quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Negócio fiduciário como ponte entre sistemas jurídicos

FOERSTER, Gerd. O "trust" do direito anglo-americano e os negócios fiduciários no Brasil - perspectivas de Direito Comparado (considerações do acolhimento do "trust" pelo Direito brasileiro). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.
 
A curiosidade que desperta, em meio aos que vivem no sistema de direito predominantemente legislado, acerca do funcionamento dos sistemas predominantemente baseados na inferência de regras gerais a partir da solução de problemas concretos e o movimento de homogeneização jurídica do espaço econômico denominado "globalização" tornam extremamente oportuna a publicação da versão comercial da tese de doutoramento que o autor defendeu junto à Universidade de Barcelona.
Principia a obra pela explanação das características do Common Law, indicando seu surgimento a partir da conquista pelos normandos de Guilherme I, substituindo os direitos tribais dos anglos, saxões e vikings (que se haviam imposto desde o término da presença romana na Grã-Bretanha), centralizando em torno do novo rei a administração e confiando aos Tribunais Reais de Justiça, por oposição ao direito canônico e aos costumes e cortes dos senhores locais, a elaboração do ordenamento comum a toda a Inglaterra (p. 39-40). Refere a fase inicial como marcada pela sobrevalorização das fórmulas processuais, a fim de que, das circunstâncias dos casos concretos e dos contratos, fossem inferidas as regras para a composição dos litígios (p. 43-6), indicando a formação da Equity como o juízo do Rei, com o auxílio do Chanceler, a partir do século XVI, para a correção de eventuais inadequações ou insuficiências ou injustiças aberrantes por parte das Cortes (p. 49), juízo, este, que seguiu em muito o processo canônico, dada a origem, em regra, clerical do Chanceler, e teve seu apogeu nos períodos absolutistas dos Tudors e Stuarts, tendo reduzido seu âmbito de aplicação com o fortalecimento do Parlamento (p. 51-2). Com a identificação de uma estrutura dualista como constitutiva do Direito inglês - Common Law e Equity -, apresenta como contribuições desta última a determinação da execução das obrigações de fazer previstas em cláusulas contratuais, o reconhecimento da possibilidade de vício da vontade de uma das partes em virtude de coação moral, a possibilidade de uma pessoa, proprietária, entregar a outra um bem para ser administrado em prol de um terceiro, a busca forçada do cumprimento de promessa, a subrogação no crédito daquele que pagasse obrigação alheia, a recuperação de bem deixado em depósito depois de morto o depositário, estendendo-se até a formação da lex mercatoria (p. 57-9). Aponta, em caráter subsequente, o papel que tiveram os Judicature Acts, a partir especialmente de 1875, para atribuir a todas as jurisdições inglesas a competência para a aplicação tanto do Common Law quanto da Equity, de tal sorte que esta continua a disciplinar os campos concernentes a sociedades comerciais, falências, lioquidação de heranças e aquele incorporou as regras de intervenção nos contratos, continuando a disciplinar matéria criminal, direito contratual e responsabilidade civil, por um lado, e, por outro, o ingresso de matérias que exigiram a utilização de outros critérios, como a trabalhista e previdenciária, avançando no sentido de um direito legislado se afirmar, principalmente após o New Deal, que não teria deixado de influenciar, também, o Reino Unido (p. 60-2). Traz a cotejo o papel da submissão prévia dos juízes, no sistema "romanístico", a parâmetros fixados em caráter abstrato pelo legislador, e o papel de construtores da "legal rule", a partir dos fatos da causa e das "legal rules" preexistentes, cotejando com os precedentes pertinentes, do juiz no sistema "anglo-saxão" (p. 63-6), bem como o papel mais acentuado das academias na formação dos conceitos naquele sistema em comparação com o papel mais forte dos praxistas no segundo (p. 66-8). Observa que os movimentos de integração jurídica no seio da civilização ocidental conduziriam a uma flexibilização na visão estritamente legalista nos países vinculados à "família romano-germânica", especialmente pela introdução do "trust" no direito interno de vários países do continente (p. 69-70). Partindo da premissa de que o direito ´produto do contexto "sócio-econômico" da sociedade em que emerge, passa a versar o "trust" a partir do instituto de que derivou, o "use", nascido no Direito feudal inglês, em que o senhor dividia a extensão conquistada entre os seus lugares-tenentes (tenants), que a possuíam mediante o pagamento de uma renda, e, por