QUINTAS, Fábio Lima. Direito e economia - o poder normativo da Administração Pública na gestão da política econômica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2007.
O texto que se resenha constitui versão comercial de dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Brasília. No início da década de 90, como é notório, houve um movimento no sentido de se modificarem os ordenamentos jurídicos de todos os Países do Terceiro Mundo, de sorte a propiciar um maior afluxo de capitais. A liberalização da conta de capital, levada a cabo naquela década, para o efeito de atrair o investimento externo é, pelo autor, inserida neste contexto, e o dado é submetido à discussão sob os prismas jurídico e econômico, para o fim de se verificar até que ponto a medida poderia ter sido tomada no contexto de um Estado Democrático de Direito, como o proclamado pela Constituição brasileira de 1988. O debate vem a ser estabelecido tanto a partir da verificação da legalidade formal da medida - qual a autoridade competente para a decretar, se seria necessário o recurso à lei ou se bastaria ato de hierarquia normativa inferior - até a própria questão da necessidade de não se desprezar a legitimação democrática em nome de uma suposta "eficiência econômica". A contextualização do como se formou, na América Latina, o caldo de cultura para que se implementassem medidas voltadas à plena liberalização é feita minuciosamente no início do texto, e permite, assim, ao leitor verificar a medida em estudo como mais um passo em direção ao absolutismo do titular do capital estrangeiro, mesmo antes da Emenda Constitucional nº 6, de 1995.
O Estado Democrático de Direito é tomado no texto sob resenha como paradigma, ou seja, como visão de mundo comum inspiradora da Constituição de 1988 (p. 13), verdadeiro topos, para utilizar a linguagem mais aproximada ao senso comum dos bacharéis em Direito. São, a seguir, apontados os “paradigmas constitucionais” a partir da visão habermasiana do Estado de Direito, do Estado Social e do Estado Democrático de Direito, sendo no marco deste último que o princípio democrático evolui “de processo que visava simplesmente `legítima assunção e utilização do poder estatal (por meio do sufrágio universal) para processo que visa à expansão e preservação da esfera pública não estatal e da privada não mercantil” (p. 15). Refere o desafio para a realização da democracia em face da redução do espaço público “pelo poder do mercado globalizado”, em que o “político” viria a ser reduzido ao “técnico” e ao “econômico”, e este ao “crescimento”, em que os referenciais e as perspectivas de futuro viriam a desaparecer, bem como as “promessas não cumpridas da modernidade” (p 16), e a influência de tais dados no estabelecimento de mais aprofundado “fosso” entre a “tecnocracia hiperespecializada”, que vem a assumir as rédeas mesmo da política econômica pública, e o cidadão comum que a esta se sumbete, pondo em questão inclusive o princípio liberal da separação de poderes, com a atribuição de poderes normativos a órgãos e entidades da Administração Pública, como o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central (p. 18-23).
Caberia, aqui, uma digressão, inclusive, acerca da proposta de concessão de maior autonomia ao Banco Central, do seu tratamento como “agência reguladora independente”, e de sua compatibilidade com a própria concepção da separação de poderes nos moldes do liberalismo, posto o Estado como instância máxima de poder coercitivo, inclusive, para que fosse garantida com maior efetividade a liberdade de cada um dos indivíduos que figurassem como sujeitos dos interesses conflitantes no seio da sociedade.
A seguir, partindo da reflexão de Karl Polanyi, toma como marco para a compreensão da economia política da sociedade moderna as instituições do mercado nacional – que, a partir do século XIX, se teria tornado o referencial da sociedade, motivando o agir dos indivíduos antes no lucro e no ganho do que na subsistência (p. 28-29) -, do Estado – como o encontro das coordenadas espaço-tempo necessário à produção, como bens públicos, da legitimidade na governança, do bem-estar econômico-social , da segurança e da identidade coletiva (p. 29-30) -, do sistema geopolítico global – que, após a queda do Muro de Berlim, só pode ser considerado capitalista, e se manifestaria por uma distinção entre Estados mais ou menos vulneráveis ao poder de manipulação dos atores externos do mercado (p. 30-34) - e do sistema monetário internacional – elemento de ligação entre as economias, aponta para a alternância entre períodos de amplos consensos institucionais e desarticulações internacionais como característica da história do sistema (p. 34-35), onde a sua compreensão passa pelo trilema “autonomia das políticas monetárias”, “mobilidade dos capitais” e “taxas de câmbio” (p. 35-36) -.
