sábado, 29 de agosto de 2009

A EFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO NO JUDICIÁRIO PARA ALÉM DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

RÊGO, Bruno Noura de Moraes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.

A grave lacuna deixada, muitas vezes, pela impossibilidade de se examinar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, a violação de determinadas normas constitucionais, conduzindo, em razão disto mesmo, aos caminhos mais lentos e tortuosos do controle difuso, conduziu à criação da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Com efeito, surgem situações em relação às quais a ausência de um remédio mais pronto fizeram com que explodissem conflitos judiciais da mais variada natureza: o atentado ao plano plurianual, à lei de diretrizes orçamentárias e ao orçamento, por exemplo, constituem crimes de responsabilidade. Entretanto, e na hipótese de haver neles alguma inconstitucionalidade, considerando que não são tidos como diplomas aptos a autorizarem o controle em sede de ação direta, de acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal? A discussão acerca do que constituiria ou deixaria de ser preceito fundamental, e a própria compatibilização de tal discussão com o entendimento remansoso do Supremo Tribunal Federal acerca da inexistência de hierarquia entre as disposições constitucionais, ainda que aparentemente contraditórias entre si, vem, de outra parte, a atrair diretamente o interesse do juseconomista, além do constitucionalista, tendo em vista que o fenômeno das aparentes antinomias nos Textos Constitucionais emerge com freqüência no que tange ao tratamento dos temas econômicos. Por outro lado, inúmeros atos legislativos de vigência transitória, mas cujos efeitos se protraíram no tempo, como é o exemplo clássico da retenção de ativos financeiros que se verificou de 1990 a 1992, ficaram sem um pronunciamento definitivo acerca da sua validade em face do Texto Constitucional. Para situações desta natureza, em que a própria vontade do povo manifestada nas urnas correria o risco de ser desautorizada, com o comprometimento do equilíbrio entre os Poderes da República, em que se sopesam os limites entre o atendimento a interesse transindividual juridicamente relevante e a preservação dos direitos individuais, como sói acontecer em todas as questões envolvendo políticas públicas, que se constituiu o remédio da argüição de descumprimento fundamental. O autor, mestre pela Universidade de Brasília e Professor no Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB, registrando as incertezas geradas na doutrina acerca do alcance do instituto previsto no § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, regulamentado pela Lei 9.882, de 1999, procura situá-lo dentro do quadro das ações constitucionais, bem como a própria caracterização por ela assumida no sistema de controle de constitucionalidade, apontando as dificuldades encontradas quanto à constitucionalidade mesma do remédio, na medida em que reforça, mediante atuação do legislador ordinário, o sistema concentrado em detrimento do sistema misto de fiscalização da constitucionalidade. As dificuldades teóricas resultantes, sobretudo, de ainda não haver sido precisado o caráter da argüição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal são enfrentadas com brilho pelo autor, embora, evidentemente, haja alguns pontos de franca divergência, como, por exemplo, a questão de ter o legislador ordinário, sem manifestação do poder constituinte derivado, criado nova modalidade de controle concentrado, quando, a juízo deste resenhista, a lei disciplinadora da ADPF apenas veio a conferir eficácia ao § 1º do artigo 102 da Constituição brasileira de 1988, bem como a questão do alegado per saltum, quando o que se tem na ADPF é apenas a solução da questão de direito, ficando ao juiz de primeiro grau a plena possibilidade de apreciação dos fatos a serem reconstituídos.

domingo, 16 de agosto de 2009

O CONSTITUCIONALISMO ENTRE A RACIONALIDADE E A BARBÁRIE

KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado – os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.

Um dos mais referidos constitucionalistas da atualidade, o Prof. Martin Kriele, finalmente vem a se tornar acessível a um maior público de língua portuguesa, graças à primorosa tradução que se vem a resenhar.

