FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; MIALHE, Jorge Luís; JOB, Ulisses da Silveira [org.]. Epitácio Pessoa e a Codificação do Direito Internacional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2013.
O caso de Epitácio Pessoa, que praticamente ocupou todos os cargos públicos que se põem à disposição do bacharel em Direito no Brasil, e de seu Projeto de Código de Direito Internacional Público, interessou a este grupo de estudiosos, que organizou esta coletânea a partir da seguinte estrutura: o significado e a repercussão da obra do homenageado, a obra em si e a respectiva biografia. A contribuição para a História do Direito Internacional Público e a compreensão desta contribuição brasileira veio a ser o mote da respectiva confecção.
Marcílio Toscano Franca Filho, ao emitir pronunciamento "à guisa de introdução: algumas questões preliminares e metodológicas", analisa a biografia e o papel desempenhado, nas múltiplas facetas de sua vida pública, por Epitácio Pessoa, e situa a importância de se conhecer e discutir o Projeto de Código de Direito Internacional Público por ele elaborado em 1911, num contexto em que cada vez mais se internacionalizam as relações jurídico-econômicas (p. 32-3).
O primeiro estudo, da lavra de Alessandra Correia Lima Macedo Franca, sobre "a jurisdição, a imunidade dos Estados e o espaço da relatividade: do código à rede", examina as vicissitudes da parêmia "par in parem non habet imperium", partindo de uma concepção de imunidade jurisdicional absoluta, assinalando no Projeto de Código de Direito Internacional Público uma das primeiras tentativas de disciplinar o assunto, passando pela distinção entre "atos de império" e "atos de gestão", encaminhando-se para os casos de exceção à regra imunitária, como é o caso das "Regras de Hamburgo", urdidas em 1891, pelo Instituto de Direito Internacional, o dissenso das legislações acerca da extensão da imunidade em sede trabalhista, a caracterização da execução forçada como espaço de resistência da imunidade absoluta e a dificuldade da aplicação ou não aplicação desta em face dos direitos humanos, diante do debate que se trava entre universalistas e relativistas neste campo.
Alice Rocha da Silva examina o modo como se procurou equacionar "a responsabilidade internacional do Estado no Projeto de Epitácio Pessoa", salientando a tendência à ampliação da área a ser coberta por tal sistema de responsabilização, especialmente diante do aumento do espectro dos direitos humanos, a importância da disciplina da responsabilidade na mitigação do estado de indeterminação nas relações internacionais, a evolução das bases da responsabilidade, a equiparação dos estrangeiros aos nacionais para o efeito de acesso à ordem jurídica interna em cada Estado, os casos em que a guerra civil poderia render ensejo à responsabilidade, a exigência de esgotamento dos recursos do direito interno, o modo de se operar a reparação dos danos e a imputação, ao Poder Central, da responsabilidade pelos atos das entidades locais, no contexto dos Estados Federais no âmbito internacional.
"Os prisioneiros de guerra no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa" ocupam a atenção de Érika Seguchi, que os situa no contexto da mitigação da atrocidade do conflito armado, olhos postos tanto no Direito da Convenção de Genebra como no Direito da Convenção de Haia. Aponta para a influência desta última na sistematização feita por Epitácio Pessoa, com a definição do conceito de "prisioneiro de guerra", da respectiva identidade, da submissão respectiva às leis, ordens e regulamentos vigentes no espaço dominado pelos captores, a questão do sustento dos prisioneiros, do trabalho que lhe pode e que não lhe pode ser exigido, do tratamento a ser dado em caso de tentativa de fuga, a prestação de assistência religiosa e por entidades humanitárias, sobre a centralização das informações acerca das vicissitudes dos prisioneiros, inclusive óbitos, salientando, ainda, a influência dos artigos redigidos pelo jurista brasileiro na atuação da Agência Internacional dos Prisioneiros de Guerra, criada pela Cruz Vermelha Internacional em 1914.