Nesta parte do trabalho, que se poderia considerar como a “geral”, a identificação das instituições básicas para a compreensão da realidade econômica “moderna” corresponderia, no método analítico-substancial, à identificação do conteúdo econômico da normatividade incidente sobre o fluxo internacional de capitais. Aqui, o fato estudado pela economia política, em sua nudez, antes de merecer valoração.
Passa a estudar a cidadania moderna a partir dos teóricos liberais, dos quais destaca Locke, com sua compreensão do estado de natureza como aquele em que em que o homem converte o dado natural, pelo seu trabalho, em sua propriedade vista como o gérmen da submissão do poder político – instituído que foi pelo consenso dos cidadãos e que observando os princípios da legalidade administrativa, da liberdade econômica e da indelegabilidade do poder, deveria estar restrito a funções relacionadas à eliminação de controvérsias (p. 39-40) – ao poder econômico, e Benjamin Constant, que, considerando como valor supremo a liberdade civil e tratando como real impossibilidade o exercício direto do governo pelo povo, toma a preservação daquele valor apontado como supremo como a finalidade do Estado, posto o governo nas mãos de representantes, eleitos por quem fosse economicamente auto-suficiente (p. 41-43). Examina, ainda, a concepção de Thomas Humphrey Marshall a respeito da cidadania social enquanto desenvolvimento da idéia liberal da igualdade de direitos e da necessidade de remoção dos obstáculos ao atingimento, pelos indivíduos, da auto-suficiência necessária a que pudessem desempenhar os deveres de bons cidadãos, o que implica a adoção de uma postura ativa do Estado na concreção de direitos sociais, que nos países periféricos, contudo, tiveram um caráter de concessão, materializando filosofia segundo a qual “a extensão da cidadania se faz pela inserção do indivíduo no processo produtivo e na medida em que há reconhecimento legal” (p. 43-48). Trabalha, em seguida, o conceito de cidadania emancipadora, busca da conciliação dos aspectos sociais e individuais da vida humana, em que a atuação nos espaços se dê a partir do momento em que cada um reconheça no outro idêntico direito à realização dos respectivos projetos de vida (p. 49-50), em que as relações políticas vêm a transcender a lógica autoritativa, para ingressarem no campo da participação, e as relações econômicas passam a transcender a lógica da troca para ingressarem no campo da ação desinteressada (p. 51-53), de tal sorte que a cidadania passa a ser vista menos como um feixe de direitos e deveres e mais como uma ampliação dos espaços para tomar parte na condução dos destinos da comunidade (p. 53-57).
Como se vê, seguindo o exame do fato econômico em sua nudez, há a identificação da visão de mundo acerca do ser humano e sua conduta a inspirar a legislação concernente ao mercado de capitais, isto é, o aspecto “ideológico” o sistema de valores dominantes no grupo social em que se travam as relações econômicas.
Após o exame da tipologia da cidadania moderna, passa a estudar o Estado, principiando pela descrição do seu papel no liberalismo, reduzido às funções de proteção da nação contra ameaças externas, à repressão dos delitos perpetrados contra os “direitos naturais” à vida, à liberdade e à propriedade e à composição dos conflitos de interesses privados (p. 59-61), que precisou enfrentar problemas como a formação de monopólios, o deflagrar de crises econômicas cíclicas e o acirramento do confronto capital x trabalho, além da inexorável conversão do tripé “Liberdade-Igualdade-Fraternidade” num autêntico trilema, dado que a base para o sistema de mercado era a busca do proveito individual, vale dizer, egoísmo e competição (p. 62-63). Já pela universalização do sufrágio, de que decorreu a busca da extensão da cidadania a quantos se submetessem à autoridade do Estado viria a impor a presença deste no domínio econômico, de tal sorte que se estabelece uma minuciosa disciplina normativa heterônoma sobre a vida social para o enfrentamento das crises que poderiam levar à destruição da economia capitalista (p. 63-65), determinando a formação de complexas estruturas administrativas, bem como o surgimento da tecnocracia (p. 65-66). Aponta para as deficiências do Estado Social no que tange (1) à tutela da igualdade, que se teria sotoposto ao valor segurança, por um lado, e, por outro, se teria amesquinhado pelo caráter de concessão dos espaços pelo Estado sem que tivessem eles sido conquistados pela atuação reivindicatória dos súditos (p. 67), (2) à promoção da solidariedade social, em virtude da diluição dos indivíduos nos grupos em que se inserem, em relações intermediadas necessariamente pelo Estado (p. 68). É apontado, também, o abalo do compromisso que sustentava o keynesianismo a partir da crise dos anos 80, com a explosão da crise da dívida externa, pondo as questões concernentes a quem seria legitimamente credor dos serviços a serem prestados pelo Estado, bem como os problemas de cunho orçamentário (p. 69-70). A busca da construção do paradigma do Estado Democrático de Direito enfrentaria o desafio de preservar a autonomia dos cidadãos e fortalecer a solidariedade social (p. 71), com o que passaria, na perspectiva do autor, que de perto segue Boaventura de Souza Santos, a ser o principal papel do Poder Público preservar um ambiente apto a possibilitar o desenvolvimento das possibilidades de cada ser humano, de tal sorte que, em relação às decisões políticas, a palavra chave passa a ser “participação” (p. 73-76).