seu turno, estes mesmos lugares-tenentes concediam a seus subalternos partes das extensões que lhes cabiam, a título limitado (p. 73-4). Informa a existência de dois tipos de tenure, a situação jurídica do tenant: a free tenure, mercê da qual se podiam quantificar os serviços a serem prestados pelo vassalo ao suserano, com a possibilidade de alienação dos direitos de posse a terceiros, mediante doação, compra e venda ou permuta, e a unfree tenure, na qual não existia tal possibilidade (p. 75). Traz à colação, ainda, a noção de estate, como mensurador da intensidade do vínculo entre o proprietário e o tenant, distinguindo as primeiras quatro modalidades reconhecidas pelos Tribunais de Common Law - o fee simple estate, o fee tail estate, o life estate e o estate pur autre vie - e uma quinta modalidade desenvolvida a partir do século XIV, o leasehold estate, que mais se assemelharia a um arrendamento (p. 75-6). Aponta para um dos traços distintivos entre o direito romano-germânico, para o qual, enquanto se admitiria livremente a formação de contratos, seria exigível a tipicidade cerrada para os direitos reais, e o direito anglo-saxão, para o qual seria perfeitamente admissível a criação de direitos reais pela via convencional (p. 77-8). Desta forma, explicar-se-ia o surgimento do use, enquanto antepassado mais direto do trust, pela entrega de um bem por uma pessoa (transferor) a outra (transferee of uses) para o administrar em prol de um terceiro (plaintiff), conferida a ele força jurídica principalmente pela atuação do Chanceler (p. 78-9). A seguir, passa-se a elencar e discutir os conceitos correntes para o "trust", tanto no contexto anglo-saxão como dentre os estudiosos de contextos distintos, para optar pela conceituação de D. M. Waters, segundo a qual consistiria o instituto sob análise em uma relação triangular enre o instituidor (settlor), que transfere ao trustee a titularidade de determinado patrimônio para o gerir em favor de um beneficiário (p. 111). Passa a identificar os mais variados critérios de classificação dos trusts no Common Law, comparando-o com relações jurídicas similares, como a agency (p. 136-8), o contract (p. 138-140), o loan (p. 140), o bailment (p. 141) e a corporation (p. 142-3). A seguir, debate a presença de direitos de propriedade simultâneos entre o trustee e o beneficiary (p. 143-7). Ingressa-se nas aplicações do instituto na atualidade, salientando-se sua versatilidade ou "flexibilidade" (p. 147-8), indicando os purpose trusts, os charitable trusts, os pension trusts, os investment trusts, os security trusts, os holding trusts, os land trusts e as modalidades adotadas em jurisdições off shore, buscando, em regra, a diminuição de ônus fiscais (p. 173-5). Para se demonstrar a compatibilidade do instituto com os sistemas de Civil Law, faz-se um profundo exame dos negócios fiduciários. É trabalhada, em primeiro lugar, a fidúcia no direito romano. Ingressa-se no tratamento das instituições similares no Direito germânico medieval para, logo depois, verificar-se a aproximação não só do trust como do mortgage com os negócios fiduciários. O papel que estes desempenham no dotar as obrigações de maiores e mais efetivas garantias, respondendo à dinâmica da vida contemporânea (p. 216), é analisado à luz do Direito Comparado, procedida a conceituação e a decomposição do negócio fiduciário em seus elementos, distinguindo-se-o de institutos afins, para chegar-se à sua prática hodierna, elencando suas manifestações como venda com finalidade de garantia, venda com finalidade de gestão, venda para recomposição de patrimônio, venda com reserva de domínio, doação fiduciária, cessão fiduciária de crédito, endosso fiduciário de títulos de crédito, titularidade fiduciária de direitos de acionista, examinando o tratamento jurisprudencial do tema, para ao cabo, apontar não só para a validade, em face do Direito brasileiro, do negócio fiduciário como para a sua inconfundibilidade com o trust, e mesmo a impossibilidade de ser sucedâneo deste (p. 348-9).  