Pela investigação das origens de conceitos como os de legitimidade, soberania, absolutismo, das raízes do Estado Constitucional, especialmente no que tange à divisão de poderes, aos direitos humanos, às vicissitudes da liberdade individual – tanto política quanto econômica – enquanto valor, à dignidade enquanto mediador das aparentes contradições entre liberdade e igualdade, das origens do parlamentarismo, da revalorização do ideal democrático no século XX, o autor concretiza a premissa anunciada nas páginas 58-9: “o conteúdo normativo das instituições reconhecidamente legítimas é melhor perceptível a partir de sua história, para ser exato, a partir da história da luta ideológica conduzida em torno da fundação e da implementação dessas instituições”. Pleno de atualidade o aviso que formula, outrossim, em relação às críticas às instituições constitucionais: “se o crítico não compreende as razões para essas instituições, então existe o perigo de que ele destrua uma instituição para a qual existam boas razões e que, dessa forma, não proporciona o desenvolvimento mas sim o retrocesso. Este é o destino fatal dos movimentos, os quais avançam com grande convicção, mas diminutos conhecimentos sobre a alteração ou a dissolução das instituições constitucionais, as quais são resultado de lutas seculares e comportam boas razões despercebidas pelos críticos. Essas críticas progressivas simuladas, as quais não se encontram no ápice do problema, residem, normalmente, no âmbito dos sabichões independentes ou dos sabichões sectários. No entanto, ao conseguir desencadear um movimento de massas, elas também podem produzir efeitos políticos” (p. 60). Na discussão dos conceitos em sua formação, verifica a respectiva consistência a partir do estado do conhecimento da época em que formulados, bem como as condições que levaram aos seus questionamentos, especialmente na primeira metade do século XX - o que faz desta obra muito mais do que um simples ensaio de história do constitucionalismo europeu, para permitir, mesmo, a apreensão dos conceitos por este urdidos -. As limitações da compreensão racionalista do Estado são expostas com clareza, compreensão esta que, se não é destruída, vem, contudo, a ser mitigada pela força dos interesses polarizados num dado momento e, por isto mesmo, a preservação da idéia de Estado de Direito tem reforçado o seu papel de preservação da paz e da liberdade humana: “bons e maus argumentos convencem da mesma forma àqueles cujos preconceitos e interesses lhes são proveitosos. [...] Se opiniões políticas remetem, amplamente, de forma ideológica a interesses, essa situação turva o ideal puro da razão, as não o destrói. A natureza intelectual da pessoa, como a natureza em si, é débil, mas não sem força para a renovação e reavivamento. Em razão disso, a verdade possui uma certa capacidade mágica de ‘ser evidente’, o que torna sua força de convencimento independente do interesse. Com isso sua força de convencimento vai além do círculo das pessoas diretamente interessadas na exatidão do argumento. Quando o interesse é muito forte contra o poder de convencimento do argumento, quando, por exemplo, em uma situação político-partidária polarizada não se quer fazer concessões ao opositor, isso produz uma estupidez que bloqueia o efeito convincente da verdade. Através do apelo aos efeitos estúpidos, pode-se enganar todas as pessoas durante um tempo e alguns a longo prazo, mas não todos o tempo todo” (p. 354).

Nunca como nos tempos que ora correm – e não é por menos que o autor ainda elaborou um posfácio tomando em consideração o terrorismo pós-Guerra Fria enquanto desafio a ser enfrentado pelo constitucionalismo, para se evitarem retrocessos – se mostrou tão plena de operacionalidade a distinção platônica entre o conhecimento e a opinião a que, em última análise, se reporta esta obra em todo tempo. A preocupação com a perda de espaço da racionalidade é um dos principais dados que unem o resenhista - confira-se Advocacia Pública e Direito Econômico - o encontro das águas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 206-208 - ao autor ora resenhado.

domingo, 9 de agosto de 2009

POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERESSE TRANSINDIVIDUAL

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas - parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, 238 p.