A identificação do conteúdo econômico da legislação concernente ao fluxo internacional de capitais e da ideologia que a inspira é seguida, como se pode perceber, pelo exame do referencial de validade das medidas, qual seja, a Constituição de cada um dos Estados, que vem a converter as cosmovisões em valorações jurídicas. Aqui, entretanto, não se está, ainda, no exame propriamente do Direito positivo, mas sim da contribuição posta pela teoria do Estado, enquanto elemento de transição entre o aspecto do Ser da ciência política e o aspecto do Dever-Ser da Ciência do Direito, identificando, pois, as valorações que vêm a configurar o regime político. São, pois, estabelecidos, aqui, os pressupostos para a compreensão do conteúdo dos Textos básicos na aferição da validade das medidas de política econômica.
As interinfluências que se verificam na conformação de cada um dos termos do binômio Estado/Sistema Monetário Internacional começam a ser estudadas a partir das razões para ter sido adotado o ouro como referencial para as taxas de câmbio, de tal sorte que cada Estado deveria ter estoques do precioso metal como lastro para a emissão de moeda (p. 79). No período em que adotado o padrão ouro, que seguiu imperturbável a sua marcha até 1913, havia grande mobilidade de capitais (p. 81), e sua base de sustentação estaria tanto no caráter seletivo da cidadania liberal, o que permitia que a preocupação maior faz autoridades monetárias fosse manter a qualquer custo a conversibilidade, para garantir o fluxo de mercadorias no comércio internacional, de tal sorte que qualquer perturbação se resolveria por uma redução nos custos suportados pelos investidores (p. 82), como na própria hegemonia da Inglaterra como principal potência industrializada (p. 83). Tal meta – a da manutenção da conversibilidade a qualquer custo – veio a ser posta em xeque tanto pela ampliação da cidadania, exigindo que a política econômica pública se estendesse a outros campos (p. 84) quanto pelo próprio abalo do consenso entre as autoridades monetárias dos países centrais, como decorrência da I Guerra (p. 84), levando-as ao controle de capitais (p. 85). Por outro lado, mostra que, nos países periféricos, justamente por não participarem do comando das relações internacionais econômicas, nunca se pôde verificar a situação de estabilidade própria dos países centrais (p. 85-86). Indica que, à época da Grande Depressão e no curso da II Guerra, a maioria dos países teria flexibilizado a adoção do padrão-ouro e procedido à desvalorização da moeda (p. 86). A partir de 1944, com a celebração do Acordo de Bretton Woods, cada país passaria a fixar o respectivo câmbio tomando como referência o dólar norte-americano, recomendando-se que houvesse controle de capitais no âmbito do comércio internacional , admitindo o ajuste de câmbio fixo em determinadas circunstâncias e criando o Fundo Monetário Internacional (p. 87). O controle de capitais, que foi o mais eficaz dos instrumentos do Acordo, no âmbito dos países desenvolvidos, permitiu uma separação entre os objetivos da política econômica nacional e o mercado de câmbio (p. 88). Aos EUA, por sua vez, competiria converter o dólar em ouro, observando a taxa estabelecida em Bretton Woods (p. 88-89), o que somente durou até meados da década de 60, porquanto a partir daí passou a haver mais dólares no mercado exterior do que ouro para os lastrear (p. 89). Sustenta que o funcionamento de Bretton Woods estaria baseado num sistema de cooperação profunda, por conta das tensões da Guerra Fria – decorrente de os EUA serem a grande potência capitalista apta a fazer frente ao “perigo vermelho”, por um lado, e a busca de aliados por parte daquela mesma potência -, o número reduzido de países envolvidos no sistema e que comandavam as negociações e a adoção de regimes políticos semelhantes nos países centrais estabelecia a possibilidade de políticas econômicas com objetivos comuns (p. 89). Aponta como causa imediata do fracasso do sistema de Bretton Woods os déficits da balança de pagamentos dos EUA, decorrentes da emissão de dólares para além das reservas em ouro, em razão tanto dos investimentos militares quanto da expansão econômica das empresas norte-americanas (p. 90-91), e, como causas estruturais, o crescimento da mobilidade de capitais por decorrência da aceitação, pelos bancos europeus, de depósitos em moeda