Em seguida, verificam-se as instituições fiduciárias assimiláveis ao trust no Direito Comparado, iniciando-se pela substituição fideicomissária, nascida no Direito das Sucessões e muito discutida após a vitória dos ideais da Revolução Francesa, mantida, entretanto, em virtude da existência de temperamentos, como a temporariedade, a herança legítima e a registrabilidade das transações sobre imóveis, identificando várias possibilidades de contribuição do instituto à implementação do trust no Brasil. A Comissão Mercantil é também estudada em minúcia, e chega-se à conclusão da parca possibilidade de adaptação para o efeito de implementação do trust (p. 430). A alienação fiduciária em garantia, tanto em sua feição originária, posta pela Lei 4.728, de 1965, até chegar à respectiva extensão aos bens imóveis pela Lei 9.514, de 1997, vista como inspirada no trust é esmiuçada para se demonstrar que, a despeito de semelhanças em termos de finalidade prática, de facilitar o acesso ao crédito para a aquisição de bens, há diferenças estruturais (p. 436-7). Realiza-se, ainda, o exame acerca do mandato em causa própria, cujo repúdio inicial veio a dar lugar à aceitação para que se flexibilizasse a possibilidade de transferência de títulos representativos de direitos obrigacionais, com a aglização dos negócios, e chega-se à conclusão de que o aludido instituto estaria longe de constituir, ante os debates travados, base para a adoção do trust (p. 511). Procede-se ao exame das características da gestão de negócios, na qual, embora identificadas semelhanças com uma das modalidades do trust, o constructive trust, não se considera nela presente um alicerce para a introdução do instituto entre nós (p. 522). Trata-se, depois, das semelhanças ao trustee dos agentes fiduciários no mercado de capitais. Pelo aspecto da possibilidade das fundações administrarem bens com a finalidade de beneficiar a terceiros, examinam-se eventuais aproximações delas ao trust, chegando-se à conclusão de que a complexidade do regime delas poderia, especialmente pela necessidade de fiscalização do pelo Ministério Público, inviabilizar a própria adoção do trust. Ao cabo, são esmiuçadas as alternativas para a respectiva implementação no Direito brasileiro.
A obra é extremamente rica em detalhes e, como dito na introdução da presente resenha, vem mui oportunamente, até mesmo pelo estabelecimento de pontes entre sistemas jurídicos diferentes para o fim de demonstrar o próprio esmaecimento das distinções entre eles. O respectivo valor, contudo, não implica integral concordância com várias dentre as proposições, a iniciar-se pelo prático entusiasmo com o Common Law, quando a principal vantagem do Civil Law, assinalada mesmo por um cultor das tradições inglesas tão típico como Jeremy Bentham, está na mais fácil calculabilidade, vez que a previsão em abstrato dos comandos permite saber-se, com maior segurança, as consequências das condutas que se praticarem. Também a taxatividade legal dos direitos reais, no que pese atender a uma expectativa de maiores garantias para o cumprimento das obrigações, precisamente pelo caráter de sujeição passiva oponível a todo o ser humano pelo respectivo titular é que se considera, no âmbito do Civil Law, como mais apta a proteger a liberdade de cada indivíduo. O entusiasmo com a lex mercatoria também não é compartilhado pelo resenhista, que já publicou textos a seu respeito, nos quais demonstrou que a própria liberdade individual demanda, para que seja adequadamente protegida, a existência de interesses indisponíveis, sob pena de cada ser humano valer apenas pela função econômica que desempenhe. Interessa, outrossim, a obra não somente ao Direito Civil, como também ao Direito Econômico, já que se apresenta a possibilidade da adoção do instituto como um dos meios para a atração de capitais estrangeiros, viabilizando cada vez mais as trocas internacionais, além da possibilidade de este instrumento  negocial ser apto a definir a capacidade de os seus partícipes conformarem as relações de mercado.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Verdade, direito, autoridade - as grandes tensões constitucionais

HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado constitucional. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.


Nos tempos atuais, quando se fala dos debates em torno de "Comissões da Verdade", esquecimentos, memórias, terrorismos, resistências, justificativas e não justificativas, pertinência ou impertinência do juízo moral comum à política, é de intuitiva oportunidade a obra do Professor da Universidade de Bayreuth questionando o papel da "Verdade" enquanto valor no campo político-constitucional, diante de uma tradição que, pelo menos desde Platão, tomava a "mentira" como um dos meios úteis para manter a tranquilidade na polis. A diferença entre a produção científica, que tem compromisso com a verdade, sempre e sempre, e o exercício do poder - seja no âmbito de um Estado, seja no âmbito de uma grande companhia -, que tem compromisso com a conveniência, ao ponto de a mentira poder ser tida como útil, não é recente: Nicolau Maquiavel, quando o Papa era Alexandre VI, embora tivesse sido mais explícito n' O príncipe, mais não fez que aprofundar uma passagem do Livro III da República, de Platão.