Eugênio Vargas Garcia faz a narrativa da experiência de "Epitácio Pessoa diplomata: de Versalhes ao Catete", quando o protagonista desta coletânea, ao participar da Conferência de Paz subsequente à I Guerra, em 1919, entrou em tratativas com o Presidente Woodrow Wilson, dos EUA, para a obtenção do reconhecimento da dívida da Alemanha decorrente do confisco do produto da venda de sacas de café estocadas em portos europeus e da incorporação de navios alemães apreendidos à marinha mercante brasileira, além de acompanhar da formação da Liga das Nações e de ser eleito, ainda em missão diplomática, para a Presidência do Brasil.
Fredys Orlando Sorto, ao comentar "a condição da pessoa humana no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", indica, na obra deste, este ponto mais conforme à doutrina tradicional do Direito Internacional Público, que somente reconhecia personalidade aos entes dotados da capacidade de fazer a guerra e celebrar tratados, isto é, os Estados, e contrasta-o à evolução doutrinária que, principalmente diante do desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, reconhece a personalidade no âmbito internacional também aos indivíduos.
Gustaaf Janssens, ao comentar a relação pessoal entre o Presidente Epitácio Pessoa e o rei belga Albert I, bem como a solidariedade prestada pelo Brasil à Belgica em 1914 quando do ataque perpetrado pela Alemanha e o estabelecimento de parcerias comerciais que renderam ensejo à recuperação do reino europeu, salienta o traço comum aos dois governantes quanto à preferência pelas soluções da concórdia e da conformidade ao Direito, e aos esforços por que por meios pacíficos se resolvessem as controvérsias internacionais.
Já Gustavo Ferreira Ribeiro, a quem coube examinar "o comércio internacional no Projeto de Código de Epitácio Pessoa", contextualiza o Brasil no comércio internacional na transição do século XIX para o século XX, quando era exportador, principalmente, de café, ensaiando diversificação no que toca, por exemplo, à borracha, a experiência brasileira em tratados bilaterais de amizade, comércio e navegação,bem como de participação nas Conferências Pan-Americanas (1889-1890, 1901-1902, 1906, 1910, 1923 e 1928) e a mudança do eixo diplomático brasileiro de Londres para Washington durante a gestão, à frente o Ministério das Relações Exteriores, do Barão do Rio Branco, quando foi cometida a Epitácio Pessoa a tarefa de confeccionar o Código, orientando a disciplina do comércio internacional, principiando pelo tratamento da "liberdade de trânsito", ressalvando o poder dos Estados disciplinarem, como bem lhes aprouvesse, o comércio uns com os outros, a liberdade de comércio marítimo, desde que respeitadas as disposições de natureza fiscal, sanitária e policial, a medida do tratamento igualitário entre nacionais e estrangeiros, a uniformização de pesos e medidas, apontando para a semelhança com as soluções albergadas no GATT.
Ao dedicar-se João Carlos Jarochinski Silva ao estudo sobre "a guerra civil no Código de Epitácio Pessoa", aponta para a tentativa de se estabelecer um parâmetro para a disciplina das relações com terceiros países em tais contextos, sobretudo considerando as experiências de conflagrações vivenciadas pelo protagonista da coletânea, buscando, em primeiro lugar, evitar a definição normativa do conceito de guerra civil, bem como os deveres de não intervenção dos Estados estrangeiros, regulando, ainda, o reconhecimento do estado de beligerância, de tal modo que são atraídas, em relação aos revoltosos, as disposições relacionadas ao direito da guerra.
"O reconhecimento da beligerância no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa" é explorado por Jorge Luís Mialhe, ao situar tal conceito no contexto da preocupação de estabelecer regras de conduta para a guerra, minimizando, assim, os seus efeitos colaterais, sobretudo em relação às populações civis, indicando os precedentes internacionais de tentativa de codificação do Direito Internacional Público, salientando a contribuição epitaciana, bem como a atualidade do conceito de beligerância, no mínimo, para que mesmo a guerra civil não se converta no teatro em que vigora a regra segundo a qual tudo é permitido contra o vencido, trazendo ainda os problemas atuais do procedimento e dos efeitos do reconhecimento deste estado.