estrangeira e sua oferta a tomadores de empréstimos, bem como pela emissão, por tais bancos, de bônus em moeda estrangeira em nome dos tomadores de recursos (p. 91-92), e o comprometimento da busca da homogeneidade, tomando em consideração a demanda das populações de cada um dos países interessados em termos de política econômica, como decorrência da adoção do regime democrático (p. 92-93). Refere que os países latino-americanos, após a II Guerra, apesar de terem, muitos dentre eles, participado das discussões para a implementação do sistema de Bretton Woods, até 1959 tiveram a si reservado o papel de criarem condições para o investimento privado estrangeiro mediante um intenso controle da inflação, situação que se alterou com a vitória da Revolução Cubana, que foi determinante para o lançamento da “Aliança para o Progresso”, num primeiro momento, voltada “ao desenvolvimento econômico, à mudança estrutural e à democratização política” (p. 93) e que, após a morte de Kennedy, assumiu o caráter de um pacto entre as empresas com intensa atuação no mercado internacional – principalmente transnacionais – e os setores público e privado latino-americanos, voltado à promoção do crescimento econômico, da proteção aos investimentos privados norte-americanos e ao combate ao comunismo (p.94). Aponta o desenvolvimento dos euromercados como responsável pela abundância de empréstimos internacionais em que bancos privados figuravam como mutuantes em face de países em desenvolvimento, no decorrer da década de 70, empréstimos, estes, cuja taxa de juros era variável, seguindo as praticadas nos países industrializados, considerando, mais, o caráter arriscado de tais operações, dado que os produtos exportados pelos países mutuários eram, em regra, mercadorias sujeitas a bruscas variações de preço (p. 94-95). As crises do petróleo e a recessão nos países desenvolvidos no inicio da década de 80 teriam sido responsáveis pela alta das taxas de juros, bem como da taxa cambial do dólar, de tal sorte que países que se haviam endividado intensamente, como foi o caso do Brasil, terminaram impossibilitados de satisfazer as respectivas obrigações (p. 94-95). Após o fracasso do Sistema de Bretton Woods – sistema, este, que teve o mérito de haver propiciado aos países “periféricos” e “semi-periféricos” a adoção de políticas desenvolvimentistas (p. 96) –, observa-se uma crescente interdependência das nações, com a superação dos obstáculos do tempo e da distância para comandar os processos de produção, circulação de mercadorias e de dinheiro “em escala transnacional” (p. 97). Neste contexto, o Sistema Monetário Internacional passa a ser orientado predominantemente pelas expectativas do mercado, vale dizer, pelos agentes econômicos privados, com o esmaecimento da capacidade dos Estados controlarem o fluxo de capitais e, conseqüentemente, as taxas de câmbio passam a ser o preço relativo dos ativos nacional e estrangeiro – o que implica dizer, por outras palavras, que o controle da política monetária passa a ter a capacidade de comando dos Estados diminuída, ainda mais depois da denominada “desregulamentação” dos mercados (p. 98-99) -. São apontados como fatores caracterizadores da globalização: “i) a internacionalização dos portfólios e a liberalização dos sistemas financeiros domésticos; ii) o declínio da importância dos bancos como intermediadores financeiros, devido ao aumento da emissão de títulos de securitização; iii) a flexibilização das taxas de câmbio, que flutuam sobretudo por força dos fluxos financeiros (e não mais por força do fluxo do comércio); iv) a volatilidade do mercado e a ampliação dos choques e crises internacionais, os quais foram potencializados pelo desenvolvimento tecnológico das telecomunicações e da informação; v) concentração do mercado financeiro internacional em poucas instituições e atores; vi) a necessidade de políticas econômicas domésticas para se manter a estabilidade econômica” (p. 99-100). Observa que a assimetria entre os mecanismos de globalização financeira e a sobrevivência, no âmbito das relações internacionais, dos Estados-Nações implica, mesmo com o enfraquecimento destes, que ainda lhes restem instrumentos de política econômica, até porque a hierarquia de poder entre os Estados seria um pressuposto para o funcionamento de uma economia mundial orientada pelos princípios liberais (p. 101-103).