 
Para o enfrentamento do tema, o Prof. Häberle rastreia a presença da palavra "verdade" nos textos legislativos, notadamente a Lei Fundamental de Bonn e as Constituições dos Länder, ligando-a a questões como a educação, a livre pesquisa científica, ao registro imparcial das sessões parlamentares, passando, logo em seguida, ao tema - que será recorrente ao longo da obra, mediante comparações com as comissões congêneres na Europa do Leste, na África do Sul, na Guatemala e no Haiti - do estabelecimento, por ato do Secretário-Geral da ONU, em 1992, de comissão da verdade em El Salvador, composta por membros de diferentes nações, para apurar a prática de crimes contra a humanidade durante a guerra civil e assegurar o processo de transição para a democracia (p. 41-2), discutindo a questão do papel das comissões parlamentares de inquérito enquanto meios de apuração da verdade ou armas de luta política, salientando a importância que o dado de haver em maio de 1993 o candidato a Primeiro-Ministro do Partido Social-Democrata sido pilhado em falta com a verdade perante um órgão desta natureza teve na renúncia respectiva, comparando este último fato com o escândalo Watergate, ocorrido nos EUA (p. 44-5). Refere, em termos de Direito Comparado, as Constituições do Reino da Suécia de 1809, da Turquia de 1982 e da Grécia de 1975 (p. 45). No âmbito dos textos legislativos ordinários, trabalha-se basicamente a legislação processual, em matéria de prova (p. 46-8), bem como o direito canônico (p. 49-50), e as questões que se colocam no Direito Internacional Público, sobretudo quando se trate das condutas que se têm como permitidas ou não em guerra, especialmente na obra de Grotius (p. 51-2), e as influências dos debates da verdade no âmbito interno constitucional dos Estados na disciplina do Direito dos Tratados, na Convenção das Nações Unidas sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, no Preâmbulo da Convenção da UNESCO e também no da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (p. 54-5). Segue referindo a descrição do papel que o engodo desempenha no contexto do totalitarismo feita por Vaclav Havel, pondo o compromisso de cada qual com a verdade como a expressão da co-responsabilidade com o destino do todo e com a própria integridade do espaço público (p. 56), passando pela indicação dos momentos em que a verdade comparece como um valor, a partir do Antigo Testamento, e no âmbito da teologia cristã (p. 59), para indicar as aproximações e os afastamentos entre as noções filosóficas - a distinção entre as verdades da fé e da filosofia, cara aos discípulos de Averróis (p. 63) e que, modo certo, resolveu o problema de os Doutores da Igreja reportarem-se a autoridades não cristãs, embora tenha preparado o terreno para a cisão entre a religião e a filosofia (p. 67) - ou científicas - o processo de Galileu Galilei é mencionado, bem como a sua reabilitação pelo Papa João Paulo II (p. 62) -, o compromisso kantiano com a verdade como um dever absoluto e a discussão posta tanto por Hegel quanto por Popper (pensador que mais influiu no pensamento do autor ora resenhado - nota do resenhista) e Habermas (p. 64-6). Toma a questão da inacessibilidade à verdade "em si mesma", substituindo-se-a pela "busca da verdade" a partir da visão de um Wilhelm von Humboldt, bem como do niilismo de um Paul Feyerabend e do ceticismo de um Friedrich Nietzsche (p. 66-7), para, logo em seguida, versar o papel da verdade nas artes, sobretudo na poesia, na música e na pintura, evocando Schiller, Uhland, Theodor Storm, Goethe e Shakespeare (p. 71-92), em relação à primeira, Wolfgang Amadeus Mozart, especificamente em razão da famosa fala de Pamina ("A verdade, ainda que dizê-la seja um crime!") em A flauta mágica, o pianista Alfred Brendel, Ludwig van Beethoven e Richard Strauss (70-1), em relação à segunda, e a alegoria de Friedrich Holder (p. 70), em relação à terceira. São trazidas, logo depois, reflexões sobre a instalação das comissões da verdade para a apuração dos fatos ocorridos na Alemanha Oriental, os problemas relacionados à concorrência de pretensões de grupos distintos em face das propriedades privadas a serem restituídas (p. 94), a superação do próprio problema do "recalque coletivo" ocorrido a partir de 1945, as manifestações de nostalgia do regime da Alemanha Oriental nos anos 1993-1994 (p. 97), que tornaram, no ver do autor, imperiosa a instalação de tais comissões e a edição de leis de transparência. Aponta, outrossim, como caminhos percorridos no constitucionalismo da Europa do Leste, após a queda do Muro de Berlim (p. 99), o estabelecimento de cláusulas protetoras do pluralismo, como a interdição de que se punam, em nome de uma cosmovisão oficial, as livres convicções de cada qual (p. 100), como a adoção do pluralismo partidário (p. 100-1), como o dever fundamental dos ocupantes de cargos públicos com a verdade, como a circunscrição da palavra final sobre as verdades científicas aos eruditos - presente na Constituição da Hungria, e que não deixa de provocar no autor resenhado uma estranheza, qualificando tal providência como "W. von Humboldt em 'salsa húngara pós-comunista'" - (p. 101), como a proibição da monopolização das fontes de informação