A contribuição de Lilian Castillo volta-se aos direitos e deveres dos Estados no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa, assinalando a influência, neste, dos conceitos desenvolvidos por Johann Kaspar Bluntschli, embora avançando em domínios sequer cogitados por este último, como a alusão a um direito dos Estados proverem a respectiva conservação e prosperidade e o dever respectivo de não utilizarem símbolos de outros, marcando o Projeto, como um todo, diante das soluções adotadas em termos de Tratados, como demonstrativo de um sólido conhecimento do Direito Internacional e de uma efetiva capacidade de inovar.
Liliana Lyra Jubilut, ao comentar "o conceito de soberania: modificações e responsabilidade", trabalha a evolução teórica deste fundamento do Direito Internacional Público, a partir do século XVI, e da evolução de sua compreensão na prática das relações internacionais desde a Paz de Westfália, realiza a análise da variação das limitações a que se pretendeu submeter a soberania nos âmbitos interno e externo, bem como do tratamento procedido pelo Projeto Epitácio Pessoa às noções de "domínio reservado", "não intervenção", "igualdade entre os Estados" e "responsabilidade", examinando, a seguir, a evolução do Direito Internacional Privado no pós Segunda Guerra, com a criação da ONU, o período da Guerra Fria e a contínua preocupação em não se estabelecer sinonímia entre "soberania" e "onipotência" (p. 265), no que permaneceria atual a preocupação do homenageado.
Luciana Pessanha Fagundes examina os "rituais de hospitalidade e encenações da história: visitas de Chefes de Estado no Governo de Epitácio Pessoa (1919-1922)", partindo do pressuposto de que visitas desta natureza teriam como escopo a construção de alianças, e analisa o que significaram elas num contexto de consolidação de uma política externa brasileira voltada aos EUA, bem como os próprios acordos comerciais firmados com a Bélgica - de que teria sido também decorrência a instalação, em 1921, da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira - e o fortalecimento dos vínculos de amizade com Portugal, então ainda combalido pela crise que, em 1926, iria render ensejo ao protagonismo de um Oliveira Salazar.
Marcelo D. Varella, ao versar o "Direito Humanitário no início do século XX e a codificação de Epitácio Pessoa", salienta que esta, não obstante não tivesse, no particular, inovado, tomou posição em temas polêmicos à época, como a proteção da população civil, as garantias desta e dos servidores públicos nos territórios ocupados, os direitos dos feridos e do pessoal ligado à prestação dos serviços de saúde, os direitos e deveres em relação aos territórios ocupados, de tal sorte que a sua ousadia consistiria em trazer tais posições para o "corpus" sistematizador.
O estudo "sobre a linha: o Código de Epitácio, o tema da fronteira e o Direito Internacional do Espaço", de Marcílio Toscano Franca Filho, examina o problema da delimitação territorial da soberania a partir da compreensão geométrica da linha e de sua função, separando superfícies, não desempenhando papel diverso no que tange à superfície onde se exerce a autoridade estatal, para perscrutar, a seguir, de que modo foram as questões concernentes aos requisitos para a demarcação e delimitação de fronteiras, bem como para o respectivo desaparecimento, foram equacionadas no Projeto Epitácio.
Ao discorrer sobre o tratamento da "propriedade intelectual no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa", salienta Maria Edelvacy P. Marinho as características peculiares do bem imaterial, a expansão da proteção deste para além das fronteiras dos Estados, a distinção, neste campo, entre a concorrência das legislações entre si e a cooperação internacional, a inserção da temática no artigo 278 do Projeto, pressupondo a distinção dos regimes de propriedade industrial, de um lado, e de propriedade artística e literária, de outro, a modificação da metodologia de elaboração dos Códigos de Direito Internacional Público (a cargo de Epitácio Pessoa) e de Direito Internacional Privado (a cargo de Lafayette Rodrigues Pereira), em 1912, que conduziu a que a matéria viesse a ser versada, mais tarde, no Código Bustamante.