Passa, então, a investigar a liberalização da conta de capital, procurando precisar o modo como o fluxo internacional de capitais influencia a economia nacional, por conta das pressões que gera sobre a taxa de câmbio (p. 107), principia por explicar o balanço de pagamentos como o resumo das transações de recebimento e pagamento de um país com o exterior, permitindo aferir tanto as variações do endividamento externo como “a conexão entre as transações estrangeiras e as ofertas monetárias nacionais” (p. 108). Aponta como seus componentes as transações referentes à importação e exportação de bens e serviços, que comporiam a conta de transações correntes (p. 108) e as transações concernentes à aquisição e alienação de ativos, que comporiam a conta de capital (p. 109). Esta dividir-se-ia em “investimentos diretos (por empresas nacionais em filiais estrangeiras e por empresas estrangeiras em filiais nacionais), investimentos de portfólio (que incluem compras de títulos e valores mobiliários nacionais por estrangeiros e empréstimos concedidos a residentes nacionais, bem como compra de títulos e valores mobiliários estrangeiros por nacionais e empréstimos a estrangeiros) e alterações de caixa (que incluem modificações de saldos mantidos por bancos e outros negociantes de divisas estrangeiras resultantes de transações correntes e de capital, bem como as alterações de reservas mantidas em mercados cambiais)” (p. 109). Observa que os investimentos diretos criam, ampliam ou facilitam o controle sobre a produção de riquezas em outros países, o que não ocorre com os investimentos de portfólio, que são realizados por motivos financeiros ou comerciais, e que o componente de caixa “representa as alterações dos balanços de bancos e fluxos de caixa semelhantes” (p. 109-110). Explica a razão de ser para que o aumento dos direitos do País sobre o estrangeiro sejam registrados como débito na conta de capital e a venda de ativos como crédito, considerando o primeiro como importação de ativos e o segundo como exportação (p. 110-111). É estabelecida, ainda, uma distinção entre o crédito na conta de transações correntes, representando uma variação positiva na renda nacional, e o crédito na conta de capital, que representa uma variação positiva para os direitos dos credores estrangeiros sobre a economia nacional (p. 112). Compara os dados do Balanço de Pagamentos previstos na 4ª edição do Manual do Fundo Monetário Internacional, de 1977 – cujas diretrizes foram seguidas pelo Brasil de 1990 a 2000 – e os previstos na 5ª edição da aludida publicação, datada de 1993, adotados no Brasil a partir de 2001 (p. 113-115).
Refere que a adesão do Brasil ao “Consenso de Washington” teria atrelado o desenvolvimento econômico ao fluxo internacional de capitais, determinando, ainda, o esmaecimento da capacidade das autoridades monetárias atuarem como emprestadoras de última instância, uma vez que estas não podem emitir moeda estrangeira e têm a disponibilidade desta limitada ao estoque de reservas internacionais (p. 117). Tais fatos tornam a volatilidade dos capitais particularmente preocupante, uma vez que torna maior a instabilidade de seu fluxo indicando a pouca confiança d setor privado no funcionamento da economia (p. 118). Salienta que o aumento do fluxo de capitais está relacionado com a expansão do PIB na medida em que sejam canalizados para “investimentos eficientes”, voltados em grande proporção para a produção de bens passíveis de comercialização que não estejam sujeitos a um “risco global de superprodução”, de tal sorte que se gere a propensão dos investidores e credores em assegurar tal capitalização em bases estáveis (p. 119). Em contrapartida, vêm a se colocar os capitais voláteis que tendem a contribuir para a variação das taxas de câmbio, desestimular o investimento em bens comerciáveis, estimular, enfim, a atividade puramente especulativa, comprometendo, mesmo, a própria soberania na condução da política monetária (p. 119-121). Refere, mais, o aumento do fluxo de capitais estrangeiros nas contas de empréstimos e financiamentos de médio e longo prazo, entre 1990 e 2000 (p. 124-125), as oscilações do fluxo de capitais na conta de capitais de curto prazo como influenciadas diretamente pelo comportamento do mercado financeiro internacional e a pouca relevância da conta dos demais capitais, que teria tido um comportamento relativamente estável, somente apresentando saldo negativo em 1992, em razão de um pagamento feito ao Fundo Monetário Internacional, e em 2000, por conta de um pagamento realizado em prol do Clube de Paris (p. 126).
Indica fatores, de origem externa – como a redução das taxas de juros nos EUA, as recessões nos denominados países de Primeiro Mundo, de tal sorte que os custos de transação para os investimentos nos países em desenvolvimento se mostravam bem menores (p. 127-128) – e de origem interna – como a abertura da economia, assim entendida a desregulamentação financeira, as reformas constitucionais voltadas a reduzir o tamanho do Estado, a elevada rentabilidade assegurada ao investimento estrangeiro (p. 128-129) -, de atração de capitais estrangeiros ao Brasil.