e dos meios de comunicação de massa, seja pelos particulares, seja pelo Estado, como a interdição a prejulgamento nos processos e a garantia do direito à prova (p. 102), como a interdição a que se confundam o Estado e o partido (p. 102-3). Toma-se o protótipo do Estado constitucional aquele que arreda os modelos totalitários de quaisquer cores, as "pretensões fundamentalistas de verdade", os monopólios de informação e as visões de mundo imutáveis, não se estabelecendo sobre verdades preordenadas, mas na eterna busca da verdade (p. 105). Mesmo tendo a falseabilidade das proposições como critério da verdade, mesmo tendo-se a verdade como um dado poliédrico, um diamante com brilho por todos os lados, isto não significa a adoção de um relativismo à plena, pois o Estado constitucional se autonegaria, por exemplo, ao admitir a instauração do totalitarismo, ou se não existissem as denominadas cláusulas pétreas, ou "garantias de eternidade" (p. 106-7), e dá o investimento na educação como meio eficaz para dar concreção a esses limites, e isto somente pode estar vinculado ao desiderato da busca da verdade, meio de conexão das três liberdades intelectuais fundamentais, quais sejam, a liberdade de religião, a liberdade das artes e a liberdade das ciências (p. 108-9). Tal desiderato somente se pode executar com a criação de um ambiente propício para tanto, e isto somente se pode dar no seio de uma sociedade pluralista, embora a própria investigação da verdade possa, por motivos éticos, comportar limites, como é o caso da proibição da obtenção de informações mediante o uso de tortura ou de meios voltados ao embotamento da consciência do interrogando (p. 112). Colocam-se, a seguir, as questões da verdade no seio da democracia pluralista, pelas tensões que se estabelecem na formação da opinião pública, seja pela questão da oposição entre a formação da maioria e a "verdade em si mesma" (quantidade/qualidade), a origem da lei na autoridade e não na verdade, a questão da concorrência das versões no que tange à atuação dos meios de comunicação, que se caracterizaria por uma luta pública das ideias, somente factível à plena em existindo certa igualdade no acesso a eles (p. 113-4), ressaltando a ênfase do debate na Alemanha no zelo jornalístico na apuração dos fatos e na efetividade do direito de resposta (p. 115), bem como na delimitação do excessivo poder de mercado das televisões privadas (p. 117). A questão da proibição constitucional da mentira e, ao mesmo tempo, da possibilidade de se incidir no erro até que seja demonstrado e da mentira em estado de necessidade, seja pelo silêncio, seja pela expressão inverídica em si mesma, quando se esteja no contexto ditatorial ou totalitário (118-120). Também entra em discussão o papel das "ficções jurídicas" enquanto meios de operacionalizar determinados valores jurídicos (p. 121-2). Ainda assim, a busca da verdade se coloca como um "valor cultural" em contraposição ao totalitarismo e vem a, cada vez mais, conectar-se à temática dos direitos humanos (p. 123-4). A partir daí, encaminha-se para a questão do que importe, para o jurista, em relação à temática da verdade, trabalhando as regiões "cultural", ligada às interpretações e projetos de mundo de cada qual, e a "política", que estaria ligada à presença do "outro" e o respeito por sua liberdade, propostas por Rüdiger Safranski, com mitigações que se colocariam em termos de uma política de direitos fundamentais que conduziria ao estabelecimento das condições para que a verdade vicejasse (p. 125-6). Destarte, o jurista, mesmo de posse do conhecimento da discussão filosófica acerca da verdade, valeria tomar em consideração o dado de que o problema da verdade se colocaria a partir das premissas postas no interior de cada uma das ciências. Para o Direito, ao lado da proibição da mentira em relação à dignidade da pessoa humana, por decorrência desta mesma dignidade, cada qual teria o direito à busca da verdade, e isto pressuporia tanto a não-violência (o que seria assegurado pelo monopólio estatal da força) "quanto a tolerância, cultura, proteção à natureza e também às gerações futuras", sem que o Estado pretenda "curar" a possibilidade do fracasso e do erro (p. 128).  A seguir, anexa-se o balanço realizado pelo autor cinco anos após as reflexões anteriores terem sido publicadas na Alemanha, referindo especialmente o trabalho das comissões da verdade constituídas na África do Sul em relação ao apartheid, na República Federal da Alemanha, no que tange à atuação da Stasi, na Polônia, com sua Lei de Transparência, na Republica Tcheca e na Itália, bem como na América Latina, as questões do emprego das mentiras como estratégia governamental, evocando os casos de Gorbatchov, de François Mitterrand e de Clinton, o tema relacionado com o papel da mídia, distinguindo-se entre a verdade jornalística e a verdade judiciária. Coloca-se, também, a questão das falsificações no âmbito da produção científica para o fim de obtenção de recursos financeiros, o crescimento das discussões filosóficas e jurídico-filosóficas acerca da verdade entre 1995 e 2001, o estabelecimento de quatro caminhos para se chegar ao conhecimento da verdade em relação aos antigos regimes comunistas.

