PESSOA, Leonel Cesarino. A teoria da interpretação jurídica de Emilio Betti – uma contribuição à história do pensamento jurídico moderno. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.
Tema comum à filosofia e ao Direito, a hermenêutica, por estes dois ramos do conhecimento humano, tem sido discutida em rumos paralelos, razão por que – é o que aponta este livro, já nas primeiras páginas – raros têm sido os filósofos que se têm proposto a enfrentar a discussão, tal como travada pelos juristas, assim como raros têm sido os juristas que se têm proposto a transcender os limites da tipologia lançada, em suas bases gerais, por Friedrich Carl von Savigny, no 1º volume do seu Sistema de Direito romano moderno. A teoria da interpretação de Emilio Betti é encarada como uma ponte entre a filosofia e o Direito na discussão da hermenêutica, o que o conduziu a, primeiramente, lançar as bases de uma teoria do conhecimento para, daí, garantir o êxito epistemológico da atividade interpretativa, a partir da identificação dos problemas no âmbito da teoria geral do direito. No âmbito desta, o problema se coloca na busca do equilíbrio entre a certeza e segurança jurídica – preocupação maior do Positivismo, notadamente o de caráter normativista – e a adequação da solução jurídica ao caso concreto sob o exame do juiz – preocupação maior da Escola do Direito Livre -. A obra ora resenhada aponta para a opção decidida feita por Betti pela jurisprudência dos interesses, pela qual a interpretação deveria pesquisar os interesses que presidiram a elaboração da norma jurídica, bem como encarara a esta como resolução de um conflito de interesses, e, também, deveria proceder à integração e correção das idéias historicamente apuradas, e para a polêmica travada com Santi Romano, basicamente, residente na divergência existente entre os dois juristas acerca do conceito de interpretação. Identifica a origem das incursões de Betti no campo da hermenêutica filosófica no rastreamento da resposta à pergunta sobre o modo de identificar os interesses que se pretenderiam realizar normativamente e de adequar os juízos de valor iniciais às novas realidades sociais. Betti ter-se-ia servido das contribuições de Wilhelm Dilthey para definir como objeto da teoria da interpretação a “forma representativa”, que seria a forma sensível mediante a qual um outro espírito falaria ao nosso, e, em seguida, ter-se-ia proposto o problema do modo como se tornaria possível o conhecimento das formas representativas, o que implicaria buscar a identificação da idéia objetivada mediante tais formas. Para buscar tal identificação é que Betti teria ingressado no campo da filosofia da linguagem, rejeitando a teoria behaviorista (para a qual, na obtenção do significado somente importariam o signo e aquilo para o que o signo ostenta este caráter, sem que se pudesse cogitar de um terceiro termo responsável pelas objetivações – isto é, sem que se pudesse cogitar justamente do objeto da preocupação de Betti), colocando, a partir das teorias de W. M. Urban, a solução para o terceiro termo no conceito de comunidade de discurso, decorrente da possibilidade de universalização de representações, isto é, a partir de que haja uma correspondência do significado de determinados signos para os interlocutores. Passa, em seguida, a obra ora resenhada a examinar a polêmica travada entre Betti e Gadamer, colocando a posição deste acerca da impossibilidade da correção – o segundo momento da interpretação – da norma ser feita com base no entendimento, resvalando para o arbítrio, e justificando-se a posição daquele no sentido de que se buscava um critério seguro que permitisse a adaptação da norma a uma realidade que evoluíra desde a sua elaboração. A obra conclui relacionando a investigação sobre as condições do entendimento, feita por Schleiermacher, que diz respeito ao traço de unidade entre as técnicas de interpretação de texto, e o aproveitamento feito por Betti, voltando-se à identificação das condições do correto entendimento do texto jurídico e, sob as bases da teoria do conhecimento por ele lançadas, a elaboração de uma metodologia que permitisse a adoção de cânones para a correta interpretação. A obra ora resenhada, versão comercial de tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como se pode ver, busca a documentação e análise de um dos esforços mais impressionantes no que tange ao estabelecimento do equilíbrio entre duas exigências antagônicas, quais sejam, a certeza e a justiça. Como toda obra de valor, ainda provoca a possibilidade de desdobramentos.