Narra o processo de liberalização da conta de capital a partir da frustração da expectativa existente ao final da década de 70 de que fosse completada pelo Brasil a transição para a condição de economia avançada, frustração, esta, decorrente da crise da dívida externa da América Latina, levando ao escasseamento do fluxo de capitais privados, conduzindo, assim, já em 1987, à realização de estudos no âmbito do Governo Federal, para a liberalização comercial, obtido, inclusive, financiamento junto ao Banco Mundial para a implementação das mudanças estruturais que viabilizariam tal liberalização (p. 131), após o que se deu a abertura financeira da economia nacional, marcada pela criação de várias modalidades de investimentos de portfólio ao mesmo tempo que foram sendo paulatinamente extintas as restrições em relação a estes opostas aos estrangeiros (p. 132-133). Após descrever em minucioso quadro comparativo as medidas que na década de 90 se voltaram, no Brasil, à implementação da autonomia financeira e as adotadas, a partir de 2000, para aprofundar o processo (p. 134-135), demonstra que nem por isto deixou o Poder Público de lançar mão de medidas positivas, no sentido de direcionar os fluxos, contornar as crises – sobretudo a mexicana, a asiática e a russa – e para garantir interesses fiscais (p. 136-137). Recorda, mais, a substituição, em 1999, no Brasil, do regime de câmbio fixo pelo de câmbio flutuante, e que a orientação do controle de capitais, antes focada na preservação do balanço de pagamentos, veio a se voltar à definição de um perfil e de um volume ideal de capitais a fluir para o País (p. 138-139).
Passa a investigar, a partir do exame das condições internas – uma recém-completada transição para a democracia, a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, com a implementação de um novo pacto federativo, o crescimento de um pluralismo jurídico, social e econômico, os efeitos de uma política desenvolvimentista, o crescimento das taxas de inflação (p. 143-144) – e externas – a Queda do Muro de Berlim, marcando o término da Guerra Fria, com o estabelecimento de acordos multilaterais e a busca dos ajustes financeiros internacionais, sempre sob a batuta dos EUA (p. 144) – aptas a assegurarem as medidas adotadas a partir de 1989. Verifica que o modo pelo qual se deu a liberalização financeira, nos Governos Collor e FHC, passou ao largo dos embates nas Casas legislativas, operada que foi no âmbito de estruturas administrativas – Conselho Monetário Nacional e Banco Central -, ao contrário do que ocorreu em relação às reformas de caráter “macroeconômicas”, voltadas a remover as amarras constitucionais à concreção de tal desiderato (p. 144-145). Partindo do pressuposto de que a política monetária tem aspectos insuscetíveis de negociação, como o poder de disciplinar as relações macroeconômicas e o de garantir o poder aquisitivo da moeda nacional, integra justamente o setor que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, deve ter como protagonista o Poder Público e de que o Sistema Monetário Internacional passou a ser comandado pelo mercado, uma vez que sobre a forma de o gerir inexiste consenso entre os Estados, estes hão de ter assegurada a legitimidade do respectivo poder no âmbito interno, para que se atinja tal desiderato vem a ser mister a preservação das competências dos órgãos por onde ele se vem a exercer (p. 145-146). Procura extremar o papel do político na definição dos fins colimados pelo sistema econômico e o papel do economista na escolha dos meios para a eles chegar, indagando da respectiva viabilidade, da possível compatibilidade ou incompatibilidade entre os fins eleitos, a sua conversão em objetivos e o estabelecimento de um dado quantitativo, que se converte em meta. Quando os economistas decidem os fins a serem alcançados pela sociedade ou elegem meios que passam ao largo dos valores que os devem orientar, vêm a alterar-se os referenciais das relações entre o Poder Público e os que se submetem à sua autoridade, que ao invés de estarem no plano político-jurídico, enquanto resultante das discussões travadas nos parlamentos pelas correntes ideológicas que, traduzidas como agremiações partidárias que ali se fazem presentes, com o que, considerada a liberalização da conta de capital como uma mudança nas relações travadas entre o Poder Público e os súditos, haveria, em linha de princípio, violação à Constituição Federal no que tange à consagração da separação de poderes (p. 147-149).
