nome da normatividade de inferior hierarquia. Também não identifico a eficiência com a economicidade, dado que compreendo esta, na mesma linha que o Prof. Washington Peluso Albino de Souza, a partir de Max Weber, enquanto linha de maior vantagem. Mas, de qualquer sorte, a importância do tema e os méritos do trabalho aí estão, para que sejam debatidas as questões nele postas, sem que se possa ficar indiferente a qualquer das passagens nele contidas.