O enfoque do debate entre Betti e Santi Romano se coloca na divergência que um e outro teriam quanto ao conceito de interpretação, para o autor. Penso que, embora correto, não é, contudo, o único aspecto que poderíamos investigar para o efeito de explicar o âmago da divergência, e isto dentro da própria proposta metodológica de Betti. Com efeito, é de se destacar a própria diferença de enfoques adotados pelo privatista – a obra jurídica de Betti se volta, preferencialmente, ao direito civil – e pelo publicista – Santi Romano é, como todos sabem, um dos grandes nomes do direito constitucional -. Este se preocupa, basicamente, com a estrutura do Estado e com a preservação das competências, em que pese ter sido um dos primeiros estudiosos do “pluralismo jurídico”, que muitos apresentam como uma novidade, embora, por certo, cingindo-o a limites: "na esfera da ordenação estatal, podem ter valor não só as normas oriundas diretamente do Estado e dos demais entes e sujeitos que dele retiram sua autonomia, mas também as normas que derivam de ordenações, ou seja, de instituições que são originárias em relação ao Estado, principalmente a comunidade internacional, os Estados estrangeiros e a Igreja. Porém, elas não têm eficácia por si mesmas, diretamente, mas apenas quando as leis estatais a atribuem e nos limites de tais atribuições; logo, são irrelevantes, ou pode ser-lhes proibida a observância enquanto o Estado não as reconhecer" (Princípios de Direito Constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 122). Sua concepção a respeito do direito privado indica, de plano, tal preocupação: "o direito privado é a esfera de ordenação que o próprio direito público, limitando-a, reserva às autonomias meramente lícitas. O direito privado, portanto, encontra sempre seu fundamento no direito público, já que dele deriva e está circunscrita a sua autonomia: o direito privado é uma esfera, um espaço deixado mais ou menos em branco pelo direito público, que porém o encerra na rede de suas malhas, o alimenta e o tutela" (Princípios de Direito Constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 100). Já para Betti, a questão que se coloca é bem outra: é a de que, mesmo havendo o trabalho do legislador, este nunca se acha completo, porque se coloca a necessidade da solução dos conflitos concretos à luz do ordenamento jurídico e, neste caso, sempre acaba restando um aspecto de criatividade, mesmo que se não arrede da norma legal como parâmetro para decidir, como ilustra esta passagem: “na realidade, o que o indivíduo declara ou faz com o negócio é sempre uma regulamentação dos próprios interesses nas relações com outros sujeitos: regulamentação da qual ele entende compreende o valor socialmente vinculante, mesmo antes de sobrevir a sanção do direito. É característica do negócio que a sua fatispécie, ainda mais que seu efeito, prescreva uma regulamentação obrigatória, a qual, uma vez reforçada pela sanção do direito, está destinada a elevar-se a preceito jurídico. Não quer isto dizer – como tantas vezes se repete – que a vontade privada possa, só por si, por virtude própria, ser causa imediata de efeito jurídico, já que sem uma ordem jurídica que estabeleça o nexo ‘causal’, esse efeito sequer é concebível. Acontece, porém, que aqui a previsão a que esta ligado o efeito jurídico contém em si mesma um preceito de autonomia privada, cujo reconhecimento por parte da ordem jurídica representa, na sua essência, um fenômeno de recepção. A ordem estabelecida pelas partes para os seus interesses é valorada pelo direito de acordo com os seus pontos de vista gerais, tornada própria com as suas oportunas modificações e traduzida nos termos de uma relação jurídica” (Betti, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Trad. Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Ed., 1969, t. 1, p. 300-301).
A visão privatista de Betti, pois, tem presente a solução de conflitos interindividuais, em que o órgão do Estado se coloca como um terceiro não interessado, bitolado pelo ordenamento jurídico, posto este como a garantia da previsibilidade do resultado das operações que se travam. Já a publicista de um Santi Romano vem a se colocar no sentido de uma ordenação da sociedade como um todo, na disciplina da própria condição de autoridade, quantificada, inclusive, a capacidade de esta exercer a coação sobre os indivíduos, em que o Estado se vem a colocar como um dos sujeitos da relação jurídica. Assim, o princípio da legalidade se há de entender como o delimitador do espaço onde a autoridade haverá de ser exercida, com o que a interpretação será de caráter eminentemente declaratório, na visão publicista, mesmo que não se possa esquecer que "também certos atos privados contêm prescrições, determinações, preceitos - numa palavra, normas - que, como aquelas das leis públicas, são disposições preventivas, destinadas a regular relações que assumem caráter jurídico. E são normas institucionais, enquanto deriva do Estado a autonomia sobre a qual se fundam e pelo Estado são protegidas, por lei e pelas autoridades públicas" (Princípios de Direito Constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 116). Já na visão de Betti, ao contrário, há espaço para a construção, justamente porque ao ordenamento cabe assegurar o espaço para a vontade individual se manifestar livremente, disciplinando as relações jurídicas no seu âmbito de atuação. Contudo, as finalidades a que ambas se propõem são similares. A interpretação enquanto "espelho", defendida por Santi Romano, com um caráter eminentemente declaratório e não constitutivo, tomando o Estado como sujeito da relação jurídica implica, em realidade, a redução da esfera de atuação deste, dada a clássica formulação liberal do principio de legalidade, quando referido ao Poder Público, e, no contexto de um ordenamento que se vai manifestando pela atuação estatal em domínios antes reservados ao particular, no aspecto publicístico, desempenha um papel similar, no aspecto privatístico, da sua antípoda em Betti, quanto à possibilidade de o intérprete, a partir do dado ordenamento jurídico, construir as soluções para os problemas que se apresentam, enquanto ampliação da margem de decisão do particular. Veja-se, com efeito, a passagem de Santi Romano acerca das tendências à redução do espaço do direito privado: "a esfera do direito privado tende, nos Estados modernos, a restringir-se em benefício do direito público. Isto ocorre devido ao processo de contínua e progressiva ingerência do Estado em matérias reservadas à autonomia de outrem, ou à transformação de tal autonomia, meramente lícita em funcional" (Princípios de Direito Constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 102).
Mas, consoante dito, esta observação pontual não deve ser vista como a identificação de um defeito na obra ora resenhada, mas, pelo contrário, como uma prova da sua riqueza, no sentido de encorajar novas investigações, ainda mais nos tempos hodiernos, em que se discute o problema do estabelecimento do efeito vinculante para as decisões das Cortes Superiores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Este espaço é para a troca de idéias a quantos visitam este blog. Para assegurar a boa convivência, contudo, solicita-se a utilização de linguagem compatível com as regras de boa educação e a abstenção de debates de cunho político-partidário ou religioso, ou voltados a atacar características pessoais de quem quer que seja.