Verificando a hipótese aventada, empreende estudo sobre o princípio da separação de poderes a partir da matriz inglesa, recordando que John Locke o teria desenvolvido pressupondo a consagração da rule of law posta na Magna Charta, pelo qual aquele que legisla não poderia, simultaneamente, aplicar a lei (p. 151-152), e que tal desenvolvimento se colocava a partir do pressuposto da finalidade da rule of law enquanto dique ao absolutismo e meio apto a pôr o Estado na condição de possibilitador da convivência natural entre os homens (p. 152-154).
Passa ao exame da tradição derivada de Montesquieu, na qual se vem a colocar a necessidade de não se estabelecer a concentração dos poderes de editar e de executar as leis, caracterizado o Executivo como o poder encarregado de tratar dos interesses do País, no âmbito internacional e, no âmbito interno, vem a ser melhor exercido em caráter singular, tendo em vista a instantaneidade dos problemas que e chamado a resolver, diversamente do que ocorre com o Legislativo, onde melhor se ordena quando são muitos a decidirem (p. 154-155). O poder de julgar não seria entregue a um corpo estatal permanente, mas sim a pessoas, selecionadas no meio do povo, a partir de processo regulado em lei, formando um tribunal pelo tempo necessário à solução do litígio (p. 156). A separação de poderes seria vista, em Montesquieu, como uma emanação da divisão dos estamentos sociais, e a partir de um ponto secundário na sua obra– o da interdependência entre os Poderes – é que teria sido construída, aproveitando-se os aprofundamentos de Bolingbroke, a concepção norte-americana do checks and balances (p. 156-159).
Já a contribuição de Rousseau se colocaria na preeminência dada ao Legislativo enquanto representante do único Poder Social – o povo – e cujo produto final – a Lei – seria a expressão da vontade geral, a verdadeira manifestação da soberania (p. 159-160). No plano teórico, a sua visão da separação de poderes descartava a parametrização feita por Montesquieu entre os poderes políticos e os poderes sociais de acordo com os estamentos (p. 161).
Aponta, em seguida, para a evolução de uma concepção meramente negativa do princípio da separação dos poderes para uma dimensão positiva, no sentido da atribuição de uma responsabilidade pelo desempenhar uma função a que organicamente legitimado, ilustrando a assertiva com julgado do Tribunal Constitucional alemão (p. 162-165).
Debatidas as percepções gerais acerca do princípio da separação dos poderes, passa-se ao seu estudo dogmático à luz da Constituição de 1988, que, classificada como Constituição rígida, dificilmente acolheria a doutrina dos “poderes implícitos” (p. 165-167). O Texto da Constituição de 1988 viria a agasalhar a concepção da independência e interdependência entre os poderes, seja sob o ponto de vista negativo, das entre-limitações e interferências nos limites constitucionais, com a proibição, inclusive, de delegação das atribuições de um a outro, salvo cláusula constitucional expressa, seja na dimensão positiva, segundo a qual importa verificar se está, efetivamente, sendo legítima e responsavelmente exercitada a função atribuída a cada órgão constituído (p. 168-169).
Passa a examinar as razões para a atribuição de funções normativas à Administração Pública – a necessidade de o Poder Público atender aos desequilíbrios econômicos com a rapidez com que estes se manifestavam – sem, entretanto, minimizar a razão pela qual se empresta a maior relevância ao princípio da legalidade, dada a própria forma de composição do órgão de onde emana a lei (p. 170-171). A compatibilização entre o princípio da separação dos poderes e a capacidade normativa que se outorgue à Administração exige que se verifique não apenas a existência de disposição legal que confira tal competência como também o caráter conjuntural ou circunstancial das relações jurídicas a serem disciplinadas, garantindo a efetivação das metas e objetivos fixados em ato legislativo (p. 172-178).
A seguir, examina a atuação do Estado no domínio econômico, desde o Estado liberal, quando seria denominada mais propriamente “intervenção”, que se faria notar “nos dois fundamentos da sociedade capitalista”, entendidas como tais a propriedade privada dos bens de produção e a liberdade de contratar, intensificando-se tal atuação no Estado social e, no paradigma do Estado Democrático de Direito, viria a ser matizada pelos princípios da autonomia individual e da democracia (p. 179-180). Distingue ainda entre as hipóteses de atuação do Estado no domínio econômico, por absorção – monopólio – e por participação – em concorrência com os particulares -, e de atuação do Estado sobre o domínio econômico, referente aos papéis de agente normativo e regulador da economia a ele conferidos. Nesta última hipótese, a de atuação sobre o domínio econômico, serão exercidas atividades de ordenar – pela constituição de direitos ou pela limitação de direitos conferidos pelo ordenamento jurídico – e de fomentar a economia, atribuindo-se à Administração Pública função normativa, desde que esta seja exercida dentro dos limites da autorização legal e se cinja a medidas conjunturais (p. 180-182).