Matheus de Oliveira Lacerda, ao comentar "a codificação do Direito Internacional Público: a materialização do padrão realista jurídico-pragmático da política externa brasileira", discute as origens do panamericanismo, o pragmatismo brasileiro na condução de sua política externa em meio a potências militarmente mais poderosas, e o papel desta prática na elaboração do Projeto Epitácio Pessoa.
Cabe a Rogério Duarte Fernandes dos Passos versar "a estruturação da nacionalidade e a condição jurídica dos nacionais e estrangeiros à luz do Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", retomando as noções de nacionalidade e cidadania, mostrando o tratamento particularizado da questão da nacionalidade em relação à pessoa humana, aos navios e aeronaves, aos efeitos decorrentes da cessão territorial, à situação da mulher casada e dos filhos menores, à proteção diplomática, à responsabilidade dos nacionais por fatos verificados no exterior, à condição jurídica do estrangeiro, bem como dos problemas relacionados à aquisição de bens imóveis por pessoas jurídicas de direito público estrangeiras.
Rui Décio Martins versa, em pormenor, o tema do nascimento dos Estados para os efeitos do Direito Internacional Público, até hoje carecedor de uma disciplina procedimental específica, regrado somente pela prática consuetudinária, no estudo intitulado "Dos Estados. Reconhecimento. Ontem e hoje".
Salem Hikmat Nasser e Adriane Sanctis de Brito, ao estudarem a "unidade, fragmentação e regimes jurídicos: narrativas de hoje e de Pessoa", examinam a busca da sistematização mediante o Projeto, em especial, como uma aspiração voltada a reduzir as colisões presentes em um contexto de relações jurídicas disciplinadas de modo fragmentário.
A contribuição, no tocante às relações internacionais, de "Rui, Epitácio e Fernando Henrique: do Brasil para o mundo" é dissecada minuciosamente por Susana Camargo Vieira.
"Epitácio Pessoa e o Direito Internacional americano" é o texto que cabe a Ulysses da Silveira Job, contextualizando a elaboração do Projeto em meio a uma identidade das Américas que se pretendia afirmar ante a comunidade internaciona, respeitando os princípios e valores presentes já em tratados preexistentes e harmonizando-os num texto único, adiantando-se a seu tempo em várias nuanças, como o status da mulher casada, medidas concernentes à circulação física, disciplina das soluções pacíficas de controvérsias internacionais, terminando por um comentário à sua atuação em questões de interesse americano.
Os "apontamentos do Direito dos Tratados no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", a cargo de Valério de Oliveira Mazzuoli, encerram esta primeira parte, salientando a influência do Projeto, neste campo, sobre a Convenção de Havana de 1928, bem como os pontos que vieram a ser superados, em especial no tocante à forma e à validade dos Tratados, com a evolução do Direito Internacional.
A seguir, é reproduzido o Projeto comentado nos estudos anteriormente resenhados.
Por fim, o retrato pessoal do jurista e político a que esta obra é dedicada, com a nota bibliográfica assinada por Joyce Sant'Anna Simões e Renato José Ramalho Alves, bem como fotografias ligadas à sua atuação no âmbito das relações internacionais.
Num momento em que se
discutem temas como a permanência da distinção entre civilização e
barbárie, da necessidade ou da superação da era das codificações, dos
abalos que a própria ideia de soberania sofre diante da homogeneização
jurídica do espaço econômico, a que se dá o nome de globalização, em que
povos ocupantes de espaços territoriais buscam, por um lado, o
reconhecimento e, por outro, comparecem forças não ligadas a nenhum
Estado que se tornam atores impensados aos tempos em que se celebrou a
Paz de Westfália, uma obra como a presente mais que se justifica, como
uma das grandes contribuições brasileiras na tentativa de reduzir o
quanto de arbitrário que ainda existe no âmbito das relações
internacionais.