Nem todas as proposições contidas nesta obra contam com a minha adesão: o conceito de "ideologia" que nela se contém é empregado no sentido que a tradição mannheimiana denomina "forte", o de uma distorção da realidade voltada a fundamentar as relações de poder, quando me parece, justamente pela falibilidade humana, mais adequado o sentido "fraco", o de uma cosmovisão dominante - independentemente de suas virtudes e defeitos - em determinado meio social, a que se opõe a "utopia", que é a cosmovisão que aspira a tornar-se dominante. Por sinal, o sentido "forte" de "ideologia" traduz um dos traços de aproximação entre visões de mundo que se pretendem francamente antagônicas, a saber, a dos tributários do "materialismo histórico" e a dos herdeiros do Colóquio de Mont Pélérin. Também não conta com minha adesão o viés popperiano do autor, vez que o referencial weberiano me parece mais adequado à materialização do escopo iluminista de busca da verdade. Estes e outros pequenos senões não lhe comprometem o mérito, entretanto. Os cultores de todos os ramos do Direito têm muito a se abeberar nesta obra.  Para o juseconomista, a sua importância não se coloca somente em termos do papel que a informação tem como matéria prima da decisão em geral, e da decisão econômica em particular, seja de investir, seja de consumir, necessitando, pois, de dados verdadeiros para que os resultados sejam os mais próximos daquilo que se pretende ou do papel da ciência enquanto responsável pelo aperfeiçoamento da técnica e, portanto, pela necessidade de seus resultados se mostrarem confiáveis na solução dos problemas que se propõe a resolver, e tampouco no que tange às questões concernentes à disciplina da atuação da mídia enquanto setor da atividade empresarial. Com efeito, basta recordar que o artigo 174 da Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como característica do plano econômico o ser "indicativo" para o setor privado e "vinculante" para o setor público, traduzindo a indicação o rumo a ser imprimido pelo Poder Público à política econômica que adotar, dando os referenciais, pois, ao particular para orientar a respectiva atividade econômica. Por outro lado, tem-se discutido, em relação ao próprio funcionamento do mercado, a assimetria de informações enquanto elemento perturbador do equilíbrio entre os agentes econômicos a ser devidamente enfrentado pelo Poder Público. A própria reflexão em torno da revolta dos fatos econômicos contra a lei - recordando, aqui, o clássico publicado por Gaston Morin em 1920 -, impondo solução que, mesmo aparentemente antagônica à literalidade do comando isolado, confira efetividade ao ordenamento jurídico como um todo, qual ocorreu logo após a I Guerra, levando Justus Wilhelm Hedemann a identificar os limites do Direito Civil clássico e a proclamar o nascimento de um Direito Econômico, e a urdidura, pelo pioneiro deste no Brasil, Professor Washington Peluso Albino de Souza, da regra da primazia da realidade social, aponta, em si mesma, para os limites da operacionalidade das ficções. Embora estes temas não tenham sido tratados na obra ora resenhada, pode ela perfeitamente servir como ponto de partida para uma discussão racional deles e de quaisquer outros que, por vezes, têm a respectiva compreensão desviada pelo partidarismo.