Muitos dentre os dogmas do constitucionalismo clássico, fortemente influenciados pela doutrina do Direito Administrativo, no sentido da caracterização das questões políticas, por vezes, têm levado os estudiosos a verdadeiro estado de perplexidade, considerando os próprios pressupostos teóricos do Estado de Direito, voltado a reduzir ao máximo o espaço da vontade puramente subjetiva de quem exerce o poder público. Por outro lado, o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais rendeu ensejo a que se viesse a falar na necessidade de uma atuação positiva do Estado, inclusive mediante a formulação de políticas, para o fim de sua implementação. Por esta razão, procurando enfrentar as objeções habituais, o autor, Promotor de Justiça na Comarca de Natal/RN, traz a sua experiência pessoal para o debate acadêmico e centra o debate nos modos como as políticas publicas podem ser controladas, quer no que tange à formulação, quer no que tange à execução, quer no que tange, mesmo, à respectiva transparência. Sem deixar de referir os mecanismos de controle político e social, máxime tendo em vista os progressos da idéia da democracia participativa, aponta para os limites e possibilidades do controle jurisdicional, com especial destaque para a ação civil pública. Refutando o surrado argumento de que os direitos individuais não ultrapassam a noção de direitos de defesa, que apenas exigem a conduta negativa do Estado, bem como o próprio argumento falaz dos custos como obstáculos para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, e delimitando adequadamente os pontos que, efetivamente, traduziriam o domínio reservado dos Poderes providos em caráter eletivo, reforçando sua argumentação com exemplos da própria legislação recente, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus artigos 48 e 49, enfatizando o caráter normativo da Constituição como base de seu raciocínio, trata-se de obra cuja leitura se torna obrigatória, a despeito, evidentemente, de alguns pontos passíveis de debate que não empanam o mérito da obra, como, por exemplo, ao considerar que a possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas seria decorrência da superação do positivismo e não, tão-somente, do legalismo privatista típico da Escola de Exegese, uma vez que em asserções como esta vem revelado um inconsciente compromisso com a tese de que a Constituição não integraria o direito positivo. Mas, como dito, não se tem empanado o mérito da obra e, mais do que isto, vem ela como um auxílio ao bacharel formado para o praxismo burocrático e que, por vezes, ao se deparar com um problema que escapa aos velhos formulários, vem a cair num estado de perplexidade e não consegue descobrir sequer a formulação da questão jurídica pertinente, quanto mais a solução mais adequada. Todos os motivos, pois, para se receber alvissareiramente esta obra e quantas se dediquem a este tema, na constante busca da redução do espaço do arbítrio.
O tema, em relação ao Direito Econômico, mostra-se de grande relevância, considerando tratar este precisamente das medidas de política econômica, tanto no que tange à forma pela qual vêm elas a ser implementadas - medidas provisórias, leis, decretos-leis, decretos - como no que tange aos parâmetros constitucionais para sua implementação e, ainda, os efeitos sobre as situações jurídicas já definidas. Embora se entenda tradicionalmente que se trata de domínio reservado aos Poderes "Políticos", o fato é que tais medidas, para serem implementadas, têm, necessariamente, de vir à luz mediante algum ato jurídico, e, se ao Judiciário é vedado ingressar no mérito das medidas, no sentido de se dizer se elas são "boas" ou "más", o controle da respectiva juridicidade não está a ele interditado. Por outro lado, dentro da linha que adotei em minha tese de doutoramento (Direito Econômico - aplicação e eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001), a partir da doutrina de Washington Peluso Albino de Souza e Ronaldo Cunha Campos, não existe somente a política econômica pública, porquanto o particular também formula e põe em prática medidas como as fusões, incorporações, as joint ventures e tantos outros expedientes para a conquista de mercados e enfrentamentos - e, mesmo, eliminação - da concorrência -, sem contar com o dado de que, no seio da política econômica pública, não são somente o Executivo e o Legislativo que as formulam e executam, porquanto o Judiciário, ao firmar jurisprudência em torno do meio mais adequado para conferir maior celeridade à cobrança de determinados créditos ou mesmo quando adota a política de auto-restrição não deixa de o fazer.
Bem se vê, pois, o quanto se vai reduzindo a aparente estranheza das relações entre o Direito Processual e o Direito Econômico, ainda que não se marche para um Direito Processual Econômico, quando se verifica a recorrência do enfrentamento deste tema.