Disseca a atuação do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central no controle de capitais, restringindo este conceito ao controle sobre as operações computadas na conta de capital (p. 182-183), distinguindo entre aquele que se realiza sobre a entrada – permitindo maiores taxas de juro internas e o controle da expansão da base monetária - e aquele que se realiza sobre a saída – permitindo menores taxas de juros -, entre aquele que se volta a restringir o fluxo de capitais por meio de mecanismos de preços – funcionando, antes, como um instrumento de estímulos e desestímulos a serem avaliados pelos agentes do mercado (p. 183-184) – e aquele que se volta ao controle pelo estabelecimento de restrições quantitativas – em que o volume máximo, seja em relação à entrada, seja em relação à saída, de recursos é estabelecido em caráter coativo, heterônomo (p. 184) -. As enumerados, como propósitos dos controles de capital, a geração de receitas e financiamento de esforços de guerra, alocação de créditos, correção de déficits ou superávits na balança de pagamentos, prevenir a entrada de capitais voláteis, desestabilizações financeiras ou valorizações reais do câmbio, restringir a apropriação de ativos domésticos por estrangeiros, estimular o uso doméstico da poupança ou proteger instituições financeiras domésticas (p. 184-186).
Depois de apontar para o dado da mais acentuada intervenção do Estado no domínio da moeda e do crédito, observando, ainda, o papel que a atuação estatal no domínio econômico teria sido um dos fatores que mais desencadearam a reflexão jurídica a respeito do cometimento da capacidade normativa à Administração Pública, elencando, dentre os diplomas legislativos que conferem tal capacidade ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central as leis 4.131, de 1962, 4.595, de 1964, 4.728, de 1965, 6.385, de 1976, e 9.069, de 1995 (p.187-188), apontando como fonte da competência normativa do Conselho Monetário Nacional, neste matéria, os incisos V, VI, XVIII e XXXI do artigo 4º da Lei 4.595, de 1964, e os incisos I e II do artigo 3º da Lei 6.385, de 1976, e a do Banco Central no artigo 9º da Lei 4.595, de 1964 (p. 188-189).
Salientando o componente político que marca a atuação das autoridades monetárias, destaca as condições de sua legitimidade a anterior autorização legal para o exercício do poder normativo e a circunscrição de tal exercício a questões conjunturais (p. 190). Demonstra que, a despeito de a liberalização da conta de capital, aparentemente, dizer com questões puramente conjunturais, o fato e que os fins e os meios da própria medida não foram estabelecidos por lei,mas sim pelas autoridades monetárias, apontando, assim, para a presença de uma usurpação, por parte destas, de funções legislativas, embora não se mostre dotado de sentido prático o pronunciamento de inconstitucionalidade para o efeito de anular tais decisões em sede de política econômica, embora tal sentido esteja presente para os efeitos de se buscarem outras conseqüências jurídicas (p. 191-194).
Só pela enunciação dos dados que foram trazidos anteriormente, já se vê que o livro merece ser lido e discutido em cada ponto, tal a riqueza de seu conteúdo em termos de fontes primárias. por outro lado, ante o deflagrar da crise de 2008, permanece a questão dos problemas gerados pela criação de tal engenharia jurídica plena de atualidade.
Os fatos concernentes à retração da presença estatal, deixando a sorte da economia ao alvedrio dos particulares em sua busca de lucro, em face das relações negociais vêm a demonstrar o acerto da conclusão a que chegou Washington Peluso Albino de Souza [As teorias do contrato e o Direito Econômico. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, v. 3, n. 9, p. 53, jul/set 1979]: “enquanto não se verificou a intervenção legislativa, porém, o divórcio entre os princípios do liberalismo e a realidade foi sempre aumentando, como resultado imediato da ‘livre manifestação da vontade’, acabou por conduzir ao dirigismo privado, assegurado pelo contrato tradicional. O mecanismo auto-regulador do mercado, pela ‘oferta e procura’, pela ‘livre concorrência’, havia falhado, e a ‘mão invisível’ de Adam Smith não corrigira as distorções do ‘poder econômico privado’, protegido pela Ordem Pública Econômica. Em lugar dos indivíduos ou das empresas isoladas na configuração da ‘concorrência’, passou-se ao capitalismo dos grupos, que levam ao monopólio ou aos efeitos que se lhe